Capítulo 62 - Uma lâmina quebrada.
A escuridão silenciosa da noite cobriu os céus acima da passagem. Fogueiras eram acesas para afastar o frio da noite.
Sarosh encarou o fogo à sua frente, a contragosto. Seriam fáceis de se localizar, estando a menos de um dia de viagem do local da batalha. Mas a multidão de mercadores e viajantes não podia ser controlada com tão poucos homens a disposição. E mesmo esses mal podiam ser controlados também. Pelo menos até Sarosh quebrar o pescoço do mais problemático.
Tinham poucos recursos a disposição. A maior parte da comida e água foram perdidas na tempestade, e muito do que restou foi deixado para trás durante a fuga.
A companhia do elefante branco possuía cem homens em seu contingente. Naquela noite, esse número diminuiu para menos da metade. O resto estava entre os mortos, feridos e desertores.
Com o eleito nessa contagem.
Sarosh desejava acreditar que ele havia sido capturado, mas sabia que o velho homem pensava de ser capturado com vida.
Os homens da companhia com que se encontrou durante a batalha disseram-lhe que estavam com o eleito, mas foram separados por um ataque de pinça dos ratos do deserto, e acabaram separados.
Os ratos.
Suas mãos se apertaram, as unhas cravadas na pele. Sarosh ainda não conseguia acreditar no que ocorreu. Lutara muitas vezes com os habitantes das vilas subterrâneas, mas nunca viu-os lutar usando algo que lembrasse qualquer noção de estratégia ou de tática.
Naquele dia, no entanto, contemplou para sua surpresa, e o terror de seus homens, manobras militares razoavelmente difíceis de serem aplicadas em uma batalha, com um nível aceitável de disciplina, visto a natureza dos adversários. Mesmo que em questão de capacidade de combate, eles ainda fossem completamente inferiores, o fato de estarem em maior número, e não correrem pelo campo de batalha como simples ovelhas perdidas, contribuiu para o resultado da batalha.
Isso, aliado a um fato que Sarosh não percebera antes, mas que foi decisivo no embate contra quem acreditava ser o comandante inimigo. Não tinha provas, mas a memória daquela sensação em seu corpo não lhe deixava dúvidas.
Os ratos usaram bruxaria.
Sarosh cuspiu no fogo.
Ele era um tocado por Viscarta, recebendo do deus uma força sobre humana. Mesmo assim, ele nada podia fazer contra as artes negras, ou mesmo contra as alquimias e os encantos feitos pelos magos das terras verdes d’além mar.
Essas eram coisas desconhecidas para ele, e raras de se encontrar no mundo por ele conhecido.
O eleito tentara, por diversas vezes, recrutar alguém versado em tais artes para a companhia. Seja em Karapruta, ou nas cidades fortalezas além do mar dourado, a resposta era a mesma.
E, no entanto, lá estava um deles, escondido debaixo das pedras, junto a alguma tribo bárbara.
Um homem capaz de virar uma batalha.
Sarosh se perguntava a razão para alguém que poderia estar na corte de um senhor da areia ou mesmo na de um darpa de Karapruta, viver em um lugar tão inóspito.
Se contentou em dizer a si mesmo que homens comuns não poderiam entender aqueles que viviam nas sombras. Ainda que ele mesmo não fosse “comum”.
Sons ressoavam à distância, distúrbio pode ser ouvido e Sarosh olhou na direção em que as vozes se concentravam. Homens com vestimentas diferentes brigavam, até que dois guardas apartaram a confusão.
Saroshi não se moveu. Provavelmente logo saberia o que havia ocorrido. Ele estava no comando, uma vez que o eleito poderia estar morto.
Os homens que ainda o seguiam, pelo olhar baixo e pouco ânimo quando abordados pelo questionamento, acreditavam no mesmo que Sarosh.
Kamir, o eleito de Karapruta. O posto mais importante para um membro da companhia, abaixo apenas do conselho de oficiais, que administrava todos os contingentes que dela faziam parte. O contingente de Kamir, embora mais importante por responder a o conselho, era apenas mais um. Não deveria estar fazendo uma missão de escolta como aquela, mesmo assim, Kamir obedecera. Sarosh poderia passar dias a se perguntar o porquê de serem encarregados desse contrato, mas não importava mais. Kamir estava morto.
Embora soubesse disso como um fato, o rapaz não sentia qualquer pesar, ou desejo de vingança.
Kamir o havia acolhido e tirado das ruas poeirentas de Karapruta, não por amor ou qualquer sentimento de pena, mas pelo valor que vira em suas capacidade como um tocado por Viscarta. E assim Sarosh fora criado e afiado, para um dever. Um dever que falhou em cumprir, e que morreu junto de seu Senhor.
A adaga estava presa por baixo de sua capa. Ele a tirou, contemplando o brilho límpido da parte que ainda restara da lâmina.
Foi a primeira arma arcana que usara em batalha. E ainda não esqueceu a sensação quando seu corpo se retraiu quando a essência da arma o inundou, se unindo a sua. Nem da dor vinda com o processo. Ainda que tivesse se acostumado a ela, devido às vezes que tocara na espada do eleito, suportá-la enquanto se mantinha em movimento era quase insuportável.
O eleito lhe dissera certa vez que uma arma arcana era forjada com uma pedra de mana, tirada do coração petrificado de um monstro, após sua morte. A pedra era refinada e fundida ao mais puro aço através dos processos de forja que apenas os ferreiros arcanos das terras d’além mar conheciam.
Eram armas capazes de derrotar exércitos e mudar batalhas, nivelando homens, magos, e aqueles que foram tocados pelos deuses. Não poderiam ser quebradas, nem perderiam o fio, tirando-lhes a necessidade de as afiá-las. Não enquanto a essência de mana, advinda do cristal retirado de um monstro morto, ainda restasse.
No entanto, ali estava Sarosh, olhando para a pequena arma com metade do gume partido.
Ele pôde ver o ar frio escapar da lâmina no momento em que ocorreu, tirando-lhe qualquer ideia ou chance de prosseguir na direção de seu senhor. Sendo empurrado e puxado por inimigos, e aliados, para longe da batalha.
Morrer não o apavorava. Estaria morto nas ruas de Karapruta se não tivesse servido ao eleito, mas ainda havia uma função que precisava realizar como parte da companhia. Honrar o contrato de levar os comerciantes até a cidade Fortaleza de Saint Gaulos, na extrema encosta do mar azul.
Ali, seu dever estaria cumprido, e então poderiam regressar a Karapruta a fim de eleger um novo eleito entre os oficiais da companhia que lá haviam ficado. Mas Sarosh se perguntava: para quê?
Seu dever era com Kamir, antes deste ser eleito um dos comandantes da companhia, e continuou sendo nos anos que se seguiram.
Não fora amor ou afeto que os uniram, mas algo maior, mais duradouro, mais estável:
Dever e respeito.
Sarosh não o amara, e não precisava. Apenas o seguia. Mas, naquele dia, não o fizera. Escolhera sua obrigação com a companhia a morrer com seu senhor. Nisso ele via a sua culpa, seus malditos sentimentos.
Mesmo assim, não procuraria vingança. Falhara em seu dever, sim, mas fazé-lo daria voz aos sentimentos que não desejava.
Mas, o que fazer então?
Em um movimento silencioso, ele se levantou, fazendo um gesto para que os guardas próximos a ele permanecessem, e caminhou por entre as fogueiras do acampamento improvisado, ignorando aqueles que as cercavam.
Crianças assustadas, mulheres, idosos. Poucos homens capazes de lutar, e menos ainda eram os que estavam dispostos a isso. Morreriam se deixados sozinhos.
Sarosh não se importava com tal coisa, mas isso mancharia o nome de seu senhor na grande redoma da companhia.
Um homem que crescera desde a miséria até se tornar comandante. Kamir era orgulhoso, tanto por sua posição, quanto por sua origem. Talvez por isso usasse coisas luxuosas com aparências rústicas, dando um ar de simplicidade à sua volta.
Sarosh perguntava-se se ele próprio não era uma dessas coisas.
Não importava.
Ele caminhou até se afastar das fogueiras, observando as estrelas ao longe.
Os sacerdotes de Ak’bachara diziam que cada um daqueles pequenos pontos no céu eram pequenas janelas, as quais os deuses admiravam, contemplando os mundos que existiam além dos céus e da terra. Luzes tão distantes e fracas que só podiam ser vistas à noite, quando o sol se punha, e que apenas os deuses podiam alcançar.
Sarosh sentia inveja deles.
Ele olhou para baixo, para a areia que se estendia por léguas além do horizonte se você estivesse na extremidade da passagem de pedra ou alto o bastante para olhar. Eram ambos os casos.
Sarosh viu o limiar em que as distantes janelas dos mundos se encontravam com o vazio escuro do mundo abaixo. E percebeu uma luz na quase imperceptível divisão entre os dois planos.
Uma que brilhava menos, refletindo a luz se suas irmãs a noite, e o brilho do sol quando nenhuma delas havia.
Sarosh ja olhara naquela direção centenas de vezes, e escutara outra meia centena de relatos a seu respeito, de comerciantes e viajantes.
O eleito brincava para assustar os capitães da companhia, dizendo que um dia levaria a companhia naquela direção, a fim de contemplar os seus muitos séculos.
Mas Sarosh via em seus olhos um desejo maior do que uma simples brincadeira. Desejo que ele próprio também partilhava.
E assim, contemplando os mundos distantes, e sentindo a respiração gélida da noite, ele tomou uma decisão.
Iria até o lugar de onde vinha aquela luz, além do mar dourado, e contemplaria com seus olhos Samiha Hata, a estrela da tarde.
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