Capítulo VII - Despertar
Abri os olhos, não estava mais no beco frio do porto. Estava deitado em uma cama confortável, o colchão firme acolhia meu corpo com suavidade, e o cobertor bordado com padrões florais repousava sobre meu peito. O teto acima de mim era de madeira escura, com vigas expostas.
A luz da manhã filtrava-se pela janela, dourada e quente. Sobre a mesa à frente da janela, banhada diretamente pelos raios solares, Lefkó dormia enroscada em si mesma, e aproveitava um belo banho de sol.
As paredes eram adornadas com painéis de madeira entalhada e biombos pintados à mão, e mostravam paisagens costeiras, com navios navegando entre as ondas. Havia um perfume discreto no ar, chá fresco misturado ao incenso de jasmim.
Tentei me levantar, mas a dor ainda me prendia. Levei a mão até o abdômen e senti as faixas apertadas e as bandagens sobre o ferimento.
— Não tente. Vai abrir o corte — alertou uma voz masculina, atrás de mim.
Virei o rosto com esforço e vi um jovem sentado ao lado da porta, absorto em um livro de capa dura. Ao erguer um pouco o olhar, o reconheci: era Wen Qishu Song, o filho do dono da livraria, Wen Qishu Jiahao.
— Onde estou? — questionei, confuso.
— Quarto de hóspedes da família Wen Qishu — respondeu ele, sem desviar os olhos da leitura.
— O que aconteceu? — Levei a mão à cabeça e percebi outra bandagem, enrolada em torno da testa.
— Foi assaltado, reagiu, e acabou ferido. — A resposta saiu seca, automática. — Quem anda por aí com tantas moedas de ouro? Tem que ser meio idiota.
— Quem me trouxe? — Sentei-me na cama, e observei o sol pela janela. Eu havia ficado desacordado por pelo menos um dia.
— Lingxin. Arrastou você do porto até aqui. Ele é um bom sujeito.
— E minhas coisas? — Observei então que eu não estava com o meu uniforme, e sim vestido em um estranho traje civil local.
— Estão sendo lavadas. Estavam todas cobertas de sangue. — Song respondia todas as minhas perguntas sem tirar os olhos do livro, era um comportamento um tanto irritante.
— Por que estão me ajudando? — Eu desconfiava de suas verdadeiras intenções.
— Meu pai mandou. Não faço ideia do porquê, mas sigo ordens.
— Obrigado. — Inclinei a cabeça em respeito.
— Quando se recuperar, vá direto à prefeitura. Querem interrogar você.
O frio percorreu minha espinha. Aquilo soava como o início de um problema ainda maior.
— Motivo? — indaguei, com medo da resposta.
— Você matou cinco pessoas. É claro que os oficiais vão fazer perguntas. Mesmo que tenha sido legítima defesa, ainda existem leis.
Cinco?
Fiquei paralisado. Não me lembrava disso. Porém, ser acusado de cinco homicídios era melhor do que eles descobrirem minha verdadeira identidade e intenções naquela cidade.
— O que você quer dizer com isso?
— Lingxin encontrou você caído no beco, cercado de corpos. Todos mortos com golpes de faca, aparentemente com as próprias armas deles. Não faço ideia de como conseguiu aquilo. Mas, de fato, você parece lutar bem.
Então aquele idiota resolveu mentir. Disse que não sabia de nada, e fingiu ter me encontrado por acaso. Que ótimo! Agora, além do ferimento, eu ainda estava metido em uma investigação de um massacre. E sozinho.
Embora fossem notícias ruins, o plano ainda continuava vivo. Eu era apenas um pobre viajante de uma terra distante, atacado por um bando de encrenqueiros que se defendeu de uma tentativa de ataque.
— E eu resolver fugir e ir embora? — questionei, como se ponderasse a opção.
Pela primeira vez na conversa, Song olhou para mim.
— Não faça isso, meu pai arriscou o pescoço por você. Era pra você estar em uma cela de prisão enquanto se recupera dos ferimentos. Ele garantiu que iriamos vigiar você.
— E o meu ritual de cultivo?
— Quando estiver totalmente recuperado, meu pai irá fazer o ritual de iniciação ao Qi, não se preocupe. — Ele voltou a atenção para o livro.
— Não estou muito confiante nisso… — Coloquei a mão sobre a barriga, e senti o leve desconforto. — Ele usou uma técnica meio familiar para mim, mas eu não sei como vocês chamam ela. Talvez você ou seu pai saibam o nome, ou como funciona.
— Talvez. Conte o que aconteceu. — A resposta foi vaga. Obvio, sua atenção seguia dividida entre o meu relato e o livro.
— A faca me atingiu. Atravessou meu casaco e me feriu.
— Não entendi.
— Quero dizer, ela me feriu, mas minhas roupas continuaram intactas.
Song fechou o livro devagar e me olhou com expressão confusa e também perturbada.
— Está dizendo que a lâmina perfurou você sem rasgar o tecido?
— Exatamente. Foi como se a lâmina ignorasse a roupa e acertasse direto o corpo.
Ele derrubou o livro no chão, o rosto boquiaberto.
— Espere aqui, vou chamar meu pai! — Ele abriu a porta com violência, e saiu do quarto apressado. Nem mesmo se deu ao trabalho de apanhar o livro no chão.
Fechei os olhos por um instante, e tentei organizar os pensamentos, pensar nos meus próximos passos, traçar uma narrativa coerente para a investigação. Ao mesmo tempo, eu podia ouvir o som dos passos de Song pelo corredor, e sumirem pouco a pouco.
Depois de alguns minutos, ele voltou acompanhado de Jiahao. Diferentemente do nosso primeiro encontro, ele estava um tanto mais sério, o rosto fechado e os olhos focados em mim.
— Seja bem claro — disse ele, ao sentar-se na cadeira ao lado da porta e apoiar o queixo na mão. — Qual foi a técnica que Hai Zi usou para te ferir?
— Não sei, por isso chamei você.
— Explique detalhadamente.
— A faca me atingiu sem cortar o tecido do meu casaco, que, em teoria, deveria ser totalmente impossível de ser perfurado. Quero dizer, é impossível, tanto que ele ignorou.
Jiahao virou o olhar para Song, parado em pé, ao seu lado.
— É pior do que imaginávamos — murmurou Song. — Mas não faz sentido. Hai Zi era apenas um encrenqueiro de beco, um órfão do porto. Não teria acesso a esse tipo de técnica.
— Agora é a sua vez de explicar.
— O que ele usou se chama “Toque Fantasma”. Não é uma técnica particularmente avançada, mas requer certo domínio do Qi. Um cultivador experiente poderia aprendê-la com treino e disciplina.
As palavras dele não pareciam de alívio. Pelo contrário, eram carregadas de dúvidas.
— Se é algo relativamente simples, por que essa reação? Por que parece tão preocupado?
— Hai Zi não era um cultivador experiente. Ele não deveria saber dessas técnicas intermediárias, pelo menos, não sem alguém o ensinar.
— Você acha que ele foi enviado? — perguntou Song. — Para atacar nosso hóspede?
— É uma possibilidade — respondeu Jiahao, sério. — Carregar uma bolsa cheia de moedas de ouro chama muita atenção.
— Como eu já disse, eu sei me virar.
— Lutar sozinho contra cinco oponentes não é exatamente o que eu chamaria de “se virar” — comentou Jiahao, e encarou minhas bandagens. — Mas admito que você tem potencial, e pelo visto, sabe o básico de luta.
— Se aquele garoto não tivesse atrapalhado, eu teria saído ileso.
— Que garoto?
— Não sei ainda o nome de vocês. Estou tentando memorizar.
— Lingxin? — sugeriu Song.
— Esse mesmo, ele me atrapalhou.
Eu não mentia, era a verdade, a presença dele me impedira de usar meu baralho, e com ele, meu verdadeiro poder. Em situações normais, eu nunca teria perdido para um bando de moleques de rua.
— Ele te salvou. Encontrou você ferido e te trouxe até nós — disse Song, com firmeza.
— Era o mínimo, né? — retruquei, suspirando enquanto passava a mão pela cabeça. — Mas afinal, quem é ele?
— Lingxin? Filho de uma família de funcionários públicos de baixo escalão. Ele tem um bom potencial para o cultivo, eu mesmo o treinei nos conceitos básicos. Foi pura coincidência ele ter passado por ali naquele momento.
— Uma coincidência enorme — respondi, carregado de sarcasmo.
— Agora descanse um pouco, recupere-se primeiro. Ainda temos muitos assuntos a resolver.
— Estou perfeitamente bem. — Levei a mão às bandagens e, num único movimento, arranquei todas.
Jiahao levantou-se num impulso, e ergueu a mão para me impedir, mas já era tarde. Os curativos caíram no chão, e expuseram a região onde o ferimento deveria estar. No lugar, restava apenas uma fina cicatriz.
— O quê? Eu mesmo costurei esses pontos! — A expressão de Jiahao mudou completamente, os olhos arregalados de espanto.
— Boa garota — falei, e sorri para Lefkó.
Ela abriu lentamente os olhos vermelhos, me lançou um olhar breve e preguiçoso, e voltou a cochilar sobre a mesa.
— A cobra? A cobra fez isso? — Song apontou para ela como se visse uma assombração.
— Venenos também curam. — Levantei-me da cama e estiquei os braços com gosto, sentindo os músculos relaxarem. — Muito bem. Agora me digam, onde estão minhas coisas?
Os capítulos serão postados diariamente a partir do dia 23/08.
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