Capítulo XX - A Ilha dos Hua Yuling
Após a experiência na floresta, permaneci hospedado na residência dos Wen Qishu. Aproveitei esse tempo na cidade para reunir o máximo de informações possível, sobretudo sobre qual seria meu próximo destino depois de Tianhang.
Para a minha paz de espírito, ninguém voltou a questionar minha origem, nem Jiahao, nem os outros membros da sua família. Todos permaneciam em silêncio, até mesmo nas refeições conjuntas, como se me evitassem ao me ver.
Aos poucos, fui me acostumando com aquele silêncio incômodo. Mesmo assim, sentia os olhares, como se cada passo meu fosse medido e pesado. Talvez não me julgassem um inimigo, mas tampouco era considerado um aliado.
Até que o dia do duelo chegou, uma bonita manhã ensolarada.
Acordei cedo, e acompanhei a família Wen Qishu até o porto. De lá, tomaríamos uma balsa que nos levaria ao local preparado para o duelo.
Os Hua Yuling não eram apenas uma família influente na cidade, eles eram os soberanos de Tianhang. O palácio deles erguia-se em uma ilha próxima, tão imponente que dominava todo o horizonte. Diziam que fora construído sobre uma caverna submersa, cujas propriedades espirituais eram tão intensas que haviam transformado a ilha em um dos mais poderosos pontos de cultivo da região.
Todos estavam vestidos com suas melhores roupas, roupas tradicionais locais que representavam poder e reputação. Lingxin e eu éramos os únicos um tanto fora do padrão, Lingxin por vestir uma armadura leve de duelo, e eu com o meu casaco negro.
Jiahao e seus dois filhos, Song e Lu, usavam túnicas cerimoniais de tecido fino, bordadas com uma tartaruga adornada por uma flor de lótus, o símbolo da família. Mei, por sua vez, usava um vestido tradicional de vermelho intenso, bordado com padrões dourados que refletiam o sol da manhã. Nas mãos, segurava um delicado guarda-chuva enfeitado com flores de papel. O rosto, coberto de maquiagem pesada, realçava os olhos e lábios, mas apagava sua natural vivacidade. Quando nossos olhares se cruzaram, percebi sua irritação silenciosa: ela parecia sentir-se como uma boneca em exposição.
O porto estava lotado de transeuntes, todos se espremendo nas balsas que seguiam para a ilha. Afinal, não era todo dia que um duelo acontecia, e muito menos dois. Para minha surpresa, porém, o duelo mais aguardado não era o de Lingxin contra Renyan, mas sim o meu.
A verdade é que ninguém esperava muito do combate entre eles. De um lado, Lingxin, um órfão de rua, talentoso, sem dúvida, patrocinado pela importante família Wen Qishu, entretanto, ele ainda permanecia como um desconhecido sem título ou renome. Do outro, o herdeiro direto de uma das famílias mais poderosas da região, sustentado por gerações de prestígio e cultivo. O resultado parecia previsível.
Meu duelo, por outro lado, carregava um peso diferente.
As notícias sobre minha luta no beco haviam se espalhado pela cidade como fogo em palha seca, crescendo em cada boca que as repetia. Diziam que eu havia massacrado vinte inimigos com um único golpe, tão veloz que nem mesmo Hua Yuling Kai, o próprio governador de Tianhang, seria capaz de reagir. Outros juravam que eu era um imortal disfarçado, vindo do mítico Reino Celestial, com a intenção de usurpar o maior tesouro dos Hua Yuling, a própria ilha sobre a qual governavam.
As histórias eram absurdas, mas ninguém parecia duvidar.
E eu? Eu não tive o menor interesse em desmenti-las.
Todos os olhos estavam voltados para mim. Queriam saber quem era o tão poderoso forasteiro, de uma terra distante, com suas roupas estranhas e riqueza sem fim.
Não esperamos muito tempo. Havia uma balsa reservada para nós, maior e mais ornamentada do que as demais, com laterais pintadas em verde-escuro. O brasão dos Hua Yuling estava gravado na proa, um gato-leopardo seguido pelo botão de uma flor de peônia.
Logo após embarcamos, aproximei-me de Jiahao, apoiado contra a balaustrada da embarcação, o olhar fixo no horizonte.
— Amanhã, partirei… — murmurei.
Ele soltou um suspiro discreto, carregado de pesar, mas não voltou o rosto para mim.
— Para onde? — perguntou, sem desviar os olhos da ilha que se desenhava ao longe, cada vez mais imponente.
— Para o Mar do Dragão. Consegui uma passagem por intermédio de um conhecido de Song. Foi ele quem me indicou.
— E pediu que mantivesse segredo?
— Sim. Além de você, não falei a ninguém. Não quero criar alarde.
— Fez bem… — Jiahao fechou as mãos, e abaixou a cabeça.
— Está muito apreensivo?
— É tudo ou nada. Se Lingxin não vencer… —- Ele soltou um novo suspiro, maior que o primeiro.
— O que aconteceria de tão ruim? — indaguei, um tanto sarcástico.
Ele virou-se para mim, o rosto sério, e permaneceu em silêncio por um tempo.
— A vida de Mei seria uma desgraça… — continuou Jiahao, a voz baixa, carregada de pesar. — Ela não está preparada para se casar com Renyan. Ela tem o espírito livre, e não suportaria ser aprisionada por algo que não escolheu…
Decidi não falar nada, afinal, eu não sabia quais eram as melhores palavras naquele momento.
Gradualmente, a ilha começou a tomar forma no horizonte.
Não era uma simples ilha nem apenas um palácio, era uma fortaleza colossal, erguida para desafiar a natureza. Ao redor de toda a costa, suas muralhas de pedra estendiam-se, altas e sólidas, e impossibilitavam o desembarque de qualquer inimigo ao redor da ilha.
No centro da ilha, erguia-se um morro proeminente, no qual erguia-se uma estrutura monumental. Uma torre em forma de pagode, tão alta que parecia tocar o céu, dominava toda a paisagem. Seus telhados curvados, cobertos por telhas vermelhas e douradas, refletiam a luz do sol a distância.
Uma pequena enseada servia de ponto de desembarque para balsas e navios. Guarnecida por torres laterais e um portão de madeira gigantesco, a entrada principal era impressionante. O portão estava aberto para nossa passagem, e não pude deixar de notar as engrenagens, cordas e contrapesos que o levantavam.
Desembarcamos da balsa, enquanto a família dos Hua Yuling nos esperava. Na frente, o patriarca Hua Yuling Kai, com um rosto severo, e vestido com toda elegância. Ao lado dele, um homem que demonstrava ser um pouco mais velho, com alguns frios grisalhos no meio do cabelo, e uma barba acinzentada de tamanho médio.
Logo atrás, os herdeiros do clã, três garotos e uma garota um pouco mais velha. O primeiro, de nariz empinado, e vestido em trajes de batalha, era Renyan. O segundo, também com uma armadura, era Hua Yuling Jin, meu adversário naquele dia. Parecia bastante confiante, e sorriu zombeteiro ao me ver com o casaco negro.
Já quanto aos outros dois, nunca tinha visto antes. O terceiro jovem era o mais franzino dos demais, e estava com o rosto meio apático e cabisbaixo. Vestia trajes cerimoniais verdes, com o emblema da família.
A garota se destacava bastante dos demais, era um pouco mais alta que os garotos, com olhos verdes poderosos, e um cabelo negro que descia até a sua cintura. Vestia um delicado vestido azul, com um decote modesto, todavia, que ainda exibia seus atributos femininos.
Jiahao, como patriarca da família Wen Qishu, desceu primeiro, com seus filhos logo atrás, só então Mei desceu do barco, enquanto Song segurava sua mão. Lingxin soltou um longo suspiro antes de tomar a coragem de desembarcar.
Hesitei por um instante, assim como ele, a atmosfera daquele local era um tanto desagradável. Acariciei a cabeça de Lefkó, sempre enrolada no meu pescoço, e fui o último a descer.
— É um prazer recebê-los… — Hua Yuling Kai proferiu, no instante que eu desci do barco.
— É uma grande honra para a família Wen Qishu ter o privilégio de servir os estimados Hua Yuling. — Jiahao fez uma reverência formal, seguido pelo restante da família.
Enquanto ambos faziam suas longas cerimônias, eu bocejava, um tanto entediado por tudo aquilo. Até que o meu olhar então se prendeu na garota ao lado de Renyan, e eu perdi a noção do que acontecia ao meu redor. Ela colocou a mão na frente da boca, e deu uma pequena risada do meu comportamento nada respeitoso para a ocasião.
— O duelo será feito logo após o banquete, é claro! — falou Hua Yuling Kai, e eu voltei para o mundo real.
— Como? — interrompi a conversa dos dois.
A minha interrupção surpreendeu a todos. Para eles, era uma imensa falta de educação falar em uma conversa entre dois nobres.
— Perdoe os modos do meu convidado, parece que de onde ele vem, eles não conhecem boas maneiras. — Jiahao antecipou-se, e começou a se desculpar.
Soltei um suspiro irritado, e não falei mais nada.
Enquanto a população local se reunia na arena principal da ilha, em busca dos melhores lugares para assistir aos duelos. Nós seguimos em direção ao vasto pátio interno da seita Hua Yuling, onde um banquete esplêndido nos aguardava.
Ainda era muito cedo para eu poder prever tudo o que ainda ia acontecer naquele dia, e suas consequências nefastas.
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