Índice de Capítulo

    Os homens em marcha avançavam pelo caminho dos vermes, nas encostas dos grandes paredões de rocha. Por vezes, o mar dourado podia ser visto no horizonte. Suas ondas de areia se movendo lentamente em razão dos fortes ventos. A frente da coluna, de forma orgulhosa, avançava Burak, montado em seu camelo dourado, cercado por seus guardas de confiança – também montados – e seguido de perto por um grupo de abençoados que, a pé, acompanhavam a comitiva, Zaya entre eles. Outros grupos estavam espalhados pela a coluna. Mas como Zaya era buscadora, Burak a queria perto dele.

    Por isso Zaya de tempos em tempos, realizava pequenas buscas. A quantidade massiva de sombras, tão próximas, atrapalhava seu esforço, no entanto.

    Atrás, dezenas de homens armados de ferro e couro, caminhavam com passos firmes e pesados, seguindo o seu comandante.

    O sol reinava acima.

    Zaya levou o odre até a boca, e deixou a água tocar os seus lábios, resistindo à vontade de espremê-lo para beber mais. Aquilo poderia tanto salvá-la, quanto matá-la depois. Ela preferia ter água quando chegasse o depois. Suas pernas doíam e sua mente oscilava por conta do calor. Nunca em toda a sua vida tinha caminhado tanto. A coluna marchava por dias inteiros, do nascer do sol, e durante o seu pico, parando para repor as energias apenas quando o grande vigia dos céus se recolhesse para que a noite pudesse começar.

    Não descansavam tanto tempo quanto Zaya gostaria. Ela sequer se lembrava de sonhar nas vezes que reclinou sua cabeça para dormir. Quem não se levantasse para marchar quando ordenado era espancado até ficar de pé. O objetivo parecia ser apenas um na mente de Burak, cumprir as ordens do anfitrião.

    Zaya se perguntava como ainda conseguiam manter esse ritmo de marcha em condições tão exaustivas, e a resposta que passava em sua cabeça era sempre a mesma. Saadi. O sombrio conselheiro permanecia em sua tenda móvel durante todo o tempo de marcha, sequer saindo quando a coluna parava.

    Burak enviava mensageiros para trocar informações com o sinistro homem magro.

    Saadi também tinha suas companhias. Uma fila de jovens, e belas mulheres assustadas caminhava a pé atrás da tenda. Tiradas de famílias de hóspedes para o harém do anfitrião. Intrigava a Zaya que Saadi tivesse permissão para pegá-las para si daquela maneira. Porém, havia outra coisa que a intrigava: o número delas parecia diminuir.

    No início da marcha havia mais de uma vintena de jovens. Porém, com o passar dos dias, esse número diminuiu para pouco mais de uma dúzia. Rumores circulavam por entre as fileiras da coluna a respeito desses desaparecimentos. Alguns dos quais Zaya tinha arrepios ao ouvir.

    O vento parecia forte a cada dia. “As tempestades se aproximam”, era o que eles anunciavam.

    Zaya tremia pensando nas nuvens de areia que em breve se levantariam para, por alguns meses, tapar o sol e soterrar o mundo abaixo dele. Ela queria estar protegida dentro da vila quando isso acontecesse, não vagando por entre as rochas atrás de pergaminhos inúteis.

    — Mexa-se mais rápido ou saia da frente — bradou uma voz ríspida atrás de Zaya. Ela deu um passo para o lado, deixando um homem robusto passar por ela com passos largos e apressados.

    Um ritmo bem desgastante para um homem comum, mas aquele era um conhecido possuidor da benção da força, e podia resistir a esse esforço.

    — Que rude — resmungou alguém ao lado de Zaya. Uma bela garota de cabelos acinzentados. — Se quiser eu posso fazer algo a respeito dele.

    Zaya negou com a cabeça.

    — Deixe-o ir na frente, se Assh`hur for bom, ele provavelmente cairá num fosso — disse entre dentes.

    A garota riu.

    — Irá atrair algum gênio ruim com esses pensamentos — brincou a garota, rindo. Um riso prazeroso.

    Zaya sorriu em resposta, o que lhe deu um sentimento estranho.

    — Meu nome é Tashia, qual é o seu? — perguntou ela.

    — Zaya.

    — Ah, você é a filha do estrangeiro! Meu pai me contou histórias a respeito dele — A garota saltou de animação, como uma lebre.

    — Seu pai?

    — Ele era um guarda, até perder um braço em uma disputa contra outra aldeia — disse a garota, com certa tristeza na voz, que fez Zaya sentir um peso em seu peito. Um sentimento estranho, quase como se não fosse seu.

    Zaya fechou os olhos e olhou a sombra de Tashia, percebendo o que estava acontecendo.

    — Pare com isso — disse de forma ríspida, arrancando um leve olhar de surpresa da garota.

    Tashia abriu a boca por um momento e então deu-lhe um pequeno sorriso zombeteiro.

    — Desculpe, é força do hábito — falou ela.

    — É um hábito muito incômodo — Zaya afirmou.

    A garota soltou outra risada.

    — E como uma bênção pode ser incômoda? — perguntou Tashia, confirmando o que Zaya vira em sua sombra.

    Tashia devia ter a benção do encanto, a qual era capaz de fazer as pessoas se simpatizarem por ela, ou era isso que Zaya aprendera com seu pai. Apesar de saber quais membros da aldeia eram abençoados, Zaya não conhecia muito sobre suas habilidades.

    — Então você é capaz de perceber abençoados? Incrível —  ela disse, seus olhos brilhavam de forma adorável, fazendo o coração de Zaya se encher de ternura. — Bem que eu queria saber como isso funciona.

    — Já disse para parar — ordenou Zaya mais uma vez.

    A garota voltou a rir, se desculpando novamente.

    A noite veio e a coluna parou. Tendas foram erguidas, fogueiras acendidas, e comida distribuída.

    A refeição foi servida. Um cozido de lebres caçadas pelas patrulhas.

    Zaya sentou-se junto ao restante dos abençoados, que tinham um lugar na mesa da tenda de Burak, na qual ela não queria sentar, se tivesse opção. Quase todos os abençoados eram residentes, enquanto ela, desde que seus pais foram exilados, era tratada como hóspede, mesmo sendo uma abençoada. Para além disso, bastava que estivesse tão perto de estranhos para que se sentisse incomodada, mas a presença de Burak tirava seu apetite. Ela não conseguia olhá-lo sem lembrar da cabeça de Luqa rolando e caindo no chão, enquanto um forte tom de vermelho se espalhava em cima da mesa do Anfitrião.

    Ela passara anos junto a Luqa, Touma e os outros, e perdeu todos em uma única noite. Assim como ocorrera com seus pais. Mas não havia nada que ela pudesse fazer, afinal, essa foi a vontade de Assh`hur.

    Mesmo assim, ela forçou-se a engolir cada colherada.

    As conversas se resumiam às discussões entre Burak e seus guardas mais próximos sobre o progresso da marcha. Zaya notou que o abençoado rude de mais cedo estava próximo a eles, escutando a tudo enquanto lambia o que sobrara da tigela.

    Tashia estava sentada de frente para Zaya, com uma feição de tédio em seu rosto. Parecia que todos desejavam apenas voltar para a aldeia, Zaya ao menos se sentia assim.

    O ambiente entediante mudou quando o motivo de tudo aquilo entrou na tenda.

    — Vejo que estão tendo uma refeição magnífica, senhores — disse Saadi, com um misto de educação e morbidade em sua voz suave.

    Os rostos de todos se tornaram pálidos, o ar parecia estar mais pesado. Até os guardas de Burak pareciam tensos. Alguns tinham suor escorrendo por seus rostos. Zaya não se atreveria a fechar os olhos perto da presença de Saadi. Ela não queria ver o que a sombra dele revelava.

    — É incomum que apareça dessa forma, residente Saadi.

    Saadi fez um gesto de desdém com a mão.

    — Por favor, não me trate com tais títulos.

    Burak endureceu seu semblante.

    — Não precisa me fazer essa expressão, meu caro, basta que ouça o que tenho a lhe dizer. 

    — E o que tem a dizer? — Burak contestou com voz ríspida.

    — O que me foi mostrado — Saadi gesticulou 

    Burak bufou.

    — Diga de uma vez a que veio, bruxo.

    — Ah, acredito que esse título me calhe melhor — Saadi se moveu ao redor da mesa enquanto falava, parando atrás de Tashia. — Embora seu tom seja um tanto desagradável — Sorriu.

    Zaya estava cansada daqueles sorrisos.

    Um mal estar se apossou de seu corpo. Ela começou a tremer, seus braços e pernas pareciam moles e seu estômago queimava. Olhou em volta e reparou que todos na mesa tinham expressões angustiadas em seus rostos. Apenas Burak permanecia da mesma forma de antes.

    Ela olhou para Saadi, que mantinha um semblante sério em seu rosto.

    — És bem formidável, “guerreiro”. A ti calha esse título — disse ele. Ao mesmo tempo, o mal estar sumiu, e Zaya sentiu um alívio percorrer seu corpo.

    A expressão de Burak se fechou ainda mais, rugas se dobraram e veias saltaram de seu rosto.

    — Fale, ou saia — bradou.

    — Se continuarmos nesse ritmo, perderemos aqueles que buscamos.

    Burak se remexeu em seu assento.

    — Mas dissestes que iríamos encontrá-los.

    — Sim, no entanto as coisas mudaram, nossos alvos encontraram para si uma proteção bem incomoda — Saadi começou a andar, rodeando a mesa.

    Burak permaneceu em silêncio, e o bruxo, como ele mesmo havia se chamado, continuou.

    — Uma caravana que segue o caminho do pó batido — Ele parou em frente a uma garota abençoada de cabelos castanhos, de quem Zaya sentia um cheiro adocicado toda vez que se aproximava. Uma filha de um residente.

    — Diga então bruxo, o que devemos fazer, desistir? —  Burak resmungou com leve desprezo na voz.

    — Não, meu caro, mas devo dizer que exigirá um esforço a mais de minha parte para que alcancemos nosso objetivo.

    Um dos guardas de Burak se levantou.

    — Esforço? Tudo o que você faz é ficar sentado naquela tenda dia e noite, enquanto nós… — O soldado parou de falar, começando a sufocar.

    Zaya viu um brilho não provocado pelas tochas da tenda nos olhos de Saadi.

    Burak pigarreou, e Saadi “libertou” o guarda, que caiu no chão, tossindo.

    — Não fale do que não sabe, guarda.

    — Que “esforço” é esse que você diz precisar?

    Saadi baixou a cabeça até o ombro da garota e cheirou, fazendo-a se encolher.

    — Preciso que me dê uma abençoada, esta servirá.

    Momentos depois, ela o acompanhou para fora da tenda, pálida.

    Zaya tomou seu último gole de água restante no odre para aquele dia – mais água seria distribuída no dia seguinte – e deitou-se nas cobertas que havia trazido, sem conseguir dormir, imaginando o que estava para acontecer a garota que fora levada.

    Na manhã seguinte, os ventos que tanto a preocupavam pareciam ter cessado, e os homens, e até ela mesma, pareciam mais dispostos. Zaya não vira mais a garota que foi levada. Apenas ouviu mais rumores, sobre vozes estranhas dentro da tenda de Saadi.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota