Capítulo XXI (21) - Hua Yuling Xiuying
A ilha dos Hua Yuling era organizada em quatro áreas principais: a zona comum, o pátio externo, o pátio interno da seita e, por fim, o palácio. Cada setor era separado por muralhas e portões sucessivos.
Na área comum concentravam-se o porto, os armazéns, a arena de combate e diversas construções comunitárias, onde a população podia se reunir para assistir aos duelos.
Já os pátios externo e interno eram destinados aos membros da seita Hua Yuling, servindo como locais de treinamento e meditação. A seita não era composta apenas pelos membros diretos da família nobre. A maioria de seus membros eram camponeses pobres com algum talento para o cultivo, que ali recebiam instrução com o objetivo de ascender no serviço militar e conquistar posições como soldados ou oficiais a serviço da família.
Estávamos no pátio interno da seita, sentados em uma grande mesa de madeira, na qual serviçais e discípulos trajados com roupas simples nos serviam a comida. As travessas eram abundantes: carnes bem temperadas, peixes recém-pescados e frutas frescas.
Não parecia o clima de um duelo. O ambiente assemelhava-se muito mais a uma celebração, com música suave, risadas contidas e pratos luxuosos que chegavam sem cessar à mesa. Eu estranhava tudo aquilo, como se o peso da ocasião tivesse sido encoberto por uma máscara de festividade.
— Senhor Nyryzr, você está preparado para lutar contra mim? — perguntou Hua Yuling Jin. Para o meu azar, ele estava sentado bem ao meu lado.
Não respondi. Mantive os olhos fixos no prato, enquanto cortava uma fatia da carne misturada com o arroz com calma estudada.
De tempos em tempos, percebia os olhares curiosos dirigidos a mim. A maneira como eu comia parecia um espetáculo à parte. Diferente deles, que usavam as mãos ou paus de madeira em tigelas de cerâmica, eu havia trazido meus próprios talheres. E além de tudo, eu misturava todas as comidas no mesmo prato, carne, arroz, e uma manga madura.
— Você é estranho… — sussurrou no meu ouvido, uma voz feminina suave.
Levantei o olhar e encontrei a garota de olhos verdes que havia me chamado a atenção no porto.
— Jin, meu pai deseja falar com você. — A jovem mudou de feição, seu rosto divertido e alegre deram lugar a um rosto sério.
O rapaz obedeceu sem contestar. Abaixou a cabeça, levantou-se em silêncio, e caminhou na direção do patriarca. Fiquei sozinho no canto da mesa, com o olhar da jovem fixo em mim.
— Me disseram que o seu nome é Thomas, estou correta? — Ela se sentou no lugar onde estava Jin, e apoiou os cotovelos na mesa. Sorriu para mim com estranho interesse.
Era a primeira vez em muito tempo, que eu escutei alguém falar meu nome corretamente. A maioria se enrolava na primeira sílaba.
— Sim, sou eu — respondi, sem dar muita atenção para ela, e voltar para a carne no prato. — E quem é você?
— Quem você acha que eu sou? — Ela sorriu, o sorriso com os dentes tão brancos como a neve.
— Não faço a mínima ideia. — Coloquei a mão na frente da boca para responder, afinal, não ia falar de boca cheia.
— Então, muito prazer. — A garota manteve o sorriso, e esperou até que eu olhasse para ela. — Meu nome é Hua Yuling Xiuying, a filha mais velha da família Hua Yuling.
Assenti com cabeça, sem demonstrar interesse.
— Estou na primeira camada do segundo reino, e quanto a você? — questionou-me ela, sem se importar com a minha frieza.
— Eu não sou um cultivador.
Ela riu da minha afirmação.
— Não precisa mentir para mim, docinho. — Xiuying tamborilou os dedos na mesa, mostravam uma certa impaciência da parte dela, embora ela mantivesse o rosto sereno e meigo.
— Não estou mentindo. — Terminei minha refeição, e limpei minha boca com um lenço guardado no bolso.
— As notícias sobre você são outras…
— Ah é? — Nisso eu estava interessado, afinal, quais seriam os boatos falados nas minhas costas? Sem hesitar, a questionei:
— E que boatos seriam esses?
— Bem, dizem que você é um cultivador do sexto reino. Capaz de derrotar inimigos com um único olhar. Um rico viajante em passagem por Tianhang para uma missão maior nos cinco reinos mortais. — Ela manteve a voz calma, sem se exaltar em nenhum momento.
— E você acredita em alguma delas?
Ela negou com a cabeça.
— Então, no que você acredita?
— Bem, acho que você está no segundo reino, assim como eu.
— Está errada… — Levantei os braços, e estiquei as mãos.
— Errada?
— Não sou um cultivador, não tenho acesso a nenhum reino de cultivo.
Xiuying ficou boquiaberta por um momento, mas logo recuperou a compostura.
— Então como derrotou a gangue do Hai Zi sozinho? — Ela apoiou o queixo sobre a mão.
— Não foi difícil. — Virei-me e sorri para ela. — Eles são amadores comparados a mim.
— Amadores? — Xiuying arqueou a sobrancelha, desconfiada. — Você fala como se fosse um veterano de guerra.
— Pode-se dizer que sim… Lutei numa guerra civil… — respondi, e permaneci em silêncio por alguns instantes ao ter algumas lembranças do campo de batalha.
O silêncio entre nós se prolongou por alguns segundos. Xiuying não desviava os olhos de mim, como se quisesse arrancar uma verdade escondida por detrás das minhas palavras. A expressão doce e serena que ela mostrava era somente uma máscara para algo muito mais calculista. E eu sabia disso, por isso, deveria falar o mínimo possível.
— Sabe… — disse ela, em tom baixo, quase confidencial — meu pai não confia em você. Mas ao mesmo tempo, está curioso.
— Curioso? — repeti, sem conseguir esconder o riso irônico. — Bem, acho que ele não é o único. Estou correto?
Ela riu, mas seus olhos continuaram sérios.
— Não, não é isso. Ele quer saber de onde você veio, qual é a sua verdadeira origem, um mortal ou um imortal? E principalmente qual é a sua verdadeira força. Estamos todos ansiosos para ver seu duelo com o meu primo…
— Tenho dó dele, vai sofrer em minhas mãos. — murmurei com confiança, ao estalar os dedos e inclinar-me até quase tocar o rosto dela. — E você? Também está curiosa?
— Eu? — Ela hesitou por um instante, entretanto o sorriso retornou rápido, tão falso quanto ensaiado. — Estou apenas entediada. Qualquer novidade me interessa.
— Entediada? — soltei uma gargalhada curta. — Essa é boa.
— É a verdade. Esta ilha é um tédio. E meu pai… bem, digamos que ele gosta de controlar tudo.
Levei a mão ao nariz, e o cocei, muito desconfiado da verdadeira natureza daquela garota. Aquelas palavras tinham camadas demais. Não era apenas desabafo. Havia uma intenção escondida.
— Eu tenho dezenove anos — continuou ela, o tom agora mais firme — e já alcancei a primeira camada do segundo reino. Eu deveria ser a herdeira do clã. Eu tenho muito mais potencial que o meu irmão, mas… — Seu sorriso se desfez, e cedeu lugar a um rosto carregado de frustração. — Ele é o homem da família…
Aquilo não era uma amostra da vaidade dela. Era mais profundo, era rancor. Para Xiuying, essa não era uma conversa casual, ela estava testando terreno. Provavelmente queria ver minha força, e se eu era capaz de lutar por sua causa. Era a segunda vez que ela afirmava seu reino de cultivo, provavelmente ela era forte, e se eu fosse um cultivador, talvez isso me pendesse para o seu lado.
— Não sei do que você está falando. — Recostei-me na cadeira, e tentei fingir desinteresse sobre o assunto. — Não sei nada sobre cultivo.
— Para de zombar de mim… — Ela cruzou os braços, agora ela tinha se irritado de verdade.
— Muito bem, o que significa segundo reino? Você é forte? — provoquei, ao perceber a ferida exposto, e com noção de que receberia uma resposta a altura.
Pela minha vaga noção até aquele momento, ela certamente era bem forte. Assim como Jiahao havia explicado, um cultivador considerado talentoso levava entre cinco a dez anos para romper a última camada do primeiro reino e ascender ao próximo. Se aquela garota, com apenas dezenove anos, já havia alcançado o segundo reino, também chamado de “Núcleo da Fundação”, ela não era só talentosa, estaria mais perto de uma verdadeira prodígio.
— Forte? — Xiuying ergueu a voz, como se a palavra fosse uma ofensa a sua dignidade e honra. Seus olhos verdes foram tomados por raiva e indignação. E por um instante a atmosfera pareceu se comprimir ao nosso redor. — Como ousa, pequeno verme?
Seu tom carregava um peso estranho, como se as próprias paredes vibrassem com sua indignação. Eu sabia que bastava um gesto, e talvez ela realmente demonstrasse sua força ali, na frente de todos.
Então, como quem percebe o risco de se expor, ela soltou um suspiro tenso, fechou os olhos por um segundo e retomou a compostura. A máscara da serenidade voltou a cobrir seu rosto.
— Não se engane — disse em tom baixo, agora mais frio. — Se eu quisesse, você já estaria morto no chão.
Eu sorri com a ameça.
Talvez eu devesse puxar até o limite, e ver de perto a força daquela garota. O risco não valia a recompensa.
— Você é peculiar. Xiuying, é o seu nome certo? Lembrar-me-ei dele com muito prazer. — Fiz uma reverência respeitosa com uma leve inclinação na cabeça.
Seu belo sorriso deu lugar a rosto sério.
— Não se dê ao trabalho. Parto essa noite para o Mar do Dragão, fui aceita em uma seita de elite para cultivadores talentosos que desejam ascender até a Alma Nascente. Esse banquete não é apenas para vocês, também é minha homenagem… — Ela silenciou por um instante. E, naquele breve intervalo, a máscara escorregou. No lugar do sorriso encantador, surgiu uma sombra de tristeza que logo se escondeu de novo atrás do semblante sereno. — Pelo menos isso…
Ela se levantou, e voltou para seu assento ao lado de seu pai.
Suspirei e levei novamente o copo aos lábios, enquanto as risadas e a música se misturavam ao redor.
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