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    A luz do sol poente iluminava os campos dourados que muito em breve seriam colhidos, de acordo com Theo. Júlia estava em frente ao poço, lavando roupas. Suas mãos estavam doloridas e enrugadas. Estranhava não ter adoecido estando tão exposta ao sol e a água quente todos os dias. Na verdade, nenhum deles havia ficado doente, exceto talvez por Theo, mas aquilo fora diferente. 

    Na verdade, ela nem sabia ao certo o que tinha acontecido, sabia apenas o que os outros lhe falaram. Afinal estava desacordada naquele momento, nas mãos nojentas daqueles… ela não desejava lembrar disso. Preferia esquecer. Fingir que não havia acontecido. Talvez assim suas mãos não tremessem mais por lembrar. 

    Ela esfregou, enxaguou, e espremeu, torcendo o tecido até que suas mãos ficassem tão brancas quanto as nuvens do céu, e então o soltou na bacia ao lado. E então Júlia suspirou, mais por enfado mental do que por cansaço físico. 

    O dia fora um tanto monótono para ela. Poucas pessoas tinham vindo tirar água do poço. Jane estava ausente também. A mulher que tinha idade para ser sua mãe, mesmo sendo intrometida algumas vezes, era uma companhia agradável. Lembrava-lhe de suas vizinhas se reunindo na calçada da rua para contar mil e uma fofocas. Naqueles dias, no entanto, a mulher não aparecera. A última vez que Júlia a tinha visto fora no funeral dos homens mortos pelos ursos. Ela trajava um vestido cor castanho em um tom fosco. Por algum motivo, poucos além de Júlia, Eduardo e companhia, vestiram preto naquele funeral. Preferindo ao invés disso uma imensa variação de cores. A maioria, no entanto, consistia em tons frios, cinzentos e desbotados. Isso, aliado às expressões de luto e dor, fazia o funeral parecer um jardim de flores murchas. 

    “Como deve ter sido o meu funeral?” Ela suspirou, pegou outra peça de roupa, uma fina camisola, e começou a enxaguar.  

    Ao seu lado, Letícia realizava a mesma tarefa. No entanto, a amiga se mostrava bem mais entusiasmada. A mão cortada já estava muito sarada. Nem cicatriz havia ficado. O que foi surpreendente mesmo para Thierry, que constantemente observava o ferimento e constatara o quão rápido ele tinha se fechado. 

    Júlia se impressionara com a eficácia dos remédios do velho homem. Mesmo em seu mundo, um ferimento daqueles demoraria dias para sarar, mas Letícia quase não reclamava dele mais. Talvez tenha sido sua  reza, gracejar consigo mesma. Ela se perguntava se o santo podia escutá-la. Muito provavelmente não. 

    — Menina, tá barulhento hoje, né? — observou Letícia. 

    Júlia concordou com a cabeça. Uma agitação havia começado na direção do vilarejo na manhã daquele dia. Homens apressaram suas carroças, soldados caminharam com pressa, e crianças correram com risos e olhos arregalados enquanto um grupo a cavalo trotava exigindo passagem por qualquer um que estivesse no caminho entre os campos. 

    A princípio Júlia se preocupou, lembrando daquela noite em que um soldado surgiu às portas da casa de Thierry com a notícia dos ursos. Seu coração batia forte, se preocupando com Eduardo, mas não podia fazer nada, apenas olhar Thierry e os meninos partirem noite adentro e aguardar. Letícia ficara ao seu lado o tempo inteiro e Carmen andara de um lado para o outro inquieta. Thierry as impedira de ir, e elas não sabiam ir sozinhas. E, além disso, Júlia tinha medo demais para sair sozinha na escuridão. Medo do que podia haver nela. Medo daqueles dedos ossudos e viscosos. 

    “Aquelas coisas podem estar por aí ainda”, a preocupação martelava a sua cabeça, mesmo que ela fizesse de tudo para sufocá-la. 

    No entanto, quando percebeu que as pessoas corriam por animo ao invés de medo, ela relaxou e ignorou a comoção ao seu redor, focando-se em seu trabalho. Era a única coisa que podia fazer, por mais frustrante que fosse. 

    Theo disse que cada item que eles pegaram havia lhes dado alguma espécie de poderes. Todos pegaram coisas diferentes do deus. Eduardo escolheu um baú com o que parecia ser uma arma longa, Caio pegou uma besta, Theo, um cajado. Letícia recebeu um par de brincos e Carmen uma adaga. E Júlia, uma boneca. 

    Eduardo e Caio, que pegaram armas, haviam se mostrado lutadores habilidosos, pela forma que lutaram com o urso e os monstros do rio. O próprio Theo afirmava poder usar magia, uma afirmação que todos concordaram, embora Júlia tivesse suas reservas de desconfiança. Letícia afirmava não ter notado muitas mudanças em si mesma, além da tatuagem que dizia não ter feito. Carmen não parecia ter mudado, assim como Júlia, que até agora não notara nada de diferente em si mesma. 

    Isso a incomodava. 

    Ela teve de ser resgatada no rio, e foi obrigada a esperar, torcendo pelo retorno dos garotos naquela longa noite. Eduardo se arriscara, e se machucara por ela. Júlia não queria que ele se arriscasse a tal ponto por ela, não enquanto ela sabia que não poderia fazer o mesmo por ele. Mas a triste verdade era essa. Ela sentia medo até de lembrar do rio. Tremera ao ver os corpos dos homens sendo velados e cobertos de terra, imaginando o horror do ataque através dos relatos que ouvira de Caio. 

    Ela era uma covarde, e seu próprio corpo confirmava isso, tremendo. 

    Queria ser como Letícia e poder lutar, ou ao menos ser capaz de fugir, da mesma forma que Carmen fizera, mas quando os monstros vieram, suas pernas não reagiram, sua mente se tornou em branco, e os monstros a dominaram. Não gostava de pensar nisso, não queria lembrar disso. Não queria preocupar os outros. 

    — Amiga, tudo bem? — Letícia perguntou e só então Júlia percebeu que estava de olhos fechados, com cabeça e braços sobre os joelhos, tremendo. 

    “Tudo”. 

    — Não é nada, eu só, só estou cansada — respondeu, voltando a esfregar as roupas. Nem sabia mais em qual balde colocar a calça que segurava. 

    — Menina, cê não tá bem! Tu tá pálida, e tá soando frio — Letícia disse, colocando a mão na testa de Júlia. — Tem certeza que não tá doente? 

    Júlia mexeu a cabeça e Letícia não pareceu muito convencida, mas não comentou mais. Pouco tempo depois, elas se levantaram e começaram a andar. O dia havia acabado. 

    No caminho, Júlia remoía seus pensamentos. Desejava desabafá-los com alguém, aliviar suas preocupações e ouvir o que deveria fazer. Não podia fazer isso com Letícia, ou Carmen. Mesmo sendo suas amigas, não sentia que elas a entendiam o suficiente. E Eduardo… ela não queria incomodá-lo com seus problemas. Precisava de outro alguém. Um rosto lhe veio à mente, e ela fez o melhor que pode para ignorá-lo, assim como ele lhe tinha ignorado. 

    Elas chegaram até a casa de Thierry, e Júlia percebeu que havia meia dúzia de cavalos relinchando na frente, sendo guardados por dois soldados vestidos de forma diferente do habitual. Eles se colocaram entre elas e a entrada. 

    — O que as senhoritas querem? Vieram entregar roupas? — Um deles perguntou. 

    — Não, vamos entrar na casa — respondeu Letícia. 

    — Mocinhas, sir Thierry está recebendo sir Alóis em sua casa. Creio que seja melhor voltarem em outro momento, amanhã, já que está escurecendo. Vão para casa — disse o outro soldado.

    — Mas moramos aqui — disse Júlia. 

    Os soldados se olharam. 

    — Sir Thierry tinha filhas? 

    O outro deu de ombros. 

    — Deixem-nas passar, elas moram aqui conosco — ouviram uma voz gritar da entrada. 

    Um dos soldados virou-se para olhar para Roque que surgira na entrada. Júlia o escutou estalar a língua ao ver o jovem. 

    — Podem passar — disse ele, se voltando de novo para elas. 

    Elas entraram na casa, agradecendo a Roque ao passarem por ele. O garoto acenou com a cabeça e sumiu, andando em direção a cozinha. Júlia e Letícia ouviram vozes vindas da sala da lareira. Uma era de Theo, outras Júlia não reconhecia. Lá encontraram os meninos, Carmen, e três soldados vestidos como os que aguardavam do lado de fora. 

    — Ah, as meninas chegaram — disse Caio, se inclinando na cadeira de madeira em que estava sentado. Ele tinha uma compressa atada ao tornozelo. 

    Tinha mais cadeiras na sala do que de costume. Provavelmente por conta dos soldados, embora apenas um estivesse sentado. Um rapaz loiro, vestindo algo de certa forma mais elegante que os outros dois. Júlia se pegou fitando seus olhos verdes, que naquele momento também a estavam encarando. Ela desviou o olhar. 

    — Então gente, o que é isso? Quase que aqueles caras lá fora não nos deixam passar — perguntou Letícia. 

    — É uma longa história — respondeu Eduardo, suspirando. 

    Ele se levantou da cadeira em que estava sentado e caminhou em direção a elas, deu um beijo em sua testa e se afastou. 

    — Então, vão me dizer o que tá rolando ou não? — Letícia inquiriu novamente. Os braços em volta da cintura. 

    — Devo-me desculpar pela minha falta de cortesia, minha senhora, então permita que eu me apresente — O rapaz loiro respondeu, levantando-se. — Sou Lohan Févre, filho de vossa graça, o conde Wallis Févre, escudeiro de sir Alóis Belanger, e futuro cavaleiro da guarda de sua alteza, o príncipe Aaron Andrien — declarou ele com um sorriso convencido, enquanto fazia uma elegante reverência. 

    — Ah, legal, sou Letícia, é um prazer. 

    Júlia achou que também deveria se apresentar. 

    — Sou Júlia — Respondeu tentando imitar a reverência do cavaleiro. O que só lhe fez levantar uma sobrancelha. 

    Do outro lado da sala, Carmen ria como se tivesse ouvido uma piada. 

    — Mas então — Letícia voltou a falar —, o que tá rolando por aqui, e cadê o senhor Thierry? 

    — Bem, sobre isso, dá pra dizer que é o motivo de esses caras estarem aqui — Theo respondeu, apontando para os soldados. 

    — Sim, como já foi dito aos demais, meu senhor está aqui para visitar sir Thierry — disse o cavaleiro com uma postura altiva e um sorriso convencido no canto dos lábios. 

    Júlia sentiu-se exausta da conversa de repente. 

    — Lê, vamos tomar um banho — puxou a bainha do vestido da amiga. 

    — É tem razão, depois a gente se fala Lohan — Letícia falou, acenando para o garoto loiro. 

    Após o banho, encontraram a mesa de jantar posta, e cercada de pessoas sentadas nas bordas. Porém ninguém encostara na comida. Todos esperavam sir Thierry saísse de sua reunião com o cavaleiro. Uma insistência de Roque que era uma estupidez para o estômago faminto de Júlia. 

    — Eles estão demorando demais, sobre o que tão conversando? — Theo perguntou, olhando para a entrada da cozinha que dava acesso ao corredor onde ficava o escritório de Thierry. 

    — Assuntos do reino, com toda a certeza — Lohan respondeu. Como antes, dos três soldados, apenas ele estava sentado. 

    — E o que o senhor Thierry tem a ver com isso? — Carmen perguntou, levantando uma sobrancelha. 

    — Me espanta, e ofende, que não saibam quem é o homem com quem moram. 

    — Como assim? — Dessa vez fora Júlia quem perguntara. 

    — De fato parece que nunca ouviram falar de “Thierry, o flagelo de Alabner” — Lohan abriu um sorriso, mostrando seus dentes brancos. 

    — Pensei que o tivesse chamado de “O abençoado”? — Eduardo observou. 

    De fato, Júlia já o ouvira ser chamado assim por alguns aldeões. 

    — Isso é como os seguidores de Ellday o chamam. Mas para aqueles que rezam os versos demoníacos de Assh’hur, ele é mais conhecido como “o flagelo”. 

    — O que quer dizer com isso? — Júlia perguntou novamente. 

    — Podem perguntar a ele agora — Lohan apontou para a entrada do aposento, onde dois homens surgiram. 

    Um tinha uma postura envergada e imponente, transpassando seriedade em seu olhar. O outro, era mais robusto, e mais velho, com algo que Júlia nunca viu em seus olhos. 

    Preocupação. 

    — Vejo que a mesa está posta e cheira bem — o primeiro homem começou a falar —, é uma pena, no entanto, que eu tenha combinado partilhar uma refeição com Doniz essa noite. 

    — Sim, é uma pena. Talvez outro dia — Thierry comentou, se dirigindo ao seu assento costumeiro. 

    — Sim, afinal passarei muitos dias nessa aldeia, preparando a guarnição. Vamos Lohan — O homem fez uma mesura a todos os presentes e desapareceu em direção à saída da casa. 

    Os soldados começaram a segui-lo. Lohan também se levantou. Seu sorriso mais presunçoso do que nunca. Ele passou por Eduardo. 

    — Estou ansioso para lutarmos juntos, Edwardo, Caio — Ele fez uma mesura, e se retirou. 

    — O que ele quer dizer? — Theo perguntou a Thierry. 

    O velho homem respirou fundo. 

    — Acredito que seja melhor dizer de uma vez — Olhou-os nos olhos. — O bom sir pretende realizar uma caçada aos ursos Carmins que ainda se escondem na floresta. 

    — Mas nós o matamos — observou Caio. 

    — Dois, uma fêmea, e um filhote apenas. Ursos Carmins vivem em famílias. Ainda pode haver filhotes e um macho por perto, o sir deseja exterminá-los antes do inverno. 

    — Bem, e qual o problema disso? — Letícia inquiriu. 

    — Ele deseja levar a guarnição da cidade, incluindo Edwardo e Caio — respondeu ele, olhando para os dois. 

    — Parece bem sério — comentou Carmen. 

    — Mas, por que está tão preocupado, senhor Thierry? — quis saber theo — Caio e Edu podem se virar. 

    Thierry olhou para eles, e Júlia não soube dizer que tipo de resposta estava escondida em seus olhos. 

    — Por nenhum motivo jovens, vamos comer — Ele os fechou e iniciou suas preces. 

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