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    Na manhã seguinte, Jonas acordou com um respingar constante em seu rosto. Uma garoa fina descia lentamente sobre a terra. O calor das pedras parecia fazer os pingos evaporarem quando as encostavam, produzindo um vapor em volta do pequeno morro. O vapor incomodava um pouco o seu nariz, o levando a coçá-lo para que não espirrasse. Seus olhos estavam pesados. Ele passara boa parte da madrugada em claro. Não conseguira dormir direito ouvindo o som das risadas que ressoavam por trás das rochas. Vultos se moviam de um lado para o outro, esperando, rindo como hienas. O que os tornava mais assustadores de algum modo. 

    “Os deuses nos protegerão essa noite”, o cavaleiro dissera. No entanto Jonas não conseguia relaxar com aqueles monstros tão próximos. De algum jeito conseguira dormir, mesmo que pouco. 

    Ele olhou ao redor. A fogueira estava apagada, desnecessária a luz da manhã. O lugar fedia a sangue por conta do corpo do antílope caçada no dia anterior. O lugar em que o animal foi preparado estava manchado de vermelho e repleto de ossos. O cavaleiro jogara as vísceras para o lado de fora. Para os lobos. 

    Jonas encarou o mundo além das rochas, onde as enormes sombras espreitavam na noite anterior. 

    Eles haviam desaparecido. Segundo o cavaleiro, eles eram animais noturnos e se recolhiam um pouco antes do sol nascer, o que era um alívio. Pensar em lutar com aqueles bichos trazia calafrios a sua espinha. 

    Não queria estar na frente de lobos normais, quanto mais de lobos com o dobro do tamanho. 

    Parecia ainda ser cedo, os outros estavam dormindo, mas Jonas não viu o cavaleiro. Ele notou Erick em pé, próximo a uma das rochas. Parecia estudá-la. 

    — Tá lendo? — perguntou, se levantando. 

    Eric olhou para ele, seus olhos profundos devido as olheiras. 

    — Se pudesse — respondeu ele, antes de voltar sua atenção novamente às marcas na rocha. A espada estava no chão, próxima a ele. 

    Provavelmente era a vez dele de estar na vigília. Segundo Orland, as pedras os protegeriam, no entanto apenas pelo tempo em que os tais deuses estipulassem de acordo com o sacrifício feito, ou seja, o sangue derramado na pedra que estava no centro da formação. 

    Era necessário que alguém vigiasse as rochas para que elas não “apagassem” enquanto dormiam, acabando com a proteção. Por isso montaram uma vigília. No momento que a pessoa notasse os símbolos sumindo, deveria cortar a mão e derramar sangue sobre o altar. Felizmente não foi necessário. 

    — Cadê o Orland? 

    — Saiu um pouco depois de amanhecer. 

    — Ele disse aonde foi? 

    Erick fez que não sabia. 

    Jonas se pôs do lado do amigo. 

    — Isso… é bem louco, não? — disse também olhando, e até admirando, os símbolos. 

    — É mais do que louco, é quase inacreditável. Parece algo saído de alguma lenda arturiana. 

    — Isso era pra eu entender? 

    Erick revirou os olhos, sacudindo a cabeça. 

    — Orland disse que essas rochas nos protegeriam, ou seriam os deuses? — Erick pôs um punho na boca, e cruzou o outro sobre o braço, assumindo uma face pensativa enquanto olhava para a rocha. 

    Jonas observou o amigo, lembrando-se de algo. 

    — Sabe aqueles sapos gigantes? 

    — Sapos? O que tem ele? — Erick saiu de sua pose e olhou para Jonas. 

    — Tu ficou bem acabado depois daquilo — Jonas disse, coçando a nuca. 

    — Hum, sim. Tava difícil até de respirar na hora — Erick esfregou os olhos, que começavam a lacrimejar. Talvez ele estivesse sentindo bastante a falta dos óculos. 

    — Eles bateram muito em ti, né? — Jonas perguntou se lembrando do tempo que Erick levara para se recuperar. 

    — Pior que não, eles me pegaram, mas não foi por isso que fiquei daquele jeito. 

    Ao ouvir isso, Jonas lembrou-se da cena. Erick caído, cercado pelos corpos dos monstros, desmembrados como um frango recém cortado. 

    — Então o que rolou? — perguntou. 

    Erick voltou a sua pose pensativa. 

    — Não lembro bem. Numa hora os bichos estavam em cima de mim, e na outra eu tava caído no chão, me sentindo morto, e o túlio me levantou. Achei que o Orland tivesse me ajudado como fez com os outros… — Ele fez uma pausa franzindo o cenho. — Eu senti algo estranho na hora, como se uma coisa saísse de mim, mas não lembro direito. 

    — Uma coisa? Como assim? 

    — Não sei, eu… — Ele parou de falar ao notar algo acontecendo na rocha. 

    As marcas estavam sumindo. Pareciam escorrer como água entre os sulcos, desaparecendo primeiro no alto, e caindo até o chão. O calor vindo delas parecia diminuir. Jonas ficou um tempo parado, olhando aquilo. Era algo quase mágico, ou melhor, era mágico. 

    Erick foi em direção a pedra no centro, pôs a mão e fez com que fosse cortá-la, parando por um momento antes de concluir o ato, respirando fundo. 

    — Espere — Uma voz ecoou. — Não precisa fazer isso — O cavaleiro havia retornado. 

    — Mas a proteção não vai acabar? — Erick indagou. 

    — Ela não é mais necessária, em breve partiremos — disse ele, se aproximando, trazia um peixe em ambas as mãos 

    Erick assentiu, com uma expressão de alívio no rosto, e se afastou da pedra. O cavaleiro lhe tomou a espada e desceu em direção a um dos braços de água que circundavam o pequeno monte. Erick o seguiu. 

    Jonas olhou novamente para as rochas, os símbolos já tinham sumido e a água da fina chuva que caia agora escorria pelos sulcos. 

    Os outros foram acordando aos poucos. 

    — Bem que isso podia ter teto — comentou Leandro, olhando para cima enquanto os esparsos e fracos pingos de chuva caiam sobre seu rosto. 

    — Bem que podia ter um banheiro, tô cansado de mijar e cagar no mato — Túlio resmungou. 

    — Eu que não ia querer usar o mesmo banheiro que você — Leandro retorquiu. 

    Jonas suspirou, revirando os olhos para a conversa fútil. Estava muito cedo para isso. Ele desceu o morro, caminhando em direção aos rios, ajoelhando-se nas margens lamacentas. A água límpida corria resplandecente. Jonas juntou as mãos em uma concha, afundou-as no rio, sentindo seu toque gelado, e levou a água até a testa, lavando o rosto. Estranhamente, por mais que se lavasse, não se sentia limpo. Sentia falta de algo mais. 

    Ele respirou o ar puro, sentindo o tempo frio da manhã envolvê-lo, assim como os sons que nele viajavam. Os bramidos dos animais, o canto dos pássaros, as relaxantes correntezas dos rios. Sentia-se contente por não ouvir nenhum silvo ou risada, assim como nenhum chiado. 

    Podia ver pequenos peixes nadando através das correntes. Por um momento desejou fazer o mesmo. Fazia tempo que não nadava. Lembrava-se de ter combinado de algum dia ensinar Júlia a nadar, ou ao menos tentado. Ela rejeitara a ideia daquela vez, assim como rejeitara tantas outras coisas que ele havia proposto. 

    Uma dor veio ao seu peito e Jonas se arrependeu de ter lembrado dessa memória. 

    “Ela não te quis”, disse a si mesmo, “Não pense nela”. 

    Jonas ouviu um som de passos atrás de si. Assim como um pequeno cantarolar se aproximando. 

    — Aproveitando as águas, querido? — Uma voz feminina amadurecida perguntou. 

    Ela estava longe. Provavelmente para não afundar os pés na lama. 

    — Não sei se “aproveitar” é a palavra certa. 

    A mulher olhou, admirada, os rios que espalhavam como teias pelo campo. 

    — Como não aproveitar? — disse com uma voz amável. — Isso é uma benção. Lembro-me das histórias que meus pais contavam sobre as secas. Imagine como reagiriam se vissem isso? 

    “Imagino o que pensariam ao ver os lobos da noite passada?” 

     Jonas engoliu sua resposta, apenas concordando enquanto olhava para o rio. A mulher estava apenas sendo saudosista, não merecia grosserias. Não mais do que ele já recebera do filho na vida passada. 

    “Vida passada”. 

    O pensamento lhe trazia uma certa estranheza. De fato, as memórias que tinha de sua casa, seus avós, sua mãe, a escola, ela, tudo parecia distante, como se décadas houvessem se passado desde então. Como se fosse outra vida. 

    Graça continuava a falar: 

    — Queria que meu Guilherme estivesse aqui para ver isso. Lembro-me de uma vez que eu e meu marido o levamos para a Bahia, para o São Francisco. Ah, que viagem maravilhosa — Uma lágrima escorreu de seus olhos. 

    Jonas não sabia o que falar. 

    — Acho melhor voltarmos — disse ele enquanto se levantava. 

    — Sim, vim aqui porque o senhor Orlando está chamando. 

    Jonas assentiu. Por algum motivo, Graça não pronunciava o nome do homem corretamente. 

    Eles subiram o pequeno morro de volta para a formação de rochas. Jonas sentiu o cheiro de peixe frito enquanto se aproximava. Viu os outros reunidos em volta de uma fogueira. A refeição aconteceu em meio a conversa de todos. comentários alegres de Leandro, queixas de Túlio, preces de Graça, perguntas de Eric, e respostas de Orland. E, em meio a tudo isso, um maleável Jonas, que acompanhava tudo que era dito e participava a sua vontade. 

    — Não é perigoso ficarmos assim? Estamos no meio do nada e as rochas não estão acesas — Eric comentou em certo momento. 

    — Não, pois estamos de saída após terminada essa refeição — respondeu o cavaleiro. 

    E assim foi. Eles voltaram a caminhar, passo a passo, seguindo o fluxo de um dos braços do rio, deixando o único lugar seguro em que dormiram em dias. Leandro falava alegremente com Graça, e Erick com Orland. Túlio se limitava a algum comentário ocasional sobre o quanto já estava cansado de andar, ou questionando a direção para onde estavam indo. Jonas levava a espada consigo dessa vez. Preferia permanecer em silêncio, ouvindo. Essa era a sua função, afinal. 

     O dia passou por eles como tantos outros. Algumas vezes Jonas escutava algum som diferente do normal e avisava o cavaleiro, que tomava a frente da situação. No entanto, não houve maiores problemas, além de terem de atravessar os rios por algumas vezes, utilizando vaus que encontravam pelo caminho, onde a água era mais rasa. 

    Ao fim do dia, quando o sol já estava próximo do fim de sua jornada diária, o cavaleiro apontou, e Jonas viu algo que lhe encheu de alívio e surpresa. Uma torre cinzenta erguia-se à distância no topo de uma colina cercada por dois rios que se uniam em um. 

    O grupo avançou em direção a torre, atravessando os rios mais algumas vezes em alguns pontos profundos. Felizmente todos sabiam nadar, então não representou tanta dificuldade além de resistir à força da correnteza. No fim da travessia, todos estavam sem fôlego e fatigados. No entanto, o objetivo já estava a sua frente. Grande e sombria ante a escuridão da noite que agora começava com a última luz do crepúsculo desaparecendo no horizonte. 

    A torre em formato quadrangular parecia ter a altura de um prédio de três andares e era larga. Um muro a cercava. O portão estava entreaberto. O cavaleiro parou a alguns metros dele, encarando a construção com um rosto que Jonas não conseguia ver devido a escuridão da noite. A chuva fina ainda caía, envolvendo a todos como um transparente e frio véu.

    — Estranho — Ouviu Eric comentar. 

    — O que? — Graça perguntou. 

    — Não há luz. 

    — Talvez porque seja de noite? — disse Leandro. 

    — Por isso deveria haver luz, não? Tochas ou velas. 

    — Está abandonada — O cavaleiro declarou. 

    Um arrepio subiu a espinha de Jonas quando a lembrança de outra torre lhe veio a mente. O cavaleiro deve ter sentido o mesmo, uma vez que ele enfrentara as criaturas. Jonas conseguia lembrar dos sons que elas faziam.

    — Que caralho de sorte nós temos, não? — Túlio resmungou. 

    — Mesmo abandonada, ainda pode servir como abrigo — Jonas observou, desejoso de estar sob alguma proteção à noite. 

    — Esse é um posto da guilda — falou o cavaleiro. — Ela nunca os mantém sem ao menos uma dúzia de guardas para vigiar os entornos do grande pântano. 

    — E daí se abandonaram esse, o que é que tem? — disse Leandro, gesticulando com os braços. 

    — Se o abandonaram, tinham um motivo — Orland afirmou relutante. 

    — Dane-se o motivo, não dá pra continuarmos aqui no meio do tempo — Túlio grasnou, caminhando a frente. 

    — O que a gente faz então? Entra? — Eric perguntou, para ninguém em específico. 

    O cavaleiro parecia pensativo, Leandro seguiu Túlio, mandando-o esperar pelos outros. Graça permaneceu parada, pedindo sabedoria aos céus em mais uma de suas preces. Jonas pesava as palavras de todos, tentando seguir Túlio e entrar na torre, ou dar créditos aos avisos ao cavaleiro. Quando então ouviu algo vindo da mais profunda escuridão da noite. 

    Um som de escárnio e deboche. Risadas que pareciam vindas de demónios zombeteiros, e subitamente lembrou dos vultos da outra noite, movendo-se pela escuridão, com olhos que brilhavam como duas pequenas luas pálidas a encará-los. 

    Seu coração palpitou, seus membros gelaram, e internamente ele tomou sua decisão.

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