Capítulo 56 - O propósito de uma lâmina.
As pernas de Sarosh cederam. Ele não conseguia respirar. Seu corpo estava mole. As vísceras pareciam se contorcer dentro de sua barriga, a ponto de parecerem estarem prestes a vazar para fora do corpo a qualquer momento.
Ele sequer conseguia mais segurar sua espada.
Os sons ao seu redor pareciam um amontoado de ecos abafados, vindos de todas as direções.
“O inimigo”, Sarosh pensou, lembrando-se, em meia a dor, da batalha em que estava lutando.
Tentou encontrá-lo, mas sua visão estava embaçada, como se um denso nevoeiro lhe cobrisse os olhos. Mas ele estava na passagem de pedra, não em Karapruta, onde o grande rio abraçava a cidade. Não havia nevoeiro no deserto, apenas areia.
Mesmo em meio a dor, ele tentou procurar por sua espada, na intenção de concluir a luta.
Apenas mais um ataque seria o bastante. Ninguém sobreviveria a um golpe desferido por um tocado por Viscarta, e Sarosh o havia sido no momento de seu nascimento.
Os “Tocados” eram favorecidos polo deus de mil mãos, recebendo habilidades, tal como a força de Sarosh, o qual lhe permitiu sobreviver nas ruas de Karapruta, até ser descoberto pelo Eleito, quando tinha doze anos, e ingressar na companhia.
Sarosh sabia que os ratos do deserto também tinham uma palavra para aqueles que assim nasciam. Chamavam-nos de “abençoados”. Mas cometiam o erro de pensar que tais bênçãos eram dadas pelo deus dos que moravam na areia.
Ele não se surpreendia com tal coisa, afinal não se podia esperar mais de ratos ignorantes.
Uma tosse forte o atacou, e Sarosh percebeu a terrível sensação se atenuando, permitindo-o se mover mais livremente.
Sua mente clareou, como se o nevoeiro desaparecesse. Ele levantou a cabeça, se pondo de joelhos, e se viu cercado por soldados inimigos, os quais não lhe davam atenção por parecerem preocupados com outras coisas.
Sarosh observou que a maioria de seus homens jazia morta, ou morrendo, e o restante partira em debandada.
Notara também que o homem com que lutara a pouco havia desaparecido, o que o deixara confuso. Por que o homem o deixaria vivo, quando parecia ter vindo especificamente para matá-lo? E então entendeu o que acontecera ao ver ao longe as cores vibrantes do estandarte de seu amo.
Ouviu gritos vindos da retaguarda inimiga, e percebeu que os soldados olhavam para aquela direção.
Não teve tempo de entender a situação, pois os inimigos o perceberam, gritando na língua dos que habitavam o deserto, a qual era falada desde a cidade fronteira de Namir, onde o império de Avhma terminava, até o mar Erzino.
Procurou por sua espada, ou qualquer arma que conseguisse encontrar no chão. Pegou uma lança e a fincou, com um movimento ascendente, no soldado mais próximo. A arma entrou sem resistência na carne do homem. O que significava a falta de uma armadura.
Sarosh soltou a arma e se pôs em pé, segurando uma cimitarra suja de sangue, pó e gordura, que encontrara no chão.
Procurou por aliados, mas se viu completamente cercado. Ilhado em meio a homens esfarrapados e sujos, com rostos marcados pelo sol, e incômodos olhos lamentosos.
Alguns deles tentaram estocá-lo com lanças, mas ele não teve dificuldade em desviar, notando a óbvia falta de perícia dos ratos do deserto com aquela arma.
Era simples se aproximar de um e arrancar-lhe sangue e carne.
Tinha duas opções. Afastar-se e fugir, entrando em algum dos corredores de pedra que cercavam o vale coberto por areia, ou abrir caminho por entre as fileiras de inimigos em direção ao seu amo.
A maioria dos homens escolheram a primeira opção, mas Sarosh não era um homem comum. Era uma lâmina, e só havia uma coisa que uma lâmina poderia fazer.
Pescoço, clavícula, costelas, atrás dos tornozelos. Sua espada curva girava, serpenteando entre os membros de seus inimigos, separando-os dos corpos.
Em pouco tempo, Sarosh tinha feito uma trilha com dezenas de corpos, enquanto atravessava o campo até o lugar onde o seu amo estava.
Ainda sentia náuseas, remanescentes do entorpecimento sentido antes, os quais dificultavam seus movimentos. Mas não parava. As espadas acertavam seus braços e pernas, rasgando-lhe a armadura de couro e tocando-lhe a carne, mas ele não parava. As desajeitadas lanças roubadas vinham em sua direção. Algumas o acertavam, fazendo-o sentir a pressão dos golpes por baixo do couro.
Um homem normal teria morrido a essa altura, mas não alguém que fora tocado por Viscarta. Mas, mesmo assim, cada passo dado se tornava mais difícil que o anterior.
A areia, os corpos, dos vivos e dos mortos, a gordura do sangue que cegava a sua espada. Tudo dificultava seu ímpeto.
Ele podia ver claramente os estandartes do grande elefante branco sendo agitados, a poucos metros. Apenas algumas dezenas de homens o separavam de seu senhor.
Uma cimitarra passou a centímetros de seu rosto, o brilho do sol refletido na lâmina o cegou por um instante, antes de Sarosh enterrar sua própria arma até a metade do pescoço do homem. Ele viu a luz se esvair dos olhos perplexos de quem sentia a própria morte a se aproximar, e puxou de volta a espada, que não saiu.
Antes de sequer pensar em um deus para amaldiçoar, Sarosh desviou do estocar de duas lanças, notando que um dos homens que as segurava, fizera um movimento minimamente decente.
Ele procurou no chão por alguma arma que estivesse sem dono para empunhá-la, sem conseguir encontrá-las na bagunça carmesim de corpos sob seus pés, enquanto se preocupava com os golpes, cada vez mais temerosos e incertos de seus adversários. Os quais, ele era grato por agirem assim.
Então lembrou-se do incômodo que sentia por baixo do manto, que a essa altura estava rasgado.
Era pequeno, e ele nunca havia usado algo do tipo em batalha, mas só havia isto em suas mãos.
Em um movimento rápido, ele retirou a adaga de suas vestes, deixando que a lâmina branca brilhasse ao sol. Era pálida como leite de jumenta recém tirado. Tão pequena que quase parecia frágil. Mas Sarosh sentiu sua essência emanar de dentro de seu braço, até se espalhar por todo o seu corpo.
Sentiu um ar gélido como o inverno que nunca conhecera, invadir seus pulmões que antes respiravam o ar quente do deserto. Ele respirou, sentindo o ar frio sair por sua boca e nariz, ao mesmo tempo em que uma névoa cobria a arma, e avançou.
Ele precisava se aproximar mais para matar seus inimigos, mas isso não representava muitos problemas. Sua força e velocidade eram maiores, além de seu treinamento se fazer valer, e sua pequena lâmina arcana resistia a cada embate com as cimitarras, repelindo-as com força. Se os embates fossem muitos as espadas comuns seriam desgastadas até o desuso.
Mas esse não era o limite de uma lâmina arcana. E Sarosh sabia disso.
A adaga perfurava a carne tão bem como uma espada de aço, congelando-a no processo. Deixando uma ferida sem sangramento e que não se fechava.
A dor deveria ser inebriante, e Sarosh torcia para que fosse. Assim não precisaria matar a todos, um por um para incapacitá-los. Não se parecia em nada com a arma que seu amo tinha, mas não importava, desde que o ajudasse a continuar com seu avanço.
Sarosh se aproximou do estandarte, e logo identificou os primeiros homens da companhia que conseguira ver, um pequeno grupo com não mais de trinta soldados, gritando a palavra secreta. Um deles era Ruandi, um homem robusto e rosto severo que já fora vendedor de lã nos campos de Madarba, antes de ingressar na companhia. Ele afastava um inimigo com um escudo, tentando perfurá-lo com sua cimitarra.
Ele o percebeu, gritando a resposta de volta, e os homens abriram um corredor até ele.
— Onde está o eleito? — Sarosh perguntou a Ruandi com um grito, ao perceber a falta de quem procurava.
— Não sei, fomos separados do resto quando um homem de armadura nos atacou.
Um sentimento estranho atingiu o peito de Sarosh.
— Precisamos encontrá-lo — afirmou.
— Está louco? Mal conseguimos nos manter aqui. Temos que recuar, e ajudar a retirar os mercadores daqui. E para isso que eles nos pagaram, no final.
— Fugir? — perguntou, ouvindo o grito do porta bandeiras, que fora atingido por uma lança arremessada. A haste lhe atravessou o olho.
— Sobreviver — Ruandi gritou em resposta.
O homem morreu, e a bandeira caiu.
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