capítulo 60 - O que não se pode esquecer.
— Finalmente os encontrei — Uma voz aguda e incômoda chegou aos ouvidos de Ítalo.
Era a única coisa que ele conseguia ouvir claramente. Todo o resto parecia uma variedade de ecos abafados.
Seu corpo estava pesado e ao mesmo tempo mole. Não conseguia respirar direito. Pamela parecia na mesma situação, caída junto a ele. Ítalo sentia seu peito pesado com o esforço que fazia a cada inspiração. Não conseguia ver Tyler ou Marcelo, apenas as duas pessoas que continuavam paradas, a poucos metros, encarando-os.
Viu mais silhuetas a rodeá-los, não sabia dizer quantas. Vislumbrou algumas a tentar agarrar Marcelo, que se debatia, sem muito sucesso.
A garota se moveu, caminhando até eles. Tinha algo nas mãos, Ítalo percebeu. Ela depositou próximo ao rosto de Ítalo, e ele pôde identificar o que era.
Um pergaminho.
— Então — Ele ouviu novamente aquela voz —, foi de você que ela tomou esse pergaminho — A figura alta e magra se aproximou.
Ítalo olhou para aqueles olhos amarelos, sentindo uma quase necessidade de afastar-se daquela vista.
— A tempos sinto uma perturbação, algo de diferente na ordem natural — O homem começou a discursar. — E sinto traços dessa perturbação nesse pergaminho. Finalmente saberei o que está por detrás disso.
O homem virou para a garota.
— Estenda a mão — ordenou.
Quando ela o fez, uma faca surgiu do manto do homem e a cortou. O ferimento parecia profundo pois sangue escorreu rapidamente da mão, com lâmina também sendo pintada em cor vinho.
Em um movimento atroz, o homem a lambeu.
— Isso será desagradável para ambos — disse ele, levando algo à boca e engolindo.
O homem fechou os olhos, e veias azuis surgiram em sua pele pálida, seus lábios tomaram uma tonalidade arroxeada e sua respiração se tornou ofegante. Quando os abriu, não era mais amarelo que Ítalo viu, mas pupilas brancas sobre escleras negras, arranhadas por linhas vermelhas disformes.
Um dedo esquelético se esticou e encostou na testa de Ítalo, e ele viu… a tudo.
O som dos carros, a doce voz de sua mãe antes do baque da batida. O choro que dava tom ao único velório que presenciara. Os gritos de sua madrasta a discutir com seu pai, e este o pedindo para que a obedecesse. Seu meio irmão a chamá-lo de esquisito. Os incontáveis dias monótonos nas salas de aula. O barulho das torcidas, a animação a contagiá-lo. O eco dos tiros, os gritos de desespero, e o medo a estrangulá-lo.
Leticia em seus braços, perdendo cor e calor, com o sangue a escorrer de sua barriga. A arma apontada contra ele. Júlia caindo por baixo de alguém, e a outra garota o empurrando para escapar, fazendo-o cair.
Viu-se mais uma vez em desespero, com os pés fora do chão, e o corpo a se estatelar sobre o piso de concreto. E então, a carga de mil pés em furor, como um rebanho de gnus africanos a pisotear a terra com seus cascos, e a Ítalo, que permanecera abaixo deles durante todo o tempo. Até sua mente colapsar, e o seu corpo não conseguir mais reconhecer a dor que sentia, a ponto de não perceber em que momento havia parado de funcionar, e tudo se tornar vazio de disforme.
Viu as praias, a água. Vislumbrou os pilares, e as tochas, e aquela desagradável figura azul mais uma vez. Viu o baú e a rocha. Os portais se abrindo e as pessoas sumindo, o deixando para trás. Viu Letícia pela última vez, e então se vira sozinho.
Então os viu novamente, as asas, as garras, os sons, e gritou, e o homem junto a ele.
Ítalo finalmente conseguiu respirar, sentindo um alívio percorrer seu corpo.
Pamela também pareceu se mexer mais confortavelmente abaixo dele, se arrastando para o lado. Mesmo assim, ele se sentia paralisado pela última lembrança. Algo que ele queria esquecer.
Quase não notou a confusão que começara a poucos metros de onde estava.
Tyler tentava lutar contra os homens que acompanhavam o estranho líder. Marcelo, no lado oposto, também fazia alguma resistência.
Ítalo percebera que os homens que os cercavam estavam todos armados com lanças e espadas cimitarras, mas não as usavam por algum motivo.
Ele decidiu não esperar para saber o motivo. Tentou se levantar, mas no momento em que se moveu, apoiando-se no joelho, sentiu uma onda de dor vinda do ombro, e então a terrível sensação de tontura e fraqueza lhe sobreveio mais uma vez. O homem magro havia se recomposto. Estava ofegante e os olhos retornaram a sua coloração original, aparentando estar mais caídos do que antes.
— Vamos levá-los, preciso deles para… — Ele foi atingido na cabeça por uma pedra enquanto falava.
Ítalo se viu livre do mal estar e levantou a cabeça.
Marcelo havia arrancado uma das lanças da mão de um dos homens, e dava estocadas, afugentando os aqueles que estavam perto de Tyler, que tentava se levantar.
— Como você… ? — O homem falava, antes de Ítalo acertar outra pedra em sua cabeça. Dessa vez ele caiu.
Ele parecia fraco, lento. Ítalo não se importava. Tentou ficar em pé mais uma vez, e outra onda de dor o atravessou. Ele tentou ignorá-la, mas caiu ajoelhado. Não conseguiria fazer aquilo.
Ele se perguntava o que fazer, ou o que Tyler iria fazer. Uma questão que ele logo obteve sua resposta.
— Corra! — Vociferou ele, se pondo em pé, escapando por pouco do ataque de uma cimitarra.
Tyler deu três socos rápidos no homem que o atacara. Ítalo pôde ouvir o som seco que eles fizeram ao atingir seu alvo, que caiu no chão, como um tronco seco de árvore. Tyler pegou a lâmina e saltou, escapando de uma estocada de lança, enquanto desferia um corte no ar para manter os outros inimigos afastados.
Conseguiu abrir uma brecha na direção de Ítalo, que tentava animar Pamela a se levantar, mas logo se viu sendo erguido por Tyler antes de fazê-lo, e carregado pelo ombro, enquanto seus pés eram arrastados pelo chão.
— Pera, tá fazendo o que? Os outros tão caídos.
Ítalo virou o pescoço, olhando para trás.
Viu Pamela caída, e Marcelo sendo contido por três homens, que, por algum motivo, ainda relutavam em usar as armas.
Tentou se soltar, mas a dor em seu ombro o fez perder as forças, e Tyler o agarrou bem.
— Atrás deles — Ítalo ouviu a voz aguda gritar, e meia dúzia de homens os seguiram pelo corredor.
O ritmo de Tyler aumentou. Ele corria, ou ao menos tentava, enquanto arrastava Ítalo, seguindo o serpentear do corredor.
Ítalo ouvia os passos dos homens, cada vez mais próximos. Ele tentava se desvencilhar, e voltar, preocupado com os que ficaram para trás, mas era inútil. Tyler o segurava firmemente.
Chegaram a uma grande área oval, repleta de cavernas. Os perseguidores estavam a poucos metros.
Tyler se forçava a avançar até uma das cavernas, mas se mostrava visivelmente cansado.
Ele parou na metade. Os homens os cercaram formando um meio círculo.
— Merda — Tyler resmungou baixo, soltando Ítalo, que caiu de joelhos. A dor latejava em seu ombro.
Cinco homens portando lança avançaram contra eles de forma compassada, junto a garota de antes, que segurava uma faca ensanguentada.
Tyler assumiu uma posição de combate, recuando lentamente enquanto os inimigos se aproximavam.
Quando as pontas das lanças chegaram a menos de dois metros, Tyler correu contra um dos lanceiros, saltando sobre o cabo.
O homem fez uma reação de espanto, quando o pé o atingiu no peito. Ele foi atirado no chão, acabando por soltar a lança.
Tyler se agachou, esquivando do ataque do segundo lanceiro. Ele puxou a lança pelo cabo, trazendo o homem para perto. Seu braço esquerdo se estendeu com o punho cerrado, acertando a traqueia do inimigo, e voltando à posição inicial logo após.
O homem cambaleou para frente, com as mãos na garganta. Tyler acertou outro girou a lâmina que carregava no rosto do homem, cortando-o de um lado ao outro.
Outros dois lanceiros avançaram. Tyler esquivou da primeira, porém foi acertado no calcanhar pela segunda, mas não caiu. Grunhiu como um animal quando o homem a retirou.
Ele girou a espada, acertando o braço do lanceiro, que gritou de dor.
Ítalo se levantou ao ver, suportando a dor em seu ombro.
Os lanceiros que restaram e a garota se aproximaram. Estavam cercados.
Tyler continuava lutando, mesmo com a perna ferida, porém outra se cravou na perna oposta, e dessa vez, ele caiu.
Estavam cercados.
— Parem — Um deles gritou para os dois que estavam com Tyler — O senhor Saadi ordenou que eles não se ferissem.
— Ele mandou que não os matássemos. — respondeu um outro — O desgraçado não vai morrer. Peguem esse aí e vamos voltar… — Ele ainda falava quando uma grande figura familiar a Ítalo saiu de uma das cavernas, e avançou sobre os homens.
Os lanceiros ergueram as armas em alerta, porém o homem continuou a avançar, mesmo quando as pontas o acertaram na barriga.
O braço enorme girou em uma velocidade assustadora, acertando a cabeça de um, que caiu como uma peça de dominó. O outro lanceiro se afastou, soltando a arma, visivelmente atordoado.
A garota também se afastou.
O homem gordo retirou as lanças da barriga, deixando uma mancha vermelha se espalhar pela camisa rasgada.
Ele balançou uma, quebrando-a no rosto do segundo, com um estalo que reverberou nos ouvidos de Ítalo. Sangue espirrou na areia enquanto a cabeça do homem girava de forma anormal. O corpo caiu no chão, se debatendo.
O homem gordo agarrou Ítalo, que relutou enquanto era posto nos ombros do homem como um fardo de farinha.
Os outros homens gritavam e praguejavam quando o homem gordo correu, se distanciando rapidamente do centro da área aberta, entrando em uma das cavernas.
Ítalo se impressionou com sua velocidade.
O homem correu por algum tempo pelos corredores escuros até sair por outra abertura. Subindo por uma rampa natural e descendo por um buraco logo após, até chegar a uma das dezenas de fontes que estavam espalhadas pela passagem.
Ele jogou Ítalo no chão, que caiu sobre o ombro ferido, gemendo de dor, e caminhou até a fonte e retirou a camisa, a lavando na fonte.
Ítalo sentou no chão, tentando compreender tudo o que acontecera.
A maior pergunta em sua cabeça era: onde aquele homem estava durante todo esse tempo? E cadê Daisy.
Virou-se na direção em que vieram, se perguntando como os outros estavam. Depois olhou novamente para o homem, que espremia o líquido avermelhado da camisa.
— Ei — chamou-o.
O homem se virou, seus olhos desfocados encaravam Ítalo.
— Por quê você me trouxe aqui?
Ele não respondeu.
Quando Ítalo pensou em perguntar de novo, o homem começou a falar:
— A irmã mandou — disse em sua voz quase rouca.
— Irmã? — Italo franziu as sobrancelhas. — Temos que voltar e ajudar os outros.
— Não — gritou abruptamente.
Ítalo o encarou sem saber o que fazer, seu ombro doía.
Ele viu algo se mover entre as rochas e saltar contra o homem gordo, que tropeçou para trás e caiu na água da fonte.
A garota permaneceu de pé. A pequena lâmina vermelha em sua mão direita. Ela olhou para Ítalo, dando-lhe mais um vez a visão da mistura de cores em seus olhos sem expressão, e então pulou na fonte, sendo arremessada no momento seguinte por um chute do homem, caindo e rolando no chão, enquanto sufocava.
O homem gordo se pôs em pé. Um corte vermelho brilhava da orelha até a ponta do lábio superior.
Ele avançou com passos largos e pesados contra a garota, pisando em seu rosto.
Ela gritou, arfou e se desesperou, olhando para Ítalo, que viu olhos comuns onde antes estavam coloridos, e Ítalo percebeu uma emoção. Desespero.
— Solte-a — gritou outra voz.
O homem obedeceu, virando o rosto e tirando seu pé de cima.
— Ela me machucou irmã — protestou, pondo a mão no rosto e mostrando o sangue.
— Sim, mas precisamos dela.
Ítalo olhou na direção da voz, e viu a menina, com seu sorriso infantil e tom macio na voz.
— Eu a vi — Daisy sorriu.
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