Capítulo XVIII (18) - Voltar
Do lado de fora, encontrei Jiahao. Ele estava sentado de pernas cruzadas no meio da paisagem, olhos fechados, mergulhado em um transe profundo. Aproximei-me com cautela, e só então ele abriu um dos olhos, esboçando um sorriso tranquilo.
— Demorou mais do que eu esperava… — disse, sem se mover.
— Mas cheguei inteiro. — respondi, aliviado. — E agora?
— Agora, voltamos.
— Para onde?
— Tianhang, claro. Iremos precisar de novas pílulas para ajudar no seu refino de Qi. — Ele se ergueu devagar, com um brilho curioso no olhar. — Diga-me, o que você encontrou lá dentro?
— Um tigre? Era isso que você esperava?
— Se você está inteiro, quer dizer que o derrotou.
— Pode-se dizer que sim. — Tirei do bolso a pérola esbranquiçada, que cintilava sob a luz do sol.
Jiahao ficou imóvel, o semblante descrente. Sua boca entreaberta denunciava o choque.
— Como…? — murmurou, e aproximou-se em um salto rápido, a mão estendida para o objeto.
Instintivamente, recuei um passo, desconfiado de sua intenção.
— O que é isso, afinal? — questionei.
Os olhos dele se estreitaram, perplexos.
— Seus meridianos ainda estão fechados… Isso é… impossível! Como? Como você derrotou a besta espiritual e adquiriu o núcleo dela?
Fiquei em silêncio por um instante. Não podia revelar o segredo das cartas. Foi muita imprudência da minha parte mostrar a pérola para ele. Agora eu tinha que inventar uma resposta plausível.
— Nada que a violência não resolva. — Firmei um sorriso confiante,a mascarava minha resposta dúbia.
— Veremos… — Jiahao assumiu uma postura séria. Abriu os braços, e se colocou em posição de luta.
O cenário foi tomado por uma forte brisa, que levantou folhas e balançou as árvores. O encarei imóvel, pronto para revidar se necessário.
— Não sente medo? — Ele ficou confuso com minha reação fria.
Eu não sentia medo, não havia motivo para sentir. Porém, eu conseguia enxergar a dúvida no olhar dele, e isso era perigoso. A qualquer momento, tudo poderia sair de controle, e eu seria culpado pela morte de um nobre.
— Por que eu sentiria? — Coloquei a mão no cabelo, e o arrumei novamente devido ao vento. — Você não me parece uma ameaça maior que o tigre…
— Minha “intenção de matar” deveria esmagar você, fazê-lo se ajoelhar neste instante. — Jiahao estreitou os olhos, intrigado. — Um mortal comum já teria perdido a razão, já você, usa somente sua força de vontade para resistir. — Ele suspirou, frustrado. — Não faz sentido. Sem talento, é impossível desafiar os céus. E ainda assim, você o fez. Qual é a sua verdadeira fonte de poder?
Fiquei em silêncio. Confiar nele seria estupidez. Eu tinha meus segredos, meus objetivos e um caminho que não admitia tais falhas graves. Custasse o que custasse, eu seguiria meu plano, não importavam os métodos.
— Não posso revelar.
— Já esperava essa resposta. — Ele uniu as palmas das mãos e começou a recitar cânticos antigos, sua voz reverberando com uma energia que fazia o ar ao redor tremer.
Eu não queria, mas parecia que o inevitável havia chegado. Só restava uma escolha.
Eu teria que lutar.
A forma de uma mão etérea flutuante se materializou atrás de mim. Girei o meu corpo, e ergui o braço para aparar o golpe, sem maiores dificuldades. Parecia que Jiahao ainda testava os meus limites.
— Bem rápido para um mortal. — Ele sorriu, não era um sorriso de alegria, era de surpresa. — Muito rápido, na verdade, me diga Thomas, o que você esconde?
— Segredos que nem mesmo os céus podem descobrir. E eu gostaria que continuasse assim, caso contrário, eu teria de matá-lo.
Jiahao soltou uma gargalhada alta, porém o tom de sua voz tremia. Talvez, ele houvesse compreendido o meu verdadeiro perigo, sentido o peso da minha ameaça.
O vento cessou. O silêncio se espalhou pela clareira, tão pesado que até as árvores pareceram se inclinar diante da tensão.
— Thomas… — Jiahao ergueu a mão lentamente, e o vento voltou a fluir, agora mais forte. — Se não me disser a verdade, terei que arrancá-la de você.
Pelo visto eu estava errado. Jiahao era mais tolo do que pensei, e ele condenar a si próprio a morte.
— Não posso responder suas perguntas.
— És um espião do Xogunato? — Ele colocou a mão sobre o peito, como se tentasse arrancar o próprio coração.
— Não tenho a mínima ideia do que você está falando.
— A que nação você serve garoto?
— Não posso responder. — Pelos movimentos dele, conseguia perceber que ele se preparava para o próximo movimento de combate.
— Não precisa esconder, você é um viajante de uma terra distante com muitas perguntas. É evidente que é um espião servindo a algum propósito. Nossa cidade, Tianhang, é muito cobiçada pelas forças estrangeiras.
— Não é esse o meu propósito aqui.
— O que você quer? — Seu olhar se tornou mais desconfiado. Ele mantinha a mão na mesma posição sobre o peito.
— Não menti quando disse que quero aprender mais sobre este mundo.
— Este… mundo? — repetiu ele, ao arquear as sobrancelhas.
Na mesma hora, percebi o deslize. Uma palavra em falso, mas suficiente para me trair.
O sorriso de Jiahao retornou, mas dessa vez havia fome em seus olhos.
— Então é isso… — murmurou, quase em êxtase. — Você carrega algo que não pertence a este mundo.
Deixei escapar um suspiro amargo. Aquele homem havia sido gentil comigo até agora, e eu não estava muito disposto a matá-lo a sangue-frio. Entretanto, eu não hesitaria se fosse necessário.
— Gostaria que isso continuasse entre nós. Não quero causar um alarde. Quero continuar sem chamar muito a atenção, e poder continuar minha expedição em paz.
— Vejo ser um homem de bom coração pelo que fez pelo meu afilhado Lingxin. Então, considere isso uma retribuição de honra. — Apesar das palavras dele, manteve a postura hostil.
— Agradeço pela gentileza. Não tenho intenções hostis contra você, ou contra o seu povo.
— Entretanto, eu não posso deixá-lo ir embora. Ainda não… — Jiahao colocou a mão sobre o próprio peito, e fez um movimento como se retirasse o próprio coração. Em vez disso, uma gosma cinza saiu de seu peito, e grudou ao redor de sua mão, e começou a tomar forma.
Era uma ‘Dao’, uma espada chinesa de um único gume, com uma lâmina ligeiramente curva, quase um sabre.
— Ainda não… — repeti suas palavras. — Então, o que você quer?
— Você desafiou o herdeiro dos Hua Yuling para um duelo. Tenho que garantir a sua presença, e que é capaz de vencê-lo.
— Pode ter certeza de que sou. — Passei a mão no meu cabelo, ao manter uma pose confiante.
— Você reduziu uma besta mágica lendária a nada além de escória derretida. Não duvido da sua força. — Ele ergueu o queixo. — Mas me pergunto… se conseguirá usá-la sem atrair atenção demais.
— O que você está propondo?
— Lutemos. Aqui e agora. — Jiahao ergueu a espada, e assumiu uma posição de combate. — Segundo as regras de um duelo por pontuação. Assim, eu mesmo o avaliarei.
— E por que isso lhe interessa tanto? — perguntei. O comportamento dele cheirava a segundas intenções.
— Porque sou seu patrono. — Sua voz soou seca, quase ríspida. — A honra da minha família também está em jogo. Se você falhar, não será apenas seu nome que será arrastado pela lama… será o meu também.
— Então era só ter me mandado embora — rebati com frieza.
— “A ganância entra no coração para roubar a paz de espírito” — murmurou, como se fosse um provérbio.
— Tudo bem. — Respirei fundo, e coloquei a mão no baralho. — Eu aceito. Vamos lutar.
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