“Algumas tragédias, antes de serem contadas, precisam ser vividas.”
Prólogo - Presságio de uma noite escura.
— Coloque mais lenha, ou morreremos de frio antes que o inverno chegue — disse o pai de Odilon em seu tom imperioso. A serva se apressou para cumprir a ordem.
Não estava tão frio, mas a carne do velho duque parecia se contorcer com a menor e mais breve brisa que fosse.
Odilon o via se agitar enquanto era posto pelos servos no cadeirão da sala, coberto de peles e mantas grossas. As enormes pelancas pareciam prestes a cair de seus braços magros e esqueléticos cada vez que ele os erguia. A cabeça inquieta se movia em todas as direções, parecendo que a qualquer momento quebraria aquele frágil pescoço em que se sustentava.
“Seria muito pedir que tal coisa ocorresse?”, pensou divertidamente Odilon.
Quando o velho duque finalmente fora posto no cadeirão, ordenou que os servos se retirassem. Coisa que eles fizeram apressadamente, deixando apenas Odilon e seu pai no salão, além do chefe da guarda, sir Mellys Gagnon. Robusto, impassível e inimigo dos sorrisos. A espada arcana de duas mãos descansava na cintura.
Odilon encarou o pai, observando todas as imperfeições que podia notar no corpo antigo e frágil a sua frente.
O velho duque Hérmi Archambault possuía um rosto magro e descarnado, manchado pela idade e marcado com uma cicatriz na testa, de uma batalha em que lutara na juventude. Os braços e pernas eram finos e frágeis, mas tinham papadas de pele provindas de uma perda extrema de peso, advinda de uma doença que o duque adquirira havia alguns anos. O cabelo, antes ruivo e volumoso, começara a cair após os trinta e agora não passava de alguns tufos que ainda se agarravam em seu crânio, o qual era raspado frequentemente. As únicas coisas que ainda se podia chamar de “vivas” naquele corpo moribundo eram os olhos azuis escuros que encaravam os de Odilon com intensidade amedrontadora.
— Há algo que deseja de mim, pai? — perguntou, rompendo o silêncio que se fazia.
O velho lambeu os lábios secos antes de responder:
— Desejo apenas tua presença, nada mais. Agora cala-te.
Odilon estreitou os olhos com desagrado.
“Maldito velho senil!”
Ouviu o som da luxuosa porta de verlã sendo aberta. Olhou pelo ombro para ver um sorridente homem esguio, trajado de um gibão dourado com a galhada escura de um cervo bordada no peito. Seus cabelos prateados desciam em cachos até a metade das costas. Sir Jacke Arnault, o segundo homem no comando da guarda do castelo. Ele se pôs ao lado de Odilon e se ajoelhou.
— Mandou chamar-me, meu senhor? — disse.
— Aguarde até que o último chegue.
O salão então retornou ao silêncio. Odilon olhava de soslaio para Jacke, que se porá em pé. lembrou o apelido que as damas do castelo e das aldeias ao redor lhe haviam dado. “Sorriso da manhã”. Imaginava se era porque ele sorria toda vez que acordava na cama ao lado de uma delas.
Jacke amava as moças e detestava seus irmãos e pais. Por vezes cravava diferentes tipos de espadas em ambos na mesma noite.
A porta se abriu novamente e um homem corcunda que já passara a muito da meia idade coxeou por ela e se pôs ao lado de Jacke antes de prestar uma reverência a o pai de Odilon.
— Sua graça, aqui estou. — Ele olhou para Odilon, parecendo confuso com sua presença.
O duque abriu a boca duas vezes em um movimento semelhante ao regurgitar de uma vaca antes de falar:
— Scalco, bom, bom! Finalmente podemos começar a tratar de certos assuntos — O pai de Odilon se remexeu em seu assento.
— Meu senhor — disse Scalco. — É certo tratar de tais assuntos com o jovem senhor Odilon presente? Nunca havíamos falado de tais…
— Se ele está aqui é porque aqui o quero. De outra forma não o teria chamado. Ademais não lhe será dada palavra. Ele apenas escutará pois como herdeiro é necessário que entenda o que há de acontecer a nossa casa e ao reino nos anos vindouros.
Scalco recuou, curvando-se.
Odilon sentiu os lábios curvarem com desagrado diante das palavras e menções do homem para que ele saísse. Ao mesmo tempo sabia que não poderia fazer-lhe qualquer coisa. Scalco era um alquimista vindo de Odissya, uma das cidades sábias do leste, tinha um valor grande demais para ser descartado por uma simples rusga. Ele se resignou em suportar o desacato e concentrou-se em prestar atenção na conversa que estava prestes a ocorrer. Qualquer que fosse o assunto a ser tratado, seria sobre o futuro da casa. Seria sobre ele.
— Scalco, tivemos novidades de sir Faucher? — perguntou o velho duque.
O homem corcunda limpou a garganta antes de responder:
— Um pássaro chegou de sua parte trazendo uma mensagem. Segundo ele, o feiticeiro se mostrou satisfatório. No entanto, ele acabou por perder todos os espécimes.
— Se perdeu todos, então como pode ter sido um sucesso? — observou Jacke.
Scalco tossiu e então disse:
— Sobre isso, o sir explicou em sua carta que as criaturas foram mortas pelo cavaleiro a cargo da aldeia, senhor.
Odilon viu o rosto do pai se contorcer de desprezo quando o homem corcunda terminou seu relato.
Jacke virou a cabeça de lado, seus cabelos se mexeram como um rio prateado.
— Sinto-me confuso, isso não torna o experimento uma falha?
— Os objetivos ao usar as criaturas eram; saber se a magia de controle seria eficaz em uma batalha e enfraquecer a aldeia na borda da floresta de Gauss — explicou sir Mellys com uma voz que transbordava desânimo.
— E foram cumpridos, sim, pelo que relata a carta de sir Faucher — gaguejou Scalco.
— Sendo assim — A voz de duque Hérmi se ergueu —, mande que proceda conforme o planejado.
“Planejado?”
Scalco tossiu.
— Bem, meu senhor, precisaremos de mais monstros — informou ele.
— Pois que compre. A guilda deve ter ainda muitas espécies para oferecer.
— E qual delas o senhor deseja, ursos e basiliscos, javalis de cara malhada, ou talvez…
— Deixo isso a sua escolha — O duque disse com um gesto aborrecido de sua mão, que fez as carnes flácidas de seu braço balançarem.
Scalco baixou a cabeça em um reverência servil.
— Meu senhor, talvez seja melhor que sua graça explique ao jovem senhor o significado de tal conversa — aconselhou sir Mellys olhando para Odilon.
O duque limpou a garganta.
— Era minha intenção fazer isso hoje, mas tive pressa em saber as novas de Faucher — explicou ele.
Odilon ficou em silêncio, apenas escutando, como seu pai o havia ordenado que fizesse. Sabia o que esperava se o desobedecesse. Ainda tinha cicatrizes das vezes em que o fizera.
— Escute, Odilon Archambault, meu filho. Deves saber que há uma disputa velada pelo trono ocorrendo entre os príncipes de nosso reino.
Odilon confirmou acenando com a cabeça. Seu pai prosseguiu.
— O primeiro príncipe, o herdeiro direto, e a princesa, que deseja o trono.
Claramente Odilon o sabia, tal como praticamente todos os nobres das grandes casas que jogavam o jogo político em Andrias. Ouvir seu pai lhe explicar tal coisa, como se ele fosse um tolo ignorante, era irritante.
— É nosso desejo para o bem de nossa casa que a princesa triunfe, e para isso precisamos de certos preparativos.
“Preparativos?”
Ao lado, sir Jacke abafava um pequeno riso. Duque Hérmi prosseguiu.
— Em dois meses um banquete será feito em Repouso das Garças. Tu irás para me representar e juntar-se aos outros senhores de nossa causa. Devemos mostrar força e poder. Podes fazer isso? — O velho dobrou as sobrancelhas de forma interrogativa.
Odilon quis amaldiçoá-lo de todas as maneiras possíveis. Ao invés respondeu:
— Sim, meu senhor — Prestou uma reverência.
O velho suspirou, recostando-se no cadeirão. Então continuou a falar.
— Scalco o ajudará com os preparativos e sir Arnault o acompanhará.
Odilon olhou para sir Jacke, notando o sorriso que se escondia no rosto quase inexpressivo.
Seu pai continuou.
— Será um estratagema delicado. Não podemos atacar diretamente o príncipe mais velho. Ele detém o favor da maior parte das grandes casas e bons laços estreitos com o Supremo píer de Pérgamo, além de uma boa relação com os outros dois príncipes. Ele está alto demais, então derrubaremos a estrutura que o sustenta — O velho umedeceu os lábios antes de continuar. — Semearemos discórdias na família real, queimaremos os campos e as vilas das casas que lhe são leais, causaremos escândalos perante a Ellday e aos píeres.
— Mas… — Odilon começou a falar, porém se calou ao sentir o olhar de seu pai sobre ele.
O velho fez para que continuasse. Odilon sentiu a garganta seca quando a voz lhe saiu.
— Como fazer tais coisas sem que todas as espadas do reino se voltem contra nossa casa?
Sir Jacke voltou a rir. Scalco tossiu. Mellys ficou em silêncio.
— Da mesma forma com que se derruba um castelo de cartas — O velho respondeu. — tire uma e a formação de desfará.
O velho abriu um sorriso e continuou.
— Há uma vila próxima a floresta de Gauss. O conde Fréive tem planos de usá-la como posto avançado para explorar a região. Para isso ele precisará exterminar as populações de goblins que ali vivem. E é lá que atacaremos primeiro. Nem todas as terras próximas à floresta de Gauss estão sob controle do conde. Alguns nobres menores nos devem alguma lealdade. E temos usado tal lealdade para enviar homens para dentro da floresta para atacar quando a oportunidade surgir. E os monstros controlados pelo mago servirão para criar tal oportunidade.
O riso do cavaleiro prateado aumentou. Já começava a incomodar Odilon, mas não mais que um detalhe no plano do pai.
— E quanto aos goblins? — questionou. — Se são um problema para o conde, porque não seriam para nós?
A risada do cavaleiro explodiu, sua voz enlouquecida reverberou nas paredes com um eco fantasmagórico.
— Os experimentos de controle de monstros não foram os únicos que fizemos naquela floresta. E acredite em mim, rapaz, depois deles não há mais necessidade de nos preocuparmos com qualquer goblin.
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