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    A enorme tenda sacudia com o vento. Era revestida com couro de camelos do mar vermelho, um animal digno dos filhos de um Xá, dizia o eleito, o que lhe dava uma resistência maior, se comparada a tendas de tecido comum. Mesmo assim, Sarosh a via balançar e sacudir com a forte ventania. Estavam se aproximando das épocas de tempestades, mas ele não esperava que os ventos ficassem tão fortes tão rapidamente.

    — Tem certeza que foram eles? — perguntou o eleito.

    Ele estava sentado em sua cadeira de marfim, pintado e entalhado para parecer com madeira – uma preferência do eleito a qual Sarosh nunca conseguiu entender.

    — Acredito que sejam os mais prováveis, uma vez que dois deles desapareceram essa manhã, logo após os vigia serem atacados. — disse Sarosh.

    O eleito não respondeu.

    — Encontramos eles a nos espiar naquela noite. É estranho que pessoas viajem sozinhas por um lugar como esse sem a devida proteção. Talvez sejam espias de uma aldeia subterrânea — disse Gaisha, com sua voz fina.

    — Eles nos pagaram com moedas. Os ratos do deserto desconhecem o valor no metal que não esteja fundido em uma arma ou armadura — retrucou o eleito, mudando de posição no assento, apoiando o queixo sobre a mão direita.

    — Podem ter aprendido com um estrangeiro que se integrou à aldeia. Tal como o meu senhor disse ter acontecido a um antigo companheiro seu — retrucou Gaisha.

    O eleito tamborilou o rosto com os dedos. Rugas conhecidas marcavam o seu rosto.

    — Se é assim, então por que escolheram nos atacar tão perto de Narkul, quando poderiam tê-lo feito antes? — inquiriu ele.

    — Podem ter viajado todos esses dias para despistar nossas suspeitas, e então nos abater — Gaisha respondeu de forma firme.

    O eleito continuou tamborilando os dedos no rosto, até finalmente suspirar.

    — Mesmo se for o caso, eles estão sobre a minha proteção, pelas leis de Karapruta — disse finalmente.

    — Por isso ainda estão vivos, eleito. Ao menos até chegarmos em Narkul — afirmou Sarosh. — Os levaremos amarrados até Narkul, e então os deixaremos para o Xá decidir o que fazer com eles.

    — Bom. Que seja dito que cumprimos o acordo.

    “A confiança é a nossa moeda”, Sarosh recitou em sua mente o dito dos eleitos. Era essa reputação que tornavam as companhias de Karapruta diferentes das demais. Eles não tornavam atrás em sua palavra.

    — Isso não nos impede de puni-los até lá, para ensinar o que acontece a quem faz mal a nossos membros. Talvez se os deixarmos no sol, sem água durante o dia inteiro, e então nús a noite, poderá servir de exemplo.

    O eleito grunhiu.

    — Assim me fará igual aos vendedores de ossos das ruas de Karapruta, os quais vendem ossos de lagarto de lama, afirmando serem de basiliscos — cuspiu com óbvio desagrado. — Nossos homens estão vivos, então será feito assim: deixem-nos presos e vigiados, mas dê-lhes comida e água para que sobrevivam ao resto da viagem. Entreguemo-nos ao Xá, mas junto de todos os seus pertences. Mesmo que sejam ratos do deserto, ainda fomos pagos, e honraremos isso.

    Gaisha se calou.

    Sarosh sentiu a adaga branca que pegara do rapaz por baixo da roupa. Era uma arma rara naquele lugar, seria uma pena se desfazer dela, mas essa era a vontade de seu senhor.

    — Agora que isto já foi resolvido, saiam. — disse ele, com um gesticular de mão.

    Sarosh e Gaisha fizeram uma reverência e se retiraram da tenda, confrontando os fortes ventos que a faziam sacudir. Sarosh sentia algo estranho sobre eles.

    Eles caminharam pelo acampamento em desordem, observando o caos que ocorria com o desmontar das tendas. Gaisha murmurava para si mesmo, reclamando da decisão do eleito sobre os presos. Era um homem acostumado ao sangue, Sarosh sabia. Um antigo ladrão que escolheu a servidão ao executor, fugindo de sua cidade natal e ingressando na Companhia do Elefante Branco.

    Eles aproximaram-se de outros guardas e deram as instruções de ronda para o dia. Gaisha os revelou os detalhes das ordens do anfitrião para com os prisioneiros. Sarosh poderia repreendê-los, mas sabia que as conversas não cessariam por conta disso. Ele apenas deixava que falassem.

    — E o que é esse Xá? — perguntou um recém ingressado.

    — É o governante de uma cidade — respondeu-lhe outro.

    — Ele mandará cortar a cabeça deles e usará seus corpos como alvo para treinar os arqueiros — falou um terceiro.

    — Só dos homens, as mulheres entrarão para o seu harém.

    — É uma pena, já faz dias que eu gostaria de provar daquela mulher.

    — A pequena também me anima os olhos, talvez já tenha se livrado de sua impureza.

    — Antes de chegarmos a Narkul, há ainda uma multidão de dias. Podemos reivindicar nosso pagamento por essa proteção — propôs Gaisha.

    — As ordens do eleito são de não lhes tocar até que chegarmos a Narkul. Se de alguma forma alguém as desobedecer, o sangue desse se derramará sobre Jamar — Sarosh repreendeu-os tocando com uma mão o lugar onde estava sua espada cimitarra.

    Gaisha contorceu o rosto e se afastou. O restante dos homens assentiu, com gestos temerosos.

    Esse tipo de conversa não surpreendia a Sarosh. Metade dos membros da companhia estavam em situação semelhante a de Gaisha, fugindo de uma lâmina para estar ao alcance de outra lâmina, caso retornassem aos seus hábitos antigos.

    E Sarosh era essa lâmina.

    Ele os dispensou, e rumou em direção a tenda dos guardas, percebendo algo diferente no caos a sua volta. Percebeu o desespero dos viajantes enquanto voltavam a levantar as tendas, que minutos antes estavam desmontando.

    Homens gritavam, animais eram soltos e mulheres e crianças corriam, enquanto seus cabelos e mantos esvoaçavam ao vento. Que parecia estar a ponto de querer levar a todos.

    Foi então que Sarosh percebeu algo estranho. O vento vinha de uma direção diferente da habitual. E, ao olhar na direção de onde sentia a torrente, ele viu uma alta nuvem dourada, reluzindo ao sol, que engolia as rochas por onde passava.

    Mas o que o perturbou, não fora ela em si, mas sua origem. Não vinha do deserto, mas das entranhas das rochas, na direção oposta.

    Ele correu, voltando por onde viera. Precisava avisar o eleito. Então percebeu que isso seria inútil. O eleito saberia disso, ele indo até lá ou não.

    Olhou em volta, procurando por um abrigo e entrou na tenda mais segura que avistou, assustando o comerciante que lá estava.

    Mais pessoas, que provavelmente não conseguiram montar as suas a tempo, tentaram entrar na tenda. Algumas conseguiram, antes da nuvem vir, e escurecer o mundo.

    Sarosh podia sentir a tenda sacudir, e imaginar a areia se amontoar ao redor, enquanto o vento rugia no mundo lá fora.

    As pessoas tremiam, assustadas, rezando para meia dúzia de deuses, em meia dúzia de línguas.

    Algo que Sarosh nunca conseguira se acostumar. Aquela confusão de línguas, resultado de tantos viajantes de povos distintos, viajando juntos sobre a bandeira da companhia, o deixava perturbado.

    Ele, então, se lembrou de algo que lhe chamou atenção. Aquelas pessoas falavam com todos, em suas línguas de origem, percebeu. Não deveria ser possível para ratos do deserto conhecer tantos dialetos. Mas se eles não eram habitantes das aldeias subterrâneas, então, de onde eram?

    A tempestade se estendeu. Parecia já ter durado horas. O que fazia as pessoas murmurarem, impacientes, especulando por quanto tempo mais ficariam daquele jeito.

    Sarosh também não podia deixar de se sentir ansioso. Ele sabia que as tempestades do mar dourado podiam durar dias. O bastante para alguém despreparado morrer de fome.

    Mas, para sua surpresa, o vento fora da tenda cessou. A luz do sol voltou a brilhar, fraca, o que indicava que estavam próximos do entardecer.

    Ele saiu da tenda, deixando a areia, que se amontoou até a altura da cintura, escorrer para o interior. Ele forçou sua subida, sentindo o pé afundar. E viu o estado deplorável que se encontrava o acampamento.

    Metade das tendas estavam derrubadas. Invadidas pela areia. As outras estavam soterradas do mesmo jeito da sua. Vira parte de corpos de pessoas enterradas na areia. Mais homens saiam das tendas, tentando andar pela camada de areia, afundando seus pés, do mesmo jeito. Muitos deles eram guardas pegos no meio da confusão.

    Em tantos anos viajando pelo deserto, nunca vira uma tempestade tão rápida e tão forte como essa. O mais estranho, porém, é que não a via mais no horizonte. Como se não existisse mais. Tudo o que havia era um silêncioso céu marcado pela cor alaranjada do entardecer. Bem diferente do que vira pela manhã. Sequer havia algum vento.

    Pensou no eleito, nos guardas, na segurança dos viajantes, e então nos prisioneiros. Ele sentiu o incômodo da adaga por baixo de seu manto.

    Olhou para as rochas, na direção de onde a tempestade tinha vindo, notando um movimento estranho.

    Pessoas. Soldados.

    Os quais avançavam em sua direção.

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