Capítulo XV - Segunda Forma
— Lefkó… —- suspirei, eu esperava não me arrepender daquela decisão. — Como membro do “Conselho Imperial”, eu permito que você acesse sua segunda forma.
Apesar de ela estar lá em baixo, eu consegui ver um leve brilho nos seus olhos vermelhos.
— Como quiser, Thomas… —- Ela se envolveu em uma forte luz avermelhada.
Lefkó começou a crescer e a crescer, não era mais branca, seus olhos não eram mais vermelhos.
Seu corpo assumiu uma coloração avermelhada, e seus olhos brilhavam como a luz do sol em um dia quente de verão. Dois grandes chifres cresceram da sua cabeça, e a água ao redor dela começou a borbulhar.
— Agora é a minha vez! — gritou ela, a voz muito mais grave.
Ela estava bem maior que os tentáculos da criatura, e o caminho de pedra desabou sobre o peso colossal de Lefkó. Ainda assim, ela se movia com a agilidade típica de uma serpente, e desviava sem muita dificuldade dos tentáculos que avançavam para prendê-la.
Eu observava a luta do alto, ainda flutuante em meu corpo feito de vaga-lumes. Lefkó claramente tentava mirar na silhueta humana, todavia, era sempre barrada pelos tentáculos que a cercavam.
Olhei para cima. A esfera brilhante pulsava num ritmo irregular, como uma lâmpada prestes a apagar. Lembrei-me do painel, aquilo só podia ser a fonte de energia da criatura. Se eu destruísse a esfera, talvez ela enfraquecesse ou fosse derrotada.
Aproximei-me. Era maior do que eu imaginava, com mais de um metro de diâmetro. No mural, o personagem a segurava nas mãos, aquilo não parecia muito real agora.
Tentei arrancá-la, mas falhei. Meu corpo de vaga-lumes não interagia bem com o objeto; eu teria que abandonar aquele poder para tocá-lo. Felizmente, ainda conseguia acessar meu baralho.
Flutuei um pouco acima da esfera, e me preparei para invocar minha próxima carta.
— Rainha de Copas! — Levantei a carta no ar, e no mesmo instante senti o meu corpo pesar, e a sensação da gravidade novamente me puxar para baixo.
Eu caí em cima da esfera, ela balançou um pouco, mas não cedeu de lugar. Eu a agarrei com toda minha força, em um difícil equilíbrio para não cair. A textura do objeto era parecida com a de um vidro temperado, era grosso e gelado.
Se eu caísse sem tirar aquela esfera dali, eu não teria outra chance limpa até a vitória no duelo abaixo de mim.
Levantei meu punho, e me preparei para golpear. Para a minha surpresa, funcionou melhor do que eu pensava.
Uma fina rachadura apareceu na esfera. Não tive dúvidas, comecei a dar um soco após o outro, e aos poucos a rachadura começou a ficar maior e maior.
Até que a esfera parou de brilhar, e a gravidade fez o seu trabalho de nos puxar para baixo.
Levantei minha mão para o alto, e me preparei para ativar o poder da carta da “Rainha de Copas”.
No mesmo instante, das águas abaixo surgiu a forma de uma mão gigante, que me envolveu antes que meu corpo atingisse a superfície como uma pedra. Movi o braço, e a figura líquida imitou cada um dos meus gestos, como se fosse minha extensão.
Aterrizei em segurança do outro lado da sala, em frente a próxima passagem. Minha ideia tinha sido um sucesso.
A figura humanoide encarava a esfera caída na minha frente, a luz fraca e vacilante.
— Agora é a minha vez — murmurei, passando a língua pelos lábios.
Golpeei o ar com força, e a água respondeu ao meu comando. Um único turbilhão ergueu-se do lago, envolveu a figura e a arrastou em um único movimento para as profundezas. Em poucos segundos, tudo voltou à calma, apenas a superfície espelhada e silenciosa permanecia.
Lefkó ainda se erguia nas águas, colossal. Eu caberia inteiro dentro de sua boca, e sua língua bifurcada tinha o meu tamanho.
— O que é isso? — perguntei, ao apontar para a esfera.
Ela estava em péssimo estado: rachaduras cobriam sua superfície e a luz que emanava era tão fraca que mal iluminava meu rosto.
— Uma esfera de Qi — respondeu Lefkó, seca.
— E? — insisti, esperando algo mais do que quatro palavras.
— O que você quer? — retrucou, irritada.
Passei a mão pela testa e soltei um longo suspiro.
— Uma explicação decente.
— Essa esfera é um núcleo condensado de Qi espiritual. É daqui que vem a força desta água… um refino valioso para cultivadores iniciantes. Provavelmente está ligada à cachoeira do lado de fora.
— E aquela criatura que tentou nos impedir? — perguntei.
— Já lhe disse… um humano.
— Não parecia humano. — rebati, os braços cruzados, e olhar atento em uma das rachaduras da esfera parecia expelir um denso líquido translúcido.
— Foi corrompido pelo Qi. A força de vontade dele não foi suficiente para suportar tamanho poder.
— Isso me preocupa um pouco — desabafei, ainda suspeito da verdadeira natureza da esfera. — As marcas de batalha do lado de fora, não combinam com a natureza desse inimigo. Devem haver mais deles, consegue senti-los?
— Não, apenas um vejo um grande… — Lefkó não conseguiu concluir a frase.
Um dos tentáculos a puxou para baixo. A criatura ainda lutava.
A água explodiu para todas as direções, ao mesmo tempo que metade do corpo de Lefkó era submerso por debaixo da água. Logo na sequência, uma grande onda se formou com o movimento inimigo.
Graças a ‘Rainha de Copas’, consegui manifestar uma barreira água, antes que eu fosse varrido pelas ondas.
Porém, eu esqueci da existência da esfera.
Assim que a água tocou no objeto, a luz emitida aumentou de uma vez só.
Fechei os olhos num reflexo rápido, e escutei o estrondo, semelhante a de uma garrafa quebrada no chão.
A minha barreira de água não foi suficiente para conter a força da explosão.
A pressão me arremessou para longe, até colidir com a parede atrás de mim. Abri os olhos com esforço, sem a luz da esfera, a caverna inteira estava numa escuridão profunda. Eu apenas escutava o barulho da luta na água, as ondas que vinham de um lado para o outro, e os gritos das duas criaturas.
E então, voltou-se a ser dia.
Não era a luz branca da esfera, em vez disso, era um fogo vivo. Uma labareda que saía da água e se estendia até o longe da caverna.
Lefkó ardia em chamas, seu corpo avermelhado brilhava com o calor, e a água evaporava ao seu redor. Seus grandes olhos emitiam uma forte luz que quase me cegou ao olhar para eles.
— Boitatá… — murmurei, essa era a segunda forma de Lefkó, assumir a aparência de uma enorme cobra de fogo.
O calor era sufocante, esmagador. Cada respiração queimava minha garganta, e as gotas de suor evaporavam antes de descer pelo rosto. O lago inteiro fervia, e liberava uma névoa espessa que subia até o teto, enquanto um forte cheiro de enxofre invadia minhas narinas. O ar pesado era difícil de respirar.
No centro da água, eu podia ver a criatura, se debatia em desespero, os tentáculos se contorciam em desespero, e ela urrava em som grotesco e não natural. Alguns dos tentáculos eram consumidos pelas chamas de Lefkó, já outros tentavam, sem nenhum sucesso, se enroscar em seu corpo flamejante.
Finalmente, a criatura parou de se debater. Os tentáculos afundaram no lago, enquanto a silhueta humana flutuava no ar, um pouco acima da linha da água. A coloração azulada da pele sumiu, e revelou o belo rosto de um homem adulto. Ele estava nu, e o olhar meio perdido.
Encarou-me por um instante, e soltou um leve sorriso.
— Libertou-me. — A voz dele ecoou por toda a caverna.
Eu estava atônito demais para responder alguma coisa. Eu não sabia quem ele era, quais eram suas intenções. Levantei-me do chão, e fiquei em posição de guarda, preparado para qualquer movimentação hostil da parte dele.
— Quem é você? — perguntei, a mão firme sobre o baralho.
Ele começou a se virar, lentamente. Lefkó o observava, e vi seus olhos se perderem no brilho intenso que emanava dos dela. Não teve tempo de dizer mais nada: num único bote, Lefkó o engoliu por inteiro.
Assim que o homem foi engolido, o fogo que envolvia Lefkó se apagou, e a escuridão voltou a dominar a caverna.
— Parabéns Lefkó, ótimo trabalho… — exclamei, em um tom sarcástico. Por um lado eu estava irritado, e pelo outro, satisfeito e relaxado.
Invoquei a carta do Mágico e equipei novamente minha lanterna. O feixe de luz atravessou a névoa fina que se formava acima da água esverdeada e turva, misturada ao vapor. A sensação de perigo era reforçada pelo fato de que, em algum ponto abaixo de mim, uma cobra colossal se mantinha oculta.
— Lefkó, apareça. Isso não é nada engraçado.
O som de algo na água ecoou à minha volta. Inclinei-me, e apontei a luz para baixo, todavia a turbidez não permitia ver nada. Então, de repente, como os fortes faróis de um carro no breu, dois pontos luminosos surgiram à minha frente, os olhos dela.
— Não faça isso, vai me cegar! — Ergui os braços para proteger o rosto.
— Thomas, Thomas… — Sua voz ressoou, bem grave, quase rouca.
— Vamos, saia dessa forma. A batalha já acabou.
A imensa cobra começou a enrolar-se lentamente ao meu redor, reduzindo o tamanho gradualmente até que, por fim, retomou sua forma original e repousou tranquilamente no meu pescoço.
— Divertiu-se? — questionei para ela.
— Um pouco, mas só foi um aquecimento. — Ela escondeu-se por debaixo do meu caso
— Vamos sair daqui, está parecendo uma sauna… — afirmei, enquanto continuava através do túnel.
As perguntas e os questionamentos sobre a esfera e o homem preso no lago ainda estavam na minha mente, porém, ainda não era o momento certo de ir atrás delas. Eu ainda tinha um longo caminho pela frente.
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