Índice de Capítulo

    Os gritos ecoavam desde o fundo do vale, que antes fora soterrado após a repentina tempestade de areia.

    Zaya olhou para o alto dos rochedos, onde dezenas de aves carniceiras se aglomeravam, atraídas pelo cheiro da morte.

    Ela nunca vira tantas. Espectros negros, empoleirados sobre cumes ponteagudos, observando o caos abaixo. Assim como ela também o fazia. Assistindo, com um misto de horror e alívio, a carnificina que acontecia a algumas dezenas de metros.

    Horror pela batalha. Alívio por não participar dela.

    Ela fazia parte do grupo que fora deixado para trás, com o objetivo de ser a retaguarda de Burak. Grupo esse formado em sua maioria pelos homens mais velhos, e os mais medrosos da guarda. Além dos abençoados que Burak chamava de “inferiores”, motivo pelo qual foram deixados para trás.

    Ao ver os corpos se confrontando, e caindo à distância, Zaya não se importava de ser chamada assim.

    Se ela fechasse os olhos, poderia ver suas sombras desaparecendo à distância, como pequenas chamas sendo apagadas pelo vento.

    — Não me parece bom — comentou Aqer, um rapaz de nariz achatado, queixo pequeno e lábios rachados, ao lado dela. Um buscador, mas não como ela.

    Zaya não respondeu, o que não o impediu de continuar falando.

    — O senhor Burak poderia ter nos deixado participar da batalha, poderíamos ter impedido aquele ataque dos inimigos pelo lado.

    Zaya não se sentia tão confiante nisso. Vira os movimentos surgindo por entre as rochas, antes do grupo surgir por entre os corredores e atacar os homens de Burak pelas costas. No entanto, ela havia conseguido perceber isso por estar distante da batalha em si. Não acreditava poder fazer o mesmo se estivesse lá embaixo, no meio do caos que se tornara o vale soterrado.

    Ela mal conseguia distinguir os aliados ou inimigos na confusão da batalha, e se perguntava como os soldados lá lutando conseguiam fazê-lo.

    — Poderíamos ajudar, se ao menos o feiticeiro desse a ordem para os soldados avançarem — resmungou ele, apertando os lábios.

    Zaya espiou por entre as fileiras compostas pelo restante dos soldados, para olhar diretamente para Saadi, que fechara seus olhos, recitando palavras estranhas com uma voz baixa e sibilante.

    A pele parecia mais pálida e seus braços mais ressecados, o que os fazia terem um aspecto mais longo quando o feiticeiro os estendia.

    Ela, então, se voltou para os abençoados que com ela estavam.

    Além de Zaya e Aqer, havia dois “narizes de toupeira”, dois “atrai metal” e um “fala línguas”. A qual afastava as aves carniceiras, cada vez que elas se aproximavam. Parecia ter medo delas.

    Eram uma dezena quando saíram da vila. Mas diminuíram dia após dia, desde a noite em que Saadi entrou na tenda de Burak, saindo de lá com uma garota que Zaya nunca mais vira.

    E assim acontecia a cada dia que se passava. Com uma jovem abençoada sendo levada pelo feiticeiro e desaparecendo.

    Todas as noites Zaya temia que seria a próxima. Tashia foi a terceira.

    — Grande seja Assh’hur, parte dos inimigos começou a fugir — Aqer gritou empolgado.

    Ela fechou os olhos, confirmando o que os olhos aguçados de Aqer viam.

    Um alívio tomou Zaya. Quando mais rápido aquilo acabasse, mais rápido poderia voltar à aldeia, onde Aaliyah estava esperando.

    — Creio que já esteja na hora então — ouviu a voz de Saadi dizer em um tom agudo, alto o bastante para todos ouvirem.

    — Hora para o que, residente Saadi? — Um guarda próximo a ele perguntou.

    — Prepare seus homens, iremos descer.

    O resto dos homens murmuravam entre si, ansiosos.

    — Agora que a luta acabou, ele quer ir lá? — Ela ouviu Aqer resmungar.

    Zaya sentiu seus pés frios. Algo incomum no deserto.

    O feiticeiro começou a andar, passando pelos guardas, seguindo até onde os abençoados estavam.

    Zaya o observou se aproximando, com um tremor se espalhando por seu corpo, aumentando a cada passo por ele dado.

    Sua respiração quase cessou quando Saadi parou em frente a ela, com um sorriso desenhado nos lábios.

    Ela olhou para aqueles mórbidos olhos amarelados.

    — É tempo de desempenhar sua parte, pequena.

    — A min… o q… — Zaya tentava falar, mas sua língua parecia derreter antes de ela formular uma frase.

    O rosto de Tashia e das outras garotas que desapareceram passou por sua mente. Ela tentou recuar, fugir para longe, mas suas pernas não obedeciam.

    Saadi levantou seu rosto, a tomando pelo queixo, e esticou uma de suas mãos ossudas até a boca dela.

    Zaya não conseguia mover seu corpo, que parecia dormente.

    O dedo dele chegou aos seus lábios, invadindo-os até tocar em sua língua. Zaya a sentiu formigar, enquanto um líquido viscoso, com um gosto pútrido, parecia se espalhar por sua boca, e escorrer terrivelmente pela sua garganta.

    Sentiu vontade de vomitar, mas não conseguia encontrar forças para expelir aquilo para fora. Não conseguia respirar, o que a fez começar a sufocar. Mas o feiticeiro não a soltava.

    Sentiu lágrimas escorrerem pelo seu rosto, sua audição estava turva, e um frio se alastrou desde a ponta dos pés até o topo da cabeça, de forma que conseguia sentir cada fio de cabelo em seu corpo se eriçar.

    O desespero a consumindo aumentava na medida em que tentava, inútilmente, mexer seu corpo.

    Sua barriga começou a queimar e se remexer como se uma coisa viva se revirar-se lá dentro.

    Então o feiticeiro retirou seu dedo da boca de Zaya, e ela sentiu como se uma forte pancada a acertasse no rosto.

    A sensação em seu estômago subiu até a sua cabeça. O mundo girou ao seu redor, sendo coberto por diferentes véus de cores sombrias, em uma velocidade rápida demais para ela reconhecê-las, até tudo escurecer.

    Então sentiu um tremor.

    Ela estava no chão, percebeu, mas não se lembrava de ter caído. Seus olhos estavam abertos, mas não via luz. Apenas o vazio negro a se alastrar por todo lado, como se estivesse a ver as sombras.

    Virou a cabeça para o lado, e então as viu.

    As sombras não eram brancas, como sempre via, mas brilhavam em cores vivas em meio ao fundo negro. Conseguia distingui-las mesmo a tamanha distância.

    Uma torrente de vozes, sons, e sensações a atingiu. Gritos de desespero, gemidos de dor, murmúrios incertos, preces desesperadas. Tudo vinha como ecos ruidosos a sua mente. Mas isso não era o pior. Ela sentia. Não conseguia descrever ou entender, mas sentia o que todos sentiam.

    Raiva, medo, coragem, desespero, confusão, uma alegria sádica, a terrível sensação da morte.

    Ela sentia tudo ao seu redor, de uma forma que nunca o fizera antes.

    Por um momento pensou que sua mente seria tomada por aquilo, até ouvir outra voz a chamando. Uma única, que parecia mais alta que as demais, e mais apavorante.

    Ela virou-se para olhar quem falara. Não havia cor alguma. Parecia um contorno a pairar sobre o negro. Ondulações vinham de sua direção. Zaya não sentia nada vindo dele além de um desprezo vil.

    — Encontre aquele de quem tomou isso, e vá até ele — A voz ordenou.

    Algo foi posto em suas mãos, e ela percebeu que havia se colocado de pé. Em que momento, não lembrava.

    Ela virou-se sondando o mundo em volta de si. Distinguindo sombra por sombra até ver aquela que buscava. Estava em um grupo contendo três sombras. Uma em especial brilhava de uma forma incomum, como se duas cores se misturassem e se separassem continuamente.

    Ela se moveu. Por algum motivo não conseguia desobedecer aquela voz. Por algum motivo não conseguia pensar. Existia apenas aquela ordem, e nada mais.

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