Capítulo 61 - Vitória.
Os corpos se espalhavam pelo chão. Muitos deles ainda emitiam sons lamentosos, demonstrando ainda estarem vivos, mesmo que por pouco tempo.
A maioria dos inimigos havia fugido quando o jovem abençoado caiu. Burak o havia deixado para trás no momento em que o outro contingente inimigo surgiu. Confiando nos truques do feiticeiro e nos homens que o cercavam para matá-lo. Precisava pôr fim ao ataque em seu flanco o quanto antes.
A segunda tropa inimiga consistia em no máximo três dezenas de homens armados com lanças e trajados com armaduras de couro, e cotas de malha. Burak pensou que, movendo-se rapidamente, poderia cercá-lo e massacrá-lo. Porém ao ver o homem que os liderava, esse pensamento escapou de sua cabeça.
À primeira vista parecia velho, magro, e débil, mas lutava com a ferocidade de um gato da areia. Burak se surpreendia ao ver que ele conseguia se mover na elaborada armadura que trajava. Marrom com desenhos dourados em formato de animais em toda a sua extensão. A couraça de bronze que Burak usava fora amassada pela luta com o abençoado. Ele precisava de outra.
Porém, o que chamara sua atenção, fora a espada que o homem empunhava.
Um vapor quente saía da arma cada vez que era balançada. Era branco, mas ganhava uma coloração avermelhada quando atingia um dos soldados de Burak, os quais soltavam gritos grotescos de dor. Uma visão magnífica.
Burak decidira dividir os soldados inimigos em pequenos grupos atacando de ambos os lados o foco de resistência. Um pequeno gesto feito por sua mão fora o bastante para que os soldados o entendessem.
O estrangeiro chamara isso de disciplina. Burak resistiu em implementá-la aos guardas no começo, mas, desde que percebeu que os homens o obedeciam com mais afinco, passou a apreciar a sua importância.
Eles dividiram as poucas dúzias de homens em dois grupos, tentando isolar o líder do resto de seus homens.
O líder inimigo reagiu instantaneamente, se movendo na direção de Burak, como se percebesse que ele era o comandante. Seus homens o seguiram, diminuindo em número quanto mais avançavam, até que só restasse o líder, que não esmorecia.
O calor aumentava à medida que se aproximavam um do outro.
Burak desejava enfrentar e reivindicar aquela espada. Porém, a dor em seu braço lhe tirava aquela opção. Ele se afastou compassadamente, mantendo-se na vista do homem, enquanto este era cercado, passo a passo pelos guardas. Teria de matá-lo como um animal preso em uma armadilha.
Um animal feroz com uma enorme garra de aço nas mãos.
Os membros dos guardas eram separados de seus corpos enquanto o homem se movia ritmicamente no meio da batalha. Um chiado saia da lâmina avermelhada, cada vez que ela atravessava a carne. A armadura resplandecia a luz do sol. Estava limpa, sem nenhuma gota de sangue, assim como a espada. Por algum motivo os homens não sangravam quando eram fatiados por aquela lâmina.
O homem olhou em sua direção e Burak viu os olhos de um predador fitando uma presa. Mas Burak não era uma presa, era o caçador.
Estava a poucos passos.
Burak sorriu com amargura ao vê-lo se aproximar. Era um dia de azar.
Encontrar dois guerreiros valorosos na mesma batalha era algo glorioso. Porém Burak não pôde enfrentar nenhum dos dois da forma que desejava.
Queria rir. Queria lutar. Queria matar. Mas sabia que não conseguiria. Não naquele estado. Então quando o homem se aproximou, erguendo sua espada fumegante. Burak recuou um passo, e o garoto abençoado surgiu por entre as fileiras de soldados, empunhando uma cimitarra.
O homem o percebeu, reposicionando seu corpo de forma surpreendente, a tempo de interceptar o ataque.
As armas se chocaram.
Burak pensou que a resposta de força era óbvia, visto que se tratava de um garoto abençoado. Até ver a cimitarra ser derretida enquanto era atravessada pela espada carmesim do líder inimigo, que firmara os pés no chão instável, aguentando o impacto.
A cimitarra foi dividida em duas, o aço tomando uma coloração avermelhada, com o pedaço partido da lâmina caindo na areia.
O garoto abençoado soltou a outra metade, esbarrando no homem devido ao impulso do ataque. Os dois caíram desorientados no chão. E Burak aproveitou a oportunidade.
Com um grito seu, dez lanças se cravaram no corpo do homem.
Ele se perguntava quantas haviam atravessado a armadura.
O homem tentou se levantar, com a espada ainda em mãos. Com um movimento horizontal, ele cortou as pernas de três homens, que caíram no chão, soltando gritos miseráveis.
O garoto abençoado o agarrou, enforcando-o. Outro homem o segurou pelo braço da espada, mantendo-o imóvel.
Burak se aproximou, e com uma prece a Assh’hur, afundou a lâmina no rosto do homem.
Ele se debateu, engasgou, e morreu. Seu sangue foi derramado na areia, e Burak fitou os céus, onde acreditava que seu espírito em breve repousaria.
Venceram.
Ele pensou em retirar a lâmina e a erguer, mas o grito de um soldado ao seu lado chamou sua atenção. Fora um guarda que tentara pegar a espada do líder inimigo, e gritava curvado sobre si, segurando o próprio braço.
A arma caíra na areia aos seus pés.
Burak o empurrou para o lado, reivindicando a arma. A apanhou e percebeu porquê o homem gritara.
Um grande calor queimou toda a palma de sua mão, a dor parecia subir pelo braço. Fazia sentido. Era a arma de um grande guerreiro. Só alguém merecedor poderia empunhá-la, decidiu. E ele precisava mostrar que era.
Com um grande esforço, Burak aumentou o aperto em volta da empunhadura, e ergueu a arma encandecente para o alto, bradando vitória para todos ouvirem.
Sentia a carne de sua mão queimar. Bolhas pareciam crescer em seus dedos. Veias eram visíveis por sobre o braço. Mas ele não soltou até que o brado se concluísse.
Quando tempo suficiente se passara, ele soltou a arma, a colocando ao lado do corpo do líder. Ele rasgou a capa do homem e envolveu a espada nela.
— Tirem a armadura dele. A partir de hoje ela me pertence, assim como essa arma. Arranquem também a cabeça dele. Com ela eu presentearei o anfitrião — Ordenou aos homens, que obedeceram no mesmo instante.
Burak se virou para o garoto abençoado.
— Bom trabalho — disse, se afastando.
Haviam vencido, mas ainda precisava lidar com as consequências da batalha. Havia inimigos a perseguir, e saque a recolher.
E havia também o feiticeiro, que nada fizera durante toda a batalha, além do feitiço que sobrepujaram o jovem abençoado de antes, permanecendo com a retaguarda de cinquenta homens no mesmo local.
Ou era o que Burak pensava, até ver que o lugar em que a retaguarda estava parecia vazio.
Enviou um homem até lá, e quando a notícia das ações chegaram, Burak praguejou e cortou a cabeça do buscador que descera com o mensageiro para lhe dar a nova. Um jovem fraco que não participou da batalha.
O feiticeiro havia saído com quase todos os seus homens para as ravinas e caminhos estreitos que existiam entre as rochas da passagem, deixando apenas uma dezena de homens sem valor para trás.
Burak ordenou que os homens caçassem os remanescentes inimigos imediatamente. Desejava usar a retaguarda para isso, mas não era mais possível.
Um terço de seus homens obedeceu. O resto estava ferido demais para prosseguir ou morto. Sua própria guarda de homens confiáveis permaneceu onde estava, protegendo-o.
Havia dúzias de barracas. Inteiras ou derrubadas, todas tinham seu valor. E Burak as desejava por completo.
As pessoas, no entanto, haviam fugido. Seriam oferendas para as aves do deserto até a próxima lua, se Assh’hur assim permitisse. Ele enviou homens em seus rastros para garantir que não representariam perigo, e levantou acampamento.
Quando a noite caiu, Burak, para seu desprazer, recebeu a notícia de que o feiticeiro retornou com menos homens do que levara.
Saadi se apresentou com algo diferente do sorriso habitual. Uma expressão de descontentamento apertava seus lábios, o que fez um sorriso se formar nos de Burak.
— Creio que, pela tua expressão, não conseguiu o que veio buscar — disse, provocando o feiticeiro.
Este não respondeu e Burak continuou.
— Viemos até aqui por nada. Penso o que o anfitrião achará disso — falou. A armadura e a espada surgiram em sua mente.
Deveria agradecer ao feiticeiro pelos presentes, da mesma forma que fez ao estrangeiro, quando concordou em exilá-lo. Burak se perguntava qual seria a expressão que aquela face arrogante faria quando os portões negros se fechassem e ele se visse preso no mundo exterior quando o vento levantasse a areia para os céus.
Nem toda a bruxaria poderia salvá-lo de uma tempestade.
Burak pensou nisso até ver Saadi sorrir de forma diferente do usual, o que fez um calafrio subir por sua espinha.
— Está meio certo, meu caro guerreiro. Não consegui o que desejava, mas encontrei algo de valor semelhante ou maior.
Ele virou a cabeça, olhando para três pessoas amarradas uma à outra.
Dois homens e uma mulher.
— Eles? Que valor tão grande poderiam ter? — Burak perguntou.
— Um que vai além desse mundo — O feiticeiro respondeu, seguindo até sua tenda, sem dar mais satisfações.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.