Capítulo 58 - Os mortos não podem rir.
Ítalo se arrastou pela areia, deixando o abafado, e sufocante, calor da tenda para trás. Pamela o seguia de perto. Ele se pôs em pé com dificuldade, com as pernas afundando na areia a cada movimento.
Marcelo veio logo após, xingando, como sempre. Ítalo olhou para o buraco na tenda, se perguntando se as pessoas ainda lá dentro sairiam também. Percebeu que não.
Ele olhou para a frente, para o vale inundado pelos bilhões de farelos de areia. Horas de aulas sobre erosão vieram à sua cabeça enquanto via a cena à frente. Não lhe seria muito útil, no entanto.
Uma figura distinta e familiar se mantinha de pé à frente de todos, fitando o céu, na direção em que os ventos levaram a tempestade.
Tyler.
Pamela e Marcelo seguiram até ele.
Ítalo suspirou, antes de caminhar com dificuldade sobre a areia instável, lembrando-se das últimas horas, que haviam-lhe sido um inferno apertado e sufocante.
Tyler havia invadido uma tenda que não devia ter mais de seis metros de comprimento, assustando o casal que lá estava. Ítalo tentara não reparar nas curvas da pele bronzeada da mulher, antes que ela cobrisse seu corpo… tentara.
Fora a primeira vez que vira uma mulher na sua frente dessa forma, mesmo que rapidamente.
Por um momento esqueceu-se que Pamela estava ao seu lado, lembrando-se dela em um lapso, logo após, preocupado se ela havia notado onde estava a sua atenção. Porém, um comentário estúpido de Tyler sobre a situação chamou muito mais a atenção dela, deixando-a brava.
Ítalo não acreditava na capacidade de Tyler de agir tão descontraidamente, mesmo num momento como aquele. Mesmo tendo matado um homem.
Ao lembrar isso, Ítalo sacudiu a cabeça. Não era hora de pensar em coisas inúteis, como o casal à sua frente, ou em Pamela.
Daisy e o homem gordo ainda estavam desaparecidos, a companhia os fez prisioneiros, e agora poderiam ser considerados fugitivos. A cena do soldado morrendo enquanto se debatia não saia de sua cabeça.
Tudo isso, e a tempestade que assolava o mundo lá fora.
Marcelo devia sentir o mesmo, pela forma como parecia estar em transe durante todo o tempo na tenda, enquanto a tempestade rugia no mundo lá fora.
Pamela chorou até seus olhos se tornarem vermelhos e inchados, abraçada sobre os joelhos. Em nada lembrava a mulher radiante que Ítalo vira quando chegara aquele mundo.
O homem, dono da tenda, protestou e os ameaçou, mas um olhar de Tyler o pôs em silêncio. Ele e a mulher se encolheram, tremendo, e assim passaram todo o tempo até que o cataclisma terminasse.
E ainda continuavam lá.
Ítalo olhou para a entrada da tenda uma última vez, antes de encarar Pamela. A mulher estava abraçada sobre si mesma, tremendo.
Fitou Tyler. O homem virava a cabeça de um lado para o outro. Ítalo fez o mesmo, percebendo a desolação que havia caído sobre o acampamento.
A areia cobrira tudo.
Um metro, talvez… algumas tendas haviam sido arrancadas do chão, e as pessoas foram levadas junto com elas pela tempestade. Outras estavam soterradas. Outras resistiram. Porém muitas pessoas foram pegas pela tempestade, sem nenhum abrigo. Ítalo podia ver os corpos na areia.
Homens, mulheres, velhos… crianças. Alguns mortos, outros morrendo.
Pamela tinha um olhar vazio em seu rosto enquanto olhava ao seu redor.
Tyler estava inexpressivo. Seu sorriso havia virado uma máscara de severidade.
— Porra… — Marcelo falou, resumindo o que Ítalo sentia.
— O que fazemos? — perguntou, para ninguém em específico.
— Vamos sair daqui — Tyler respondeu na mesma hora, movendo-se com passos largos e desajeitados pela areia.
— E ir pra onde? Como? — perguntou Marcelo, abrindo seus braços.
Tyler o encarou, mas o homem não recuou, estreitando seus olhos, em uma carranca inquisitiva.
Ítalo, que compartilhava das mesmas dúvidas do homem, abriu a boca para falar, porém sons longínquos chamaram sua atenção. Sons de gritos e estrondos metálicos, ressoando à distância.
Ele notou que uma agitação irregular se formava naquela direção, junto a uma nuvem de poeira que subia pelo ar.
Os outros também a perceberam, olhando para o mesmo lugar.
— Temos de sair daqui agora — Tyler voltara a falar, em um tom de urgência completamente diferente do seu habitual.
— Puta merda. E ir pra onde? — Marcelo gritou.
— Mas, as pessoas — Pamela alardeou.
— Elas têm quem as ajude, e não podemos ressuscitar os mortos, podemos? — Tyler falou e Ítalo viu um certo ar cômico em sua voz enquanto ele falava.
“Já estamos mortos”, lembrou-se dele falando certa vez.
Lembrou-se também da forma que morreu. Alguém poderia tê-lo ajudado-o a se levantar, mas estavam ocupados demais, correndo sobre ele. Um gosto amargo tomou sua boca. Ele o cuspiu, sentindo suas mãos e pés suarem.
— Daisy — Pamela disse de repente. — Temos que encontrá-la — falou, se aproximando de Tyler.
Um arrepio passou pelas costas de Ítalo quando ele se lembrou da garota.
Olhou para o chão, para a areia, incapaz de reunir coragem para sequer conjecturar o que acontecera a ela e ao homem durante a tempestade de areia.
As pessoas enterradas davam-lhe todas as respostas que precisava, mas não as diria a Pamela em voz alta. Não ele.Tyle, no entanto…
— Ela está morta a essa altura — disse, como se não fosse nada demais. No mesmo tom que o pai de Jonas usava ao avisar que o café acabou.
— Não, você não sabe, ela ainda pode estar viva. Nós temos de…
— Cai na real garota. Não sabemos onde eles podem estar e não temos como procurá-la. Vamos apenas aproveitar a chance e ir embora desse lugar — esbravejou Tyler.
— E por acaso temos condições de sair? — Marcelo questionou mais uma vez, erguendo sua voz.
— Se eu estou falando que é para ir embora, então sim.
— Eu não vou.
— Morra aí então, ou já esqueceu quem salvou essa sua bunda uma dúzia de vezes?
Marcelo estalou a língua, aprofundando a carranca em seu rosto.
— Isso até você precisar me matar como fez com aquele homem?
Tyler deu de ombros.
— Me agradece. Era ele, ou nós. Ficou com pena? Faz um funeral. Não vai dar trabalho, afinal ele já está enterrado mesmo.
Marcelo escarrou, e então cuspiu nos pés de Tyler.
— Estamos no deserto, melhor guarda a saliva para si — respondeu ele, se voltando depois para Ítalo e Pamela. — E vocês, vem comigo, ou não?
Pamela abriu a boca, mas não falou nada. Lágrimas escorriam por suas bochechas, que naquele momento, junto do nariz, ganhavam um pigmento avermelhado.
— Nós vamos — Ítalo respondeu, um tanto quanto receoso em falar também por Pamela.
Tyler sorriu. O que fez Ítalo se perguntar em como alguém podia sorrir nessa situação.
— Assim que se fala. Vamos. Se quiser, pode ficar aí, coroa — Tyler começou a andar mais uma vez.
Ítalo pegou Pamela pelo braço e a puxou. Ela se desvencilhou dele.
— Tudo bem — disse ela, limpando o rosto. — posso… andar por mim mesma, não precisa…
Ítalo acenou com a cabeça.
Eles se afastaram alguns metros até que Marcelo começasse a segui-los. Ítalo entendia a revolta do homem, mas não havia o que fazer ali. Não haveria abrigo para eles, nem proteção.
Mas o que poderia haver se fugissem?
Estavam sem nada. Sem suas trouxas, sem moedas, sem barraca. Sem a adaga com que Ítalo matara seu tédio tantas vezes. Mesmo assim Tyler preferia essa escolha. E eles decidiram segui-lo mais uma vez. Ítalo decidira.
Eles atravessaram o vale, ignorando as pessoas que caminhavam para lá e pra cá, atordoadas. Alguns guardas estavam entre elas, no entanto não lhe prestavam atenção.
Uma parte pilhava as barracas e mercadorias espalhadas e semi-enterradas na areia. Outra tentava prestar algum auxílio às pessoas feridas. Outra parte estava machucada, não podendo fazer nenhum dos dois.
Os animais sobreviventes fugiam em várias direções, o que aumentava o caos.
Em certa altura, Tyler se aproveitou da confusão para pegar uma espada caída. Ítalo observou o formato da lâmina curva, perguntando se deveria fazer o mesmo.
No fim não o fez.
Ao se aproximarem dos rochedos que cercavam o vale, Tyler entrou por uma fresta, que dava para um corredor apertado. Ítalo o seguiu, assim como Pamela e Marcelo.
Não devia ter mais de um metro e meio de largura, e era repleto de pequenas rochas, e desníveis no caminho.
Eles espremeram no corredor por um certo tempo, até que Marcelo começasse a reclamar, como de costume, perguntando para onde Tyler estava indo.
Ítalo respondeu-o, tentando acalmá-lo, mas a verdade era que partilhava da mesma dúvida. Muitas coisas sobre Tyler o deixavam confuso.
A começar pela primeira noite, quando ele encontrara água facilmente. Repetindo esse feito várias vezes depois, sempre caminhando como se soubesse aonde ia, mesmo na mais completa escuridão.
Ele sempre mudava de assunto, ou desviava as perguntas, quando questionado sobre tais coisas. Mas a dúvida ainda persistia em Ítalo.
Dúvida que ele não expressaria abertamente. Não naquele momento.
Chegaram até um entroncamento com quatro saídas. Uma à direita, uma no meio, e duas seguindo para a esquerda. Por um momento, Tyler olhou para todas, como se estivesse decidindo.
Ítalo o encarou, confuso.
— E agora sabichão, para onde vamos? — Marcelo resmungou.
— Não tem jeito — Tyler ergueu a espada à sua frente, como se estivesse se preparando para um combate, seguindo pela passagem que estava à direita.
— Sabe para onde estamos indo? — Sem perceber, Ítalo deixou seus pensamentos escaparem.
— Cala a boca e se prepare. Você devia ter pego uma arma também, droga — respondeu com claro desagrado na voz.
Ítalo percebeu que seu sorriso havia desaparecido também.
— Como assim? — Pamela perguntou.
Tyler não respondeu mais nada, o que só fez a ansiedade de Ítalo aumentar.
O corredor fazia uma curva abrupta para a direita. Tyler parou em frente a ela, encostando-se na rocha.
Mesmo sem entender o motivo, Ítalo o imitou, fazendo o possível para ficar em silêncio.
Podia ouvir o som de passos à frente, ecoando pelo corredor.
— O que é isso, que merda estamos fazendo? — reclamou Marcelo.
Ítalo chiou.
— Tem gente ali na frente — disse.
— O que vai fazer? — Pamela perguntou a Tyler.
— Quieta — mandou ele, soltando um som parecido com um rosnado.
O som dos passos aumentavam.
Tyler murmurou algo em voz baixa, como se conversasse consigo mesmo.
Ele se encolheu nas rochas, em uma certa posição que lembrava Ítalo de predadores vistos em documentários, caçando.
Então, em um salto digno de um leopardo, ele avançou sobre sua suposta presa atrás da curva, fazendo descer a espada.
Ítalo ouviu um grito, junto com desordem irregular de outra meia dúzia de vozes.
Pamela recuou, com as mãos sobre o rosto, assustada. Marcelo praguejou e se afastou da curva.
Suas mãos tremiam, mas ele avançou. Precisava ver o que estava acontecendo.
Tyler lutava com a espada em mãos contra quatro homens também armados com lâminas curvas e lanças. Quando um avançava, ele desviava habilmente, e chutava suas canelas, antes de se esquivar do próximo. Era como se uma dança sem ritmo ocorresse bem em frente aos olhos de Ítalo, com o som de metal, passos pesados, e pragas, formando a melodia.
Ele não sabia o que fazer.
Deu um passo à frente e tropeçou em algo. Quando olhou para baixo, percebeu que se tratava de um homem caído de bruços, com o sangue a jorrar abaixo de seu corpo. O homem que Tyler matou no salto, percebeu.
Ítalo olhou para o corpo. Estava morto. Tyler o matara.
Por que?
Não tivera tempo de chegar à compreensão disso, quando Tyler gritou.
— Tá parado por que, porra? Me ajuda!
Quando ele falara isso, dois homens com quem lutava se viraram na direção de Ítalo.
Ele recuou, tropeçando, e caindo de costas. Quando tentou se levantar, viu a espada que provavelmente era do morto.
Os homens, que antes lutavam com Tyler, avançaram sobre ele, e Ítalo percebeu que acabara o momento de pensar.
Ele pegou a espada e se levantou.
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