— Para onde agora? — questionei para Lefkó.

    Eu caminhava até as escadarias do templo. Era a única saída que eu conseguia pensar naquele momento.

    — Jiahao afirmou haver uma passagem do outro lado. — Lefkó enroscou-se no meu pescoço, seu corpo frio contrastava com o suor que escorria pela minha nuca da batalha anterior.

    — E você afirmou que ela estava no templo. — Deixei escapar um suspiro frustado. — Vamos, pense em algo decente para nós.

    — Bem, eu apenas deduzi através da minha vasta rede de informações.

    — Em outras palavras, você fez um chute — interrompi a defesa dela, a mão na cabeça.

    — A saída tem que estar lá. Talvez se você não tivesse entrado pelo corredor errado…

    — E você é outra culpada — afirmei, com enfase. — Se sabia que era o corredor errado, por que não me corrigiu?

    Parei na escadaria, exceto pela cor da água, tudo parecia exatamente como antes. Algo ainda me deixava preocupado. Deixei escapar um sorriso baixo, e começei a bajular Lefkó:

    — Você, na sua grandeza e sabedoria, qual é a sua majestosa teoria sobre o verdadeiro teste de Jiahao?

    Lefkó permaneceu em silêncio por alguns segundos. Então, com voz mais séria que o habitual, respondeu:

    — A força espiritual proveniente desse vale é colossal. Talvez Jiahao quisesse que isso despertasse seus meridianos… seja pela meditação, seja pela luta. Em situações extremas, cultivadores absorvem Qi de forma involuntária, quebram limites, ascendem de reino mesmo sem preparo. É o desejo de viver que se sobrepõe ao talento ou ao treino.

    Não pode deixar de ficar surpreso.

    — Você aprendeu tudo isso nos livros que eu comprei?

    — Sim, consegue ver a minha importância do seu lado — disse ela, com uma voz um tanto sedutora.

    Balancei a cabeça, contrariado. Eu detestava quando ela ficava tão cheia de si. Porém, eu mesmo havia incitado aquela reação dela.

    Olhei para cima, os olhos da estátua de dragão pareciam me encarar. Suas órbitas vazias, das quais a água caía, pareciam estar de certa forma vivas.

    Meus pensamentos foram cortados por um tremor.

    Girei a cabeça, eu podia sentir uma figura atrás de mim.

    Um jovem estava ali, de feições delicadas e pele clara, os longos cabelos castanhos lisos desciam até os cotovelos. Usava trajes verdes, finos, de seda bordada, presos por uma faixa roxa na cintura. Em suas mãos havia uma espada cintilante, já desembainhada, embora seus olhos não transmitissem hostilidade.

    Com calma, ele guardou a lâmina na bainha. Então, voltou o olhar para mim e esboçou um leve sorriso, como um gesto de cortesia.

    — Quem é você, júnior? O que faz neste vale abandonado? Está perdido?

    Congelei por um momento.

    Não sabia qual seria a melhor resposta naquele momento. Eu havia acabado de gastar a carta do oito de espadas, lutar sem ter ela de garantia seria muita imprudência da minha parte.

    — E então? Qual é a sua reposta, júnior? — repetiu o jovem novamente.

    — Sabe como é, eu fui investigar uma caverna, e vim parar aqui, agora estou buscando a saída. — Eu não mentia, apenas omitia boa parte das verdadeiras intenções.

    — Qual o seu nome? — Ele sorriu, e cruzou os braços. Ele me olhava com um certo ar de superioridade que me enojava.

    — Thomas, meu nome é Thomas Nyrzyr…

    — Precisa de ajuda? — questionou ele, o dedo no queixo.

    Suspirei, um tanto aliviado.

    — Eu agradeceria imensamente, eu não consigo achar a passagem de volta, se você puder me ajudar…

    — Não vai precisar agradecer. — Ele fez uma suave reverência. — Venha, siga-me.

    Ele avançou pelas ruas silenciosas da vila, os passos leves ecoando entre as casas abandonadas. Permaneci parado por alguns instantes, tentava processar o aparecimento repentino dele. Era suspeito demais para ser uma simples coincidência. Ainda assim, mesmo desconfiado, decidi segui-lo.

    — E então, júnior, viu algo estranho por aqui? — perguntou sem sequer olhar para mim. Seu interesse parecia mais voltado às construções antigas, como se estudasse cada detalhe da arquitetura.

    — Tirando o fato de tudo estar abandonado, acho que nada. Talvez aquela construção com a estátua de dragão seja a coisa mais estranha daqui. — Um arrepio percorreu meu braço quando a lembrança da esfera brilhante e da criatura na lagoa subterrânea me veio à mente.

    — Não se preocupe com o templo. Ele está selado. Ninguém abaixo do sétimo reino seria capaz de romper o selo que guarda a sua entrada. — Parou, coçou o queixo e enfim virou-se em minha direção. O olhar tomado de desconfiança nas minhas palavras. — Diga-me, júnior, como um simples camponês consegue roupas de tamanha nobreza? Perdoe-me a franqueza, mas não seria você um saqueador, um ladrão de tesouros?

    Camponês? Eu quase duvidei do que tinha ouvido. Ele acabara de questionar minha linhagem, insinuando que minhas roupas não condiziam com minhas origens.

    Cruzei os braços e mantive o rosto impassível, controlando a irritação.

    — Já disse que estou apenas explorando. Além disso, que tesouros encontraria aqui? Só vejo ruínas. — Minha voz soou tranquila, embora eu estivesse um tanto nervoso de ser descoberto e ter de lutar no próximo instante.

    Ele esboçou um sorriso leve e ergueu uma das sobrancelhas.

    — Nesse caso, aceito suas palavras e peço desculpas pela ofensa. Não posso deixar de negar a minha curiosidade sobre a sua origem. Se és realmente um nobre, és um nobre sem talento, sem Qi perceptível… talvez os céus realmente não tenham olhado para você.

    Voltou a caminhar como se nada tivesse acontecido. Suspirei, e continuei atrás dele. No momento, ele era minha melhor opção.

    — Não entendi — murmurei, intrigado.

    — É simples. Não sinto nada em você. Nenhum traço de cultivo, nenhum potencial. É como se tivesse sido abandonado pelos céus.

    — Certo… — respondi, sem saber se ria ou me irritava.

    Ele insistia em me chamar de “júnior”, embora aparentasse ser até mais jovem do que eu. Isso me incomodava, todavia depois da minha experiência com Jiahao, eu havia aprendido uma lição: julgar cultivadores pela aparência era imprudência.

    — E que animal interessante que carrega consigo. A serpente tem nome?

    — Lefkó, é o meu companheiro de viagem.

    — Incomum… mas não o julgarei. — Ele sorriu de leve. — O antigo senhor deste vale também possuía um companheiro singular: um tigre lendário. Dizem que a criatura ainda vagueia por estas terras, guardando o vale contra intrusos. Muitos enviavam seus filhos até esta vila, para enfrentarem a fera, despertassem seu instinto de sobrevivência e com isso, ascendessem as camadas superiores.

    Seus olhos se fixaram em mim, em uma avaliação cuidadosa.

    — Quando o vi pela primeira vez, pensei que fosse esse o seu propósito aqui. Mas não sinto nada em você. Nem um traço de Qi.

    — Um tigre? Poderia me contar mais sobre esse animal? — A informação dele me chamou a atenção, talvez respondesse alguma das minhas perguntas.

    — Bem, se você está vivo, quer dizer que ainda não o encontrou. É uma besta mágica, invulnerável as mãos humanas; por isso, é necessário o uso de técnicas especiais, como o Dianmai.

    Mal sabia ele da verdade, que a criatura nada mais era do que um núcleo guardado no bolso interno do meu casaco.

    — É como é esse tal tigre? É possível matá-lo? 

    Ele riu alto, a zombaria evidente.

    — Uma besta mágica imortal! Você pode derrotá-la, mas ela sempre retornará. Fugirá, se recomporá, e esperará pelo próximo desafiador. É o primeiro obstáculo antes de romper o selo do templo.

    Continuamos a caminhar. A estrada da vila foi se estreitando, e as fileiras de casas desmoronadas desapareceram pouco a pouco. Por trás de uma árvore retorcida, encoberta por folhagem densa, surgiu a entrada de uma caverna.

    — Siga por aqui. — Ele apontou para a escuridão. — Esse túnel o levará de volta à floresta.

    Hesitei, mas antes de avançar, decidi perguntar:

    — Posso ao menos saber o seu nome?

    Ele sorriu com a mesma cortesia calculada de antes.

    — Mas é claro, júnior. Sou Zhan Yun.

    — Então, eu agradeço a sua ajuda. — Fiz uma reverência respeitosa, e me preparei para sair do vale.

    Antes que eu pudesse dar o primeiro passo, ele se aproximou da árvore retorcida. Com um movimento simples, arrancou um de seus galhos. Em seguida, pousou a palma sobre a madeira seca, e uma chama se acendeu, viva e intensa, sem precisar de óleo ou faísca.

    — Fique com isso — disse, ao estender o galho em chamas na minha direção. — Não é sensato andar sem luz por aqui.

    Aceitei o presente, hesitante.

    — Agradeço novamente. — Minha voz oscilou entre gratidão e cautela. Eu não sabia se deveria sentir surpresa, medo ou respeito.

    Segui pelo túnel, a tocha improvisada iluminava o caminho irregular. E o calafrio na minha espinha, demorava para passar. Fiquei em silêncio, até me certificar de que ele não me seguia, e não havia mais perigo. Então, indaguei para Lefkó:

    — O que acha de tudo isso?

    A serpente se remexeu lentamente sobre meu ombro, como se tivesse observado cada detalhe com mais atenção do que eu.

    — Muito prestativo, ele. — Sua voz carregava ironia.

    — Falo sério. — Segurei o galho com mais força, ao observar as sombras que a chama projetava nas paredes úmidas.

     — Deve ser um cultivador. — murmurou ela, pensativa. — Um ancião, talvez. Se estava aqui, é por sentir a instabilidade espiritual do vale.

    — Isso nos põe em perigo? — questionei, o comportamento dele era um tanto suspeito para mim.

    Ela negou com cabeça.

    — Espero que você esteja certa — falei com um último suspiro. — Vamos sair daqui, esse lugar já deu para mim!

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