Capítulo 59 - Espadas mágicas.
Quando criança, Ítalo assistiu a desenhos e filmes sobre guerreiros lutando, com grandes espadas mágicas, contra monstros e terríveis feiticeiros, desejando, um dia, ter uma espada e ser ele próprio um cavaleiro que venceria o mal. Sonhara, em seus delírios de infância, em derrotar dragões e feiticeiros, tal como aqueles heróis a quem crescera assistindo.
Com a idade, a compreensão de seu mundo, e as palavras de sua madrasta, sonhos se transformaram em ilusões. Ilusões essas que o seu eu havia deixado de lado. Até que, naquele dia, o destino cruel lhe pusera uma espada na mão, que nem de longe lhe lembrava as grandes lâminas empunhadas pelos heróis que nunca existiram, para lutar contra homens que não eram dragões e feiticeiros, mas pareciam querê-lo morto da mesma forma.
O primeiro pensamento que teve ao vê-los era de que faziam parte da caravana. Mas não se vestiam como os guardas da caravana. Usavam mantos grosseiros, que ele já se lembrava ter visto antes, no dia em que foram atacados por ladrões. Tyler capturou um, que deu-lhes a informação sobre Narkul, e a direção para a cidade. O que os levou até aquela situação.
Tyler estava certo, não deveriam tê-lo soltado. Mas isso não importava naquele momento, pois os dois avançaram contra Ítalo.
Seus membros tremiam de forma involuntária, seu estômago se revirava, e seu peito estava frio.
O primeiro, mais jovem e ágil, veio até Ítalo, erguendo a espada em um arco diagonal, da direita para a esquerda. Ítalo interceptou-o com a espada retirada do morto, percebendo que a arma era mais pesada do que ele pensava.
As armas se chocaram. Ítalo conseguiu defletir o golpe, mas seu braço fora lançado para trás com a força da pancada, com tamanha violência que ele quase caíra. Se manteve em pé com passos cambaleantes.
O segundo homem, um que apresentava cabelos brancos e pele muito marcada pelo sol, veio pela esquerda, mirando em suas costas desprotegidas.
Ítalo se jogou para o lado, rolando pelo chão, antes da lança o atingir. Ela acertou a ponta de sua túnica, rasgando-a na altura do joelho.
Não sabia como tinha ganhado tanta agilidade. Talvez o treino com Tyler tivesse servido para algo além fazê-lo se sentir um palhaço.
Enquanto levantava, Ítalo ouviu um grito, e viu o jovem avançando contra ele. A espada voltada para trás, um pouco acima do ombro, pronta para desferir outro ataque.
Uma antiga lembrança de infância passou por sua mente. Uma ideia.
Sentindo um estranho frio sair de seus pulmões e escapar por seu nariz enquanto respirava, Ítalo segurou sua espada firmemente com as duas mãos, no mesmo sentido em que seu inimigo portava a sua, se apoiou sobre a perna oposta ao lado em que a arma estava, e quando o jovem se aproximou, Ítalo se deixou cair para o lado em que o corte foi desferido, a lâmina passando a centímetros de seu rosto.
Ele continuou caindo, enquanto girava o corpo, usando a força centrífuga que isso criava para fazer a espada desferir o golpe.
Mirara na perna do rapaz, ou ao menos pensara em fazer isso. Mas a lâmina estava alta demais, o movimento fora rápido demais, e seus braços eram imprecisos. A lâmina curva acertou a barriga do jovem. Não havia colete de malhas, casaco acolchoado, ou armadura de qualquer tipo. Apenas o grosso tecido do manto usado para se proteger do sol, que foi facilmente rasgado.
Ítalo sentiu a lâmina adentrar a carne mole, cortar a derme e a epiderme, vasos sanguíneos e fibras musculares. Provavelmente alcançando algum órgão vital. Tudo isso nos poucos segundos em que a lâmina levou para abrir um rasgo no abdômen do jovem, que caiu de joelhos no chão, grunhindo de dor.
Ítalo bateu com a face no solo e então se ergueu atônito. Tentando entender o que acontecera.
A meio metro, o jovem agonizava com as mão sobre a barriga. Ítalo o havia cortado, sim, sentiu a arma entrar em contato com o rapaz, mas não conseguia acreditar que tinha feito isso.
Ele?
Em parte, por sua consciência querer negar que tinha feito algo tão violento. Mas também havia outro motivo. Um que deixara Ítalo mais curioso do que espantado, ou horrorizado, pelo que fizera.
Não havia sangue.
A barriga era a região do corpo com maior concentração de gordura, órgãos e tecidos. Cortá-la faria uma cachoeira de sangue se derramar sobre o chão no mesmo instante.
Mas não havia sangue saindo do rapaz. Apenas uma quase transparente fumaça branca.
Ítalo olhou para sua própria espada, procurando pelo sangue que evidenciaria o corte, mas notou a mesma fumaça emanando da lâmina. Percebeu também outro fato:
Ela estava fria.
— Cuidado idiota! — Um grito de Tyler o trouxe de volta à realidade, e Ítalo se virou, a tempo de ver o velho avançando em sua direção.
Ele se moveu instintivamente, mas não pôde reagir ao ataque.
A lança o atingiu no ombro. Ítalo sentiu a ponta o perfurar até alcançar os ossos. Uma dor excruciante lhe invadiu os sentidos, a ponto de sua única reação ser o grito que soltou.
O homem puxou a lança, e Ítalo sentiu as pernas vacilarem até não conseguirem mais suportar o peso de seu corpo.
Ele caiu, sentindo o mundo se mover ao seu redor, até sua cabeça bater de novo contra o chão duro, e tudo tremer enquanto seu corpo permanecia imóvel.
Não conseguia respirar, nem mover o braço no lado em que fora ferido. Sua outra mão, suja de sangue, cobria o machucado. Não lembrava de ter soltado a espada, mas já não a segurava mais.
“Por que o outro jovem não sangrou daquele jeito?” Dezenas de pensamentos inúteis como esse passavam por sua cabeça ao mesmo tempo, junto das palavras. As malditas palavras.
Uma sombra se colocou entre ele e o sol acima. O velho segurando a lança. O qual se preparava para atacar, quando uma segunda silhueta surgiu, se lançando contra ele, tirando-o da visão de Ítalo.
Ítalo sentiu alguém levantando sua cabeça.
— Está bem? Consegue me ouvir?
Era Pamela.
“Atravesse, deserto, estrela”, as palavras ressoavam em sua cabeça como um mantra.
— Vamos, diga se entende, ou ao menos balance a cabeça.
Ítalo abriu a boca, soltando um som de afirmação, e balançou a cabeça.
— Não se mova, eu vou estancar esse machucado — Ela gemia mais do que falava. Parecia ter voltado a chorar. — Fica tranquilo, você vai ficar bem.
De alguma forma, Ítalo se sentia melhor quando ela falava.
Ela amarrou algo em seu ombro, o que o fez sentir uma intensa dor, e o ajudou a se levantar, o que a piorou. Lembrava disso já ter acontecido antes. Uma memória que não lhe agradou muito.
Ítalo ergueu a cabeça observando a cena à sua frente.
Tyler lutava contra apenas um dos quatro homens iniciais. O outro jazia caído no chão, com uma mancha vermelha se espalhando à sua volta.
Marcelo enfrentava o velho homem em uma luta corpo a corpo pelo chão. Batiam, chutavam, e revezavam em se enforcar e rolar. A lança tinha sido jogada a metros de distância.
O jovem, que Ítalo ferira, havia parado de se mover. O que fez um frio correr por sua espinha.
Poderia ele estar…? Não se atrevia a concluir.
Ouviu um grito lamentoso de dor vindo da direção em que Tyler estava. O homem com quem lutava se debatia no chão. Tyler estava acima dele, cravando a espada cimitarra em seu pescoço.
Ítalo sentiu um enjoo. Vomitaria se tivesse um estômago mais fraco, ou algo preenchendo-o.
Tyler correu em auxílio a Marcelo, que continuava com sua cansativa luta no chão.
Sem muito esforço, ele desvencilhou o velho, e abriu-lhe a garganta, fazendo o sangue jorrar. O homem pôs as mãos sobre o pescoço e sufocou, desesperado, a procura de ar antes de cair e finalmente morrer.
Ele tentara matá-lo, Ítalo sabia, mas isso não tornou aquela visão mais agradável do que realmente era.
— Ainda consegue andar? — Tyler perguntou de repente, enquanto ofegava de forma inconstante.
Demorou dois segundos para Ítalo perceber que a pergunta se direcionava a ele.
Confirmou acenando vagamente a cabeça.
— Que caralhos foi isso? — Marcelo indagou olhando para os corpos. O cheiro do sangue empestava o ar.
— Gente que quer nos matar — Tyler respondeu.
— Quê, como assim? — Pamela disse, confusa.
Tyler jogou fora sua espada, pegou outra de um dos mortos, a escondeu na cintura e apanhou a lança que o velho carregava.
— Acho que talvez seja melhor nos vestirmos com as capas desses caras. Podemos escapar e fugir assim — respondeu, sem dar muita importância à questão levantada.
— Peraí, você os atacou primeiro, na verdade, porque fez isso? — Marcelo insistiu em perguntar. Ele estava sentado na parede de rochas, com o peito a subir e descer.
Ítalo tinha dúvidas semelhantes. Sua mente, no entanto, não parecia funcionar na velocidade e na forma que desejava.
Deserto, atravesse, estrela.
— Eles queriam nos matar, já disse — afirmou Tyler, agachando-se ao lado de um dos mortos e tirando sua capa.
— E como você tem certeza disso? — Dessa vez foi Pamela que perguntara. — Se não tivesse atacado, talvez eles não tivessem feito nada. Como sabia que eles estavam aqui, aliás?
Ela se inclinou para frente, o que fez o corpo de Ítalo, que estava apoiado nela, se estender um pouco, causando-lhe um espasmo de dor a partir do ombro perfurado.
— Depois eu explico, agora me escutem e façam o que eu digo. Por sorte tem quatro deles, então… — Tyler parou de falar,e se encurvou, pondo as mãos sobre a boca.
Pamela também caiu, e Ítalo com ela.
Uma sensação de náuseas, como se todos os órgãos de sua barriga estivessem se revirando e trocando de lugar.
Seus membros estavam gelados, não sentia o ar em seus pulmões e uma escuridão tomava sua vista.
Com certo esforço, se esforçou para olhar para cima.
Havia uma garota bem a sua frente. Ela o olhou nos olhos, e Ítalo percebeu que havia algo estranho nela. Suas pupilas eram grandes demais, como as de um gato brincando na escuridão, e o branco de seus olhos parecia manchado como um quadro pintado por Monet.
Atrás dela, uma estranha figura se moveu. Alta, magra, e tenebrosa.
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