Capítulo 47 – Oferta.
A chuva ficou mais forte, Graça percebeu. As suaves gotículas de água, que pareciam pairar sobre o frio ar da noite, em um piscar de olhos, transformaram-se em pequenas agulhas, caindo a luz da tocha dourada segurada por Túlio. A tocha mudara de cor ao menos duas vezes desde que o cavaleiro a deu a eles. Graça e Túlio se refugiaram próximos a o que parecia ser uma casinha de madeira, que deveria servir de estrebaria. Havia uma dessas na fazenda em que seu pai trabalhava. Havia muitos anos que não via uma estrebaria. Ela não pode deixar de se sentir nostálgica.
Os dias em que ia visitá-lo lá no final da tarde, quando o sol era mais ameno, e ele estava perto de sair do serviço, vieram a sua mente, assim como as vezes em que ele a ensinara a montar a cavalo.
Lembrou-se das vezes em que levou Guilherme para sua cidade natal, para aquela mesma fazenda quando ele era criança. De como ele fugira de um bode enlouquecido, após puxar o rabo do animal. Um doce resquício da alegria que um dia sentira.
— Caralho, que frio. Quanto tempo mais eles vão levar — O resmungar do garoto ao seu lado a tirou de seus pensamentos, e de repente se lembrou novamente da terrível verdade. Ela não estava mais na fazenda, e nem seu filho estava mais ao seu lado.
“Mais um dia estará”, disse para si mesma, com fé.
— Não se preocupe, querido. Já faz algum tempo que eles entraram, então devem voltar logo, logo — disse, tentando animá-lo.
A chuva continuava a cair ao seu redor. Um véu translúcido sobre o mundo sombrio, que era afastado pela luz dourada produzida pela tocha. Graça escutava o som da água caindo sobre o leito dos rios, que provavelmente estavam subindo seu nível de água. Som esse que era entrecortado pelos resmungos do garoto ao seu lado.
— Puta que o pariu, eu preferia ter ido com os outros. Olhar pra essa porra de portão é um saco.
— Ao menos não estamos na chuva — Graça comentou, tentando-o fazer ver o lado bom.
— Mas ainda estamos no frio — Retrucou ele.
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Aquele garoto não a tratava como os demais, que lhe mostravam um respeito reservado. Ela não sabia como se sentir em relação a ele.
Graça se perguntou por que todos os adolescentes eram impacientes, muito embora, daquela vez houvesse motivo para impaciência. Ninguém gostava de ficar na chuva ou no frio. Mas eles precisavam continuar ali, ao menos até os outros voltarem. Sentia-se inquieta, talvez por sua companhia também aparentar estar o tempo todo inquieta também. Túlio, o garoto rude, que aparentemente não conhecia o que era respeito pelos outros.
O tal cavaleiro, um homem brusco, mas confiável, os havia mandado permanecer ali, e dito algo sobre inspecionar a torre, junto de Jonas. Também mandou Leandro, o rapaz amável, e Erick, um garoto que parecia ser bem esperto, para olharem os arredores. Aparentemente, isso era para verificar a segurança do lugar, pelo que Graça entendeu.
Ela achara uma ótima ideia, mas se preocupava com a segurança de todos, inclusive, com a do cavaleiro. Seu marido sempre dissera que ela se preocupava demais com as coisas. Lembrava-se de sua última conversa ser sobre isso, antes de entrar no ônibus da rodoviária. Estavam deixando a cidade por um tempo, por causa de Guilherme. Não chegaram ao seu destino. Um acidente, talvez. Ela não lembrava.
A última coisa que se lembrava ter visto era o enorme rio à sua frente, cujas águas corriam mais fortes do que qualquer outro que já vira, até mais do que o São Francisco. Seu marido havia sumido. Sequer pensava nele naquele momento.
Lembrava de se sentir leve, pura, como se quase todas as suas preocupações estivessem limpas. Como Adão e Eva no Éden, com os anjos cantando a glória da criação ao seu redor. Ela queria ir para os campos, mas faltava-lhe algo. Algo que desejava. Algo que parecia estar no rio. E assim entrou nele, e despertou para o pesadelo após o sonho.
Um enorme templo, mergulhado em confusão e pranto. Um ser saído de uma visão profética, dizendo-se ser deus, anunciando a morte que os afligira e lhes ofertando algo.
“Mas esse não é o meu Deus”, ela pensou.
Parecia-lhe o tentador, a serpente oferecendo a maçã a Eva, em troca de conhecimento. Sabia, em seu íntimo, que deveria recusar. Deveria permanecer pura. Mas algo nas palavras sibiladas pela serpente lhe fisgou.
“Darei o desejo que os impediu de voltar aos campos eternos”, ele havia dito, “Permitirei a vós, retornar ao vosso mundo”.
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A chance de voltar à vida. A chance de ver seu filho novamente. E assim, com essa esperança, ela mordeu a maçã, abriu os olhos, despertando naquele novo mundo.
Uma luz clara surgiu em seu campo de visão, segurada por duas figuras magras e esguias. Mesmo com a chuva forte, a tocha não apagava.
Leandro e Erick se aproximaram, caminhando lentamente pelo lamaçal que se formara no chão. Graça sentiu pena ao vê-los encharcados como bois após a travessia do rio.
— Tá chovendo aí? — perguntou Túlio, com óbvio sarcasmo na voz.
— Não, porra, tá fazendo sol — Erick respondeu, com o mesmo sarcasmo.
Os dois se aproximaram, entrando embaixo da proteção da estrebaria.
— Porra, que toró, eu queria ter pegado um guarda-chuva daquele baú — Leandro comentou, tirando a água do rosto.
— Tudo que a gente pegou sumiu, quem garante que isso não ia sumir também? — disse Erick.
Graça se lembrou daquele momento, em que pegaram as dádivas do ser. Ela recebeu um frasco com um líquido cor de vinho do baú que abrira. Seu conteúdo era viscoso e tinha um cheiro estranho. Não sabia para o que servia, e não teve tempo de descobrir. Ela o perdera ao passar pelo portal.
— Então, como foi? — Graça perguntou aos dois.
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Erick deu de ombros.
— Nada, demais. Não tinha ninguém por aqui, mas de cima do muro de madeira, nós vimos um barco parado na lateral da torre — Erick respondeu, descrevendo um rastro de chamas enquanto gesticulava com a tocha.
— Um barco? — Túlio arregalou os olhos.
— Sim, ele tá próximo a margem — disse Leandro, enquanto se concentrava em ajeitar seu cabelo molhado.
— Boa — Túlio demonstrou um estranho entusiasmo. — Gente, é o seguinte: vamo pegar aquele barco e sair daqui.
— É a ideia — apontou Erick. — Ele não é muito grande, mas dá pra gente usar. Acho que cabe todo mundo.
— Que bom, podemos partir amanhã então, depois que essa chuv… — Graça foi interrompida.
— Amanhã, não. Vamos hoje — Afirmou Túlio. — Vamo esperar o cavaleiro dormir e ir embora.
Os outros ficaram em silêncio, apenas com o som da chuva caindo ao redor.
— Porra, de novo isso, cara? — Erick bradou, esfregando os olhos com as palmas das mãos.
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— Sério que tu quer abandonar o Orland? Ele nos ajudou pra caralho — afirmou Leandro.
Túlio balançou a cabeça, bufou e disse:
— Ele nos ajudou? Ele nos prendeu, ou se esqueceram do que aconteceu quando chegamos aqui?
Era verdade. Graça não percebera naquele momento, mas os garotos a explicaram depois. Orland era parte daqueles homens que os haviam amarrado. Ele os iria vender como escravos, se os monstros não tivessem atacado.
— Mas ele não sabe que éramos prisioneiros — Graça objetou —, não precisa…
— Você não sabe, nenhum de nós sabe. O que impede aquele cara de nos vender na primeira oportunidade?
— Ei, calma aí, não precisa falar assim — disse Leandro, levantando seu tom de voz.
Graça engoliu em seco, temendo que os dois começassem uma discussão, e acabasse em uma briga.
— Ele tem razão — Uma voz cortou o ar em resposta.
— Que? — Leandro indagou, com uma voz confusa.
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— Não sabemos o que o cavaleiro pretende, nem o que acontecerá conosco quando chegarmos em uma cidade. Esse mundo parece feudal, pelo que entendi, e ele é um nobre. Não sabemos ao certo como ele pensa ou suas intenções, além de que quer chegar até uma cidade.
— Mas não temos certeza — Graça falou, tentando confrontá-lo.
— Sim, e isso pode nos matar — Erick disse e o peso de suas palavras reverberou pelo ar carregado com o som da chuva.
Leandro fez menção de falar algo, mas fechou a boca.
Graça sentiu um arrepio subir por sua espinha. Sua boca estava seca, e suas mãos pareciam um pouco dormentes.
— Não podemos fazer isso — Ela insistiu, sem saber ao certo o que dizer.
— Vamos decidir então — disse Erick. — Eu e o Túlio somos a favor, a senhora contra, e o Leandro?
Eles olharam para o rapaz, que transparecia o nervosismo da decisão na face.
— Eu não sei, eu… não acho certo abandoná-lo. Ele nos salvou daquela vez.
— Então são dois a dois — Erick esfregou novamente os olhos manchados pela aparente falta de descanso.
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Túlio resmungou, visivelmente inconformado.
— Falta um voto. Vamos esperar Jonas voltar, e quando o cavaleiro dormir… Quem está rindo? — Erick perguntou, virando o rosto para os lados.
Todos se entreolharam.
— Ninguém — disse Leandro.
— Ouvi uma risada.
Então Graça a escutou. Um som zombeteiro que quase fez seu coração esquecer como deveria funcionar. O mesmo som que passaram a madrugada anterior ouvindo. Ela olhou para os muros de madeira, que eram cobertos pela escuridão da noite, e pelo véu da chuva.
— Que porra é aquela? — Túlio apontou para o alto do muro.
Uma grande forma animalesca estava empoleirada acima, observando o mundo abaixo. Um clarão clareou a noite revelando o monstro que os observava, sua sombra se projetando sobre eles. Ele ergueu sua cabeça para cima, e um uivo atravessou a noite chuvosa. Logo depois, mais duas sombras saltaram por sobre o muro, aterrissando no solo empapado.
Um estrondo do trovão ressoou, alcançando os ouvidos de Graça, alcançado o mais profundo sentimento de medo que ainda se escondia em sua alma.
As enormes criaturas se aproximaram, na chuva, rindo. Eram três. Um se aproximava lentamente enquanto os outros dois descreviam um círculo pelas laterais.
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Graça engoliu em seco, sentindo suas pernas trêmulas, e o coração bater em um ritmo desregulado. Eram os lobos de antes. Iriam atacá-los, e dessa vez, não haveria nenhuma proteção para os salvar.
— Porra, o que a gente faz? — Túlio berrou.
— Fiquem juntos — Erick gritou com uma voz trêmula.
— Fica perto da gente, dona Graça — bradou Leandro, se pondo à frente dela.
Os lobos se aproximaram lentamente, passo por passo. Rindo o tempo todo. Os relâmpagos iluminavam os céus, e a chuva parecia aumentar mais do que era possível.
— Cadê aquela merda de cavaleiro? — Túlio resmungou.
— Pensei que quisesse abandoná-lo? — Erick retrucou, erguendo a tocha que carregava contra as criaturas.
Graça fez a única coisa que podia fazer naquele momento, uma prece, esperando que alguém a escutasse.
Os lobos pararam ao alcance da luz e mostraram os dentes, talvez se preparando para o ataque.
Túlio correu, e uma das criaturas o perseguiu.
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— Esper… — Antes que Erick terminasse de falar, os outros dois avançaram.
Erick sacudiu a tocha, tentando afastar um deles. O outro lobo avançou contra Graça e Leandro, que a empurrou para o lado, se pôs um passo à frente, e saltou sobre a criatura, um momento antes que ela abrisse a mandíbula para abocanhá-lo. Ele chutou a cabeça do monstro, que rosnou em resposta. O monstro tentou agarrá-lo, mas ele saltou de novo, pondo certa distância entre ambos.
Leandro olhou para ela, e fez um aceno de cabeça tão audível como se estivesse gritando: corre!
Graça não queria deixá-los, mas seu medo prevaleceu. Ela correu, ou ao menos tentou, entalando os pés na lama causada pela chuva forte, que ainda caia. Ouviu um som parecido com o de um ganido atrás de si. Olhou e viu o monstro que avançara sobre Erick se debatendo no chão. O garoto estava agachado sobre um joelho, respirando com dificuldade.
Ela olhou para onde Leandro estava, e viu o momento exato em que o monstro agarrou seu pé, e o arrastou pelo chão.
Graça, olhou para a cena, horrorizada, até algo a agarrar pelo braço, e a erguer, balançando-a violentamente.
“Outro lobo”, percebeu.
Sentia lâminas cegas perfurarem a carne de seu braço. A dor atravessou seu corpo enquanto a coisa balançava, até jogá-la contra o chão sujo, pressionar uma de suas patas contra o corpo de Graça, e puxar o membro, separando do resto de seu corpo.
Graça gritou. Um som visceral, que nunca pensou poder sair de sua boca. Seu corpo inteiro doía, mas o que lhe faltava parecia abarcar todas as outras dores. Sentia sua consciência oscilando. Mas, por algum motivo, uma sensação nova surgiu em sua mente, como se algo preenchesse um espaço vazio lá dentro. O monstro se afastou, se debatendo, chacoalhando sua cabeça canina, esfregando-a no chão de lama. Um sentimento, como o de uma fisgada, atingiu a cabeça de Graça, e o monstro levantou o seu focinho, olhando em sua direção, permanecendo imóvel.
Foi então que algo acertou com força o espaço no chão entre ambos, jogando lama para todos os lados.
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