Capítulo 46 - Sorte.
O clarão dos relâmpagos atravessou as janelas dos inúmeros quartos que se seguiam no corredor, trazendo luz onde antes jazia escuro. E a sua frente, Orland teve uma visão digna dos monstros que aterrorizaram a humanidade nos primeiros dias, antes de Haradam pôr fim ao caos e as trevas. Uma criatura arqueada, grande como um cavalo de guerra, os fitava com oito olhos negros que brilharam à luz dos relâmpagos.
“Goorthr, dê força a minha espada”, recitou Orland em sua mente, ao ouvir o terrível som agudo que vinha da criatura. Um canto amaldiçoado, percebeu. Uma nota tremulando, como um cantor desafinado em seu último suspiro, antes de ir para os braços de Hewl.
Como para se sobrepor a criatura, o estrondo que sucedia o relâmpago veio – o violento som dos carros de guerra dos Aweinar. E com ele, ela avançou, como se tomada provocada pelo som dos exércitos do céu.
Orland então lembrou-se do escravo ao lado dele. Era valioso. Seus sentidos eram valiosos. Não valia a pena perdê-lo ali.
— Para trás — gritou, erguendo a mão que segurava a tocha, enquanto preparava a outra em uma posição de estocada.
O monstro entrou no campo de visão que a tocha conferia a Orland, e ele conseguiu ter uma visão mais clara de como a coisa era. Tinha asas, como as de um morcego, membros pontudos como de inseto. Pelos revestiam o que deveria ser o pescoço. A cabeça era triangular, com duas grandes orelhas peludas, e uma mandíbula protuberante, com quatro presas pontiagudas, duas em cima, duas em baixo, que se abriram, revelando sua boca infernal.
Orland esperou o monstro se aproximar, agitou a tocha, tentando desorientá-lo, para que pudesse atacar. No entanto, antes que deferisse a estocada que preparara, o corpo do monstro se dobrou com uma agilidade surpreendente. Um de seus membros delgados bateu contra a tocha, empurrando o braço de Orland para o lado oposto ao qual se movimentava, desequilibrando o cavaleiro e tirando força de seu braço da espada antes de desferir o golpe.
O monstro bateu contra o Orland, forçando o seu corpo para trás, arrastando os pés, que ainda estavam firmes no chão. A espada alcançou a criatura, mas não se aprofundou muito em sua carne.
Orland sentiu as presas do monstro se fincando na armadura, sem conseguir atravessá-la. Se fosse feita de aço comum, ele sentiria o seu ombro esquerdo ser perfurado por aqueles dentes, que mais pareciam estacas. Ele puxou a espada, preparando outra estocada, porém a criatura abriu suas asas, voando para trás e se desvencilhando.
Rapidamente, enquanto se afastava, ela abriu a boca e cuspiu algo em direção a Orland, que não teve muito tempo de reagir, além de cobrir seu rosto desprotegido com o braço da tocha, confiando na proteção de sua armadura.
O jato quente o atingiu, da cabeça até o joelho, esfriando em uma fração de tempo menor do que se poderia perceber. Ele tentou mover o braço com que se protegera, mas percebeu que tão logo o jato o atingira e esfriara, ele se enrijeceu, tornando difícil que ele movesse as partes que foram cobertas. O monstro investiu novamente, seu som agudo se alastrou pelo corredor. Orland, incapacitado de se mover, não conseguiria reagir a tempo.
Foi então que o escravo agiu, se colocando em uma posição em que se poderia acertar o monstro, enquanto este se concentrava em Orland. Ele girou a espada em sua mão esquerda, descrevendo um arco em direção ao flanco da criatura, aproveitando o movimento que seu corpo realizava para dar impacto ao golpe, percebeu Orland.
A espada atingiu o monstro, que soltou um ganido agonizante de dor, e rapidamente girou seu corpo, acertando o escravo com seus membros de inseto. O escravo levantou um braço para bloquear o impacto. Orland viu sangue sair dele quando foi atingido.
— Jonas — gritou Orland, ao ver o escravo ser arremessado contra a parede pelo monstro.
Sim, Jonas era o nome dele. Não estava acostumado a chamar escravos pelo nome, mas o fizera nos últimos dias. Aqueles escravos não pareciam como os outros, afinal. Tinham algo diferente em seus. Não pareciam subjugados como os outros. Não pareciam ter a mesma sorte. Escravos eram homens cuja sorte era entregue a outros. E a sorte de cada homem, não importando o seu esforço, determinava o seu lugar no mundo. Servos poderiam virar heróis, e reis poderiam morrer sem nome, esquecidos como as ruínas que um dia fora Adams, o primeiro reino dos homens, se a sorte assim determinasse.
Foi a sorte dos escravos que os fez serem capturados. Como também fora a sorte dos companheiros de arma de Orland que os permitiu serem mortos pelos dentes de adaga, naquela madrugada escura. Como também, a sorte do próprio Orlando o permitiu sobreviver ao ataque, e encontrar-se com aqueles escravos que fugiram, para que o servissem.
E a sua sorte lhe permitirá sobreviver por mais uma noite.
Com o braço que podia se mover, Orland soltou a espada que segurava e pegou uma das pedras ignis de sua bolsa – restavam apenas duas – canalizou um pouco de sua mana dentro, ativando-a. Os antigos feiticeiros de Gulveig diziam que mana era a essência que existia em cada coisa tocada pelo sangue de Yrm, nos dias após o primeiro expurgo. Orland era um dos tocados. Não podia lançar magias, como aqueles velhos vaidosos, mas podia usar mana. Com uma palavra de comando, a rocha se acendeu, consumindo a secreção expelida pelo monstro, que o impedia de se mover. A palavra tinha de ser pronunciada corretamente para que funcionasse.
Orland sentiu o calor das chamas, mas a armadura as impediu de tocar sua pele, tornando-as suportáveis. Se fosse uma armadura comum, a temperatura o teria cozinhado vivo, mas sua armadura era arcana, dando-lhe mais proteção.
Ele então, soltando a rocha, e pegando a espada novamente do chão, avançou contra o monstro, antes que a criatura atracasse suas presas em Jonas, que resistia, movendo sua espada com coragem e uma destreza alta demais para um simples iniciante.
Avançou, estocando sua espada nas costas da criatura, que se contorceu quase ao mesmo tempo, girando seu grande e delgado corpo. Seus oito olhos reluzindo sobre as chamas azuis do cavaleiro. As garras acertando-o nas costelas, com uma força que levantou seus pés do chão. O cavaleiro foi lançado, rolando, para dentro de um dos quartos. A queda fez as chamas se extinguirem.
Ouviu o som agudo e percebeu que a criatura o seguiu.
Antes que pudesse se erguer, o monstro o agarrou, e voou em direção a janela, que se quebrou, enquanto o monstro seguia noite afora enquanto a chuva caia, e os relâmpagos de Aweinar rasgavam os céus.
Orland se debateu, tentando se libertar, mas as garras da criatura fincaram-se ao seu redor, afundando na armadura, ainda que não a atravessassem. Antes que o monstro fizesse algum movimento, Orland contorceu seu braço, agarrando a última rocha ignis e injetou sua mana nela. Moveu seu corpo, tentando ficar de frente com a criatura. Quando o monstro moveu seu pescoço, abrindo suas presas e revelando o interior de sua terrível mandíbula, Orland enfiou sua mão no interior da boca da criatura, sentindo as presas se fecharem sobre o braço.
Incerto se conseguiria pronunciá-lo corretamente, ele recitou o encanto, um diferente do que usava para acendê-las. Este era o que ele usava para explodi-las. A cabeça do monstro explodiu, com um som que deixou seus ouvidos surdos por um momento, e eles caíram.
Orland girou o corpo no ar, pondo o monstro abaixo de si, e atingiu o chão enlameado com os ossos tremendo com o impacto. Tentou limpar o rosto, sujo de lama e pelos excrementos do monstro que ele explodiu, mas sentiu apenas uma das mãos tocar sua pele. Seus sentidos lhe escapavam, e, em meio ao atordoante limbo deixado pelo afastar de sua consciência, ele ouviu risadas.
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