Capítulo 49 - Seguindo o fluxo.
— Jonas, venha cá — Ele ouviu uma voz rouca o chamar, e se apressou seu passo na direção em que ela se originava.
Ele entrou na garagem, sentindo cheiro de cigarro permeando o ar. Muito da rouquidão na voz de seu avô era devido a eles.
— Oi vô.
— Você mexeu no meu rádio? — O velho perguntou. Sua carranca retorcendo as rugas da face. Ele estava debruçado sobre a mesa, mexendo no rádio.
— Não, nem toco nisso. A gente tem tv hoje em dia, sabe?
— Então quem mexeu? Saiu da rádio em que eu tinha deixado — resmungou o idoso, apertando repetidamente um botão do rádio à medida que escutava as programações que passavam.
Jonas se perguntava quanto tempo demoraria para aquele botão quebrar.
“Provavelmente ele vai dizer que quebrou outra pessoa apertou esse botão”, pensou.
Ele pensou em dizer ao avô que provavelmente, ele mudara a rádio sozinho, pensando que estava errada, como já o vira fazer antes, mas desistiu. Não queria gastar sua tão estimada paciência.
O velho grunhiu.
— Vai apertando aí até voltar ao normal, eu preciso trabalhar — disse ele, afastando-se do rádio e se aproximando do carro.
Jonas mudou a frequência da rádio, prestando atenção aos anúncios e músicas, procurando a que seu avô costumava ouvir, quando uma voz alegre ressoou as suas costas.
— Parabéns pra você…
Seu avô acompanhou com uma voz rouca.
Jonas se virou, para ver sua avó entrando com um bolo de chocolate nas mãos. Velas palito faiscavam no topo. Com seu passo arrastado, ela caminhou até a mesa, colocando o bolo ao lado do rádio. Seu avô se aproximou, se pondo ao lado dos dois.
Ele cobriu a metade inferior do rosto para disfarçar um sorriso sem graça, que se formara devido a vergonha de ter sido pego de surpresa, enquanto seus avós continuavam a cantar. Uma fraca salva de palmas concluiu a festividade.
Sua avó o abraçou, sorrindo, e seu avô começou outro cântico.
— Com quem será, com quem será…
— Ah, vô, para com isso.
A avó de Jonas acompanhou.
— Vai depender, vai depender se a Júlia vai querer — concluíram eles, rindo.
Jonas suspirou, constrangido, olhou para a vela faiscando sobre o bolo, sentindo sua visão se turvando. A fumaça do cigarro de seu avô ficou mais densa. Jonas começou a tossir com o cheiro forte que de repente empestara o lugar.
A faísca da vela pareceu mais forte e barulhenta. A fumaça se tornou maior e mais densa. Seu cheiro mudou, ficando mais adocicado. Uma interferência pareceu afetar o rádio, que passou a produzir um som agudo, parecido com o som de um morcego. A luz do cômodo piscou freneticamente, até se apagar.
— Faltou energia? Ou a lâmpada queimou? Vô? — Jonas olhou para o lado e notou que seus avós haviam sumido.
A garagem estava escura, e tudo o que conseguia ver era a vela a piscar. De repente, ela se moveu, afastando-se dele. O que não fazia sentido, uma vez que deveria haver uma parede ali.
A luz da vela pareceu se erguer no ar, e uma silhueta surgiu segurando-a.
— Com quem será, com quem será… — Vozes vindas da escuridão começaram a cantarolar novamente.
A silhueta passou a ser mais visível. Longos e encaracolados cabelos escuros caíam sobre um corpo esbelto e delicado. Olhos castanhos brilhavam acima de um fino nariz, flanqueado por bochechas pálidas. Era Júlia, vestindo uma roupa vulgar que ele nunca a tinha visto usar, mas que lhe era familiar.
— Não — Ela falou, mas a voz que saiu de sua boca era…
As vozes pararam de cantarolar e começaram a rir histericamente.
O rosto dela pareceu se transfigurar. Oito olhos se abriram ao longo de sua face, a luz da vela clareou a tudo, e no mesmo instante ela abriu uma boca cheia de dentes pontiagudos, pulando na direção de Jonas.
Ele se sobressaltou, sentando-se. O lugar em que estava sentado sacudiu e balançou de forma atordoante. Era dia, mas tudo era tão claro quanto o céu cinzento acima permitia, um nevoeiro os cercava, algo que lhe trazia más recordações. Sua mente lentamente o recordou que lugar era aquele. Estava num barco, junto dos outros.
Jonas sacudiu a cabeça. Fora um sonho, mas ele se lembrava daquele dia. Seu último aniversário antes daquele dia na quadra. Mas Júlia não estava lá, e nem a sua…
Grunhidos começaram em ambos os lados de Jonas, e seu braço também começou a doer. Graça e Erick estavam deitados lá.
— Não se mexa assim, eles ainda estão machucados — disse alguém atrás dele.
Era Leandro. Ele estava sentado próximo a ponta traseira do barco, que não era muito grande, mas largo e comprido o suficiente para três pessoas deitarem-se lado a lado. Eles o usaram para fugir da torre na noite anterior, enquanto o monstro se distraía com o lobo.
Desceram o rio, sendo banhados pela chuva, na mais completa escuridão. Mais de uma vez Jonas pensou que iriam afundar devido a correnteza, mas por milagre ou sorte, a manhã veio, a chuva se foi, e eles continuaram no curso do rio.
Jonas olhou para o braço que faltava em Graça, o qual fora arrancado por um dos lobos. Se Jonas não tivesse derramado aquele líquido, talvez a mulher não tivesse sobrevivido. “Uma solução feita pelo meu fármo”, o cavaleiro tinha dito, e explicado a Erick como usar, após muita insistência deste em saber. Havia soluções para “vigor”, como assim chamou Orland, e soluções para tratar ferimentos, como a que Jonas aplicou em Graça.
Além de três soluções de vigor, havia apenas mais duas daquele tipo na bolsa que antes fora do cavaleiro, Jonas usara uma em seu braço, sentindo a carne queimar enquanto o ferimento se fechava. Ainda o sentia doer, e não movia o braço, mas era como se ele tivesse sido enfaixado com uma nova pele. Apesar de sua perna, Leandro afirmara não precisar da outra, preferindo deixá-la para outro momento.
Jonas se sentou, tomando cuidado para não mover os outros. Sua cabeça doía. Ainda lembrava do sentimento ao ver o corpo de Túlio sem vida no chão. Assim como do pavor que o acometeu, quando o monstro se ergueu na escuridão, enfiando suas presas por detrás da cabeça do cavaleiro. Ele seria o próximo, se um dos lobos não tivesse saltado sobre a criatura.
“Sorte”, fora isso que os salvara, e Jonas tremia em pensar nisso.
Jonas olhou para Leandro que tinha algo em suas mãos. A bolsa do cavaleiro. Jonas não sabia ao certo por que a tinha pegado, apenas que lhe pareceu o melhor a se fazer. O cavaleiro estava sempre com ela junto a si, obviamente por ter nela muitas coisas úteis, ou assim ele pensou, até perceber que, além dos frascos, não havia mais nada além de uma pequena peça de madeira e ferro, em formato de escudo, com a imagem de um bode branco desenhada em um fundo negro.
Pareceu-lhe um brasão, como os que vira em jogos e filmes, e o cavaleiro havia dito algo sobre ser de linhagem nobre.
— O que fazemos agora? — Ouviu Leandro perguntar.
Jonas ergueu a cabeça, olhando nos olhos do amigo. Estavam cansados e caídos. Ele suspirou, antes de responder:
— O que o cavaleiro nos disse pra fazer, vamos seguir o rio até encontrar uma vila ou coisa do tipo.
— Mas e se acharmos outro bicho daqueles?
Jonas abriu a boca, mas não conseguiu exprimir qualquer som. Não poderia mentir para o amigo. Ele suspirou novamente.
— Não sei o que vamos encontrar, mas é melhor só seguirmos o fluxo — Ele disse.
— Túlio morreu, de verdade?
— Sim — Jonas concordou com a cabeça, olhando para baixo.
— Ele disse para fugirmos à noite, estávamos esperando você para decidirmos e então…
Jonas passou uma mão pela testa até os cabelos, e suspirou uma terceira vez. Sentiu um movimento, acompanhado de um grunhido e virou a cabeça para o lado, vendo Erick se levantar. Ele parecia debilitado. Não estava ferido, mas seu corpo estava mole como gelatina, e pálido como se o sangue o houvesse abandonado.
Jonas lembrava de tê-lo visto fazer algo na outra noite. Sentiu vontade de perguntar, mas se pegou ouvindo um som estranho nas águas.
— Tem algo ali na frente — disse.
Leandro se sobressaltou, fazendo o barco balançar. Uma sombra escura pode ser vista no nevoeiro, vindo na direção deles. Jonas engoliu seco, ficando tenso até vozes serem ouvidas. “Pessoas”, percebeu com ânimo, que diminuiu ao lembrar do primeiro contato que teve com pessoas daquele mundo.
A visão de um barco, grande o bastante para ter velas, surgiu por entre o nevoeiro, se aproximando.
Ouviram uma voz gritar.
— Quem sois?
Jonas olhou para Leandro e então para Erick, que sussurrou algo em voz baixa, e Jonas assentiu.
— Somos servos de sir Orland Capro — Respondeu.
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