O projétil atravessou o crânio do inimigo. O sangue espirrou pelas paredes, e ele tombou morto no chão.

    Mal tive tempo de preparar meu ataque contra os outros guardas do lado de fora do quarto. Uma palma espectral meio amarelada, do tamanho de um homem adulto, quebrou a parede com força e imensa velocidade, passou por mim e deixou um grande buraco no lugar onde antes ficava a janela.

    Olhei para trás, e observei o estrago que o golpe havia causado na estrutura do edifício. Depois, olhei para as minhas roupas, eu não havia sofrido um único aranhão. E por fim, encarei os olhares surpresos dos guardas do outro lado da parede, agora destroçada.

    Um senhor de idade, cuja fina barba branca se estendia até o peito, vestia trajes amarelos, com uma faixa púrpura na cintura. Ele me encarou de baixo pra cima, e com os olhos arregalados, me questionou:

    — Como você fez isso? Você é…

    O senhor ficou mudo em silêncio, e então começou a gritar, estridente:

    — Um demônio! Um cultivador demoníaco! Quais artes das trevas você domina?

    Apontei minha arma para ele, o dedo um tanto nervoso.

    — Não faço a mínima ideia…

    Ele levantou os braços, e os esticou em uma demonstração performática e habilidosa. Instantaneamente, uma palma dourada foi conjurada, semelhante à primeira. Senti a brisa do vento quando ela atravessou o meu corpo, e se dissipou após ampliar ainda mais o buraco na parede.

    Eu olhei para ele e balancei a cabeça.

    — Não funcionou na primeira, por que funcionaria na segunda vez?

    O velho abriu a boca para me xingar:

    — Seu… 

    Meu dedo foi mais veloz que as palavras dele. Ele caiu para trás, o disparo fatal atravessou o maxilar e saiu pela nuca.

    Os dois guardas restantes nem hesitaram, imediatamente tentaram correr pelo corredor e fugir.

    Passei pelo rasgo que o ancião deixara na parede e acompanhei os movimentos deles com o olhar. Estavam quase no fim do corredor, perto da escadaria que levava ao andar inferior. Prendi a respiração, fechei o olho esquerdo e disparei três vezes.

    O primeiro mal conseguiu dar dois passos, levou duas balas e tombou sem vida. O segundo recebeu um tiro no ombro, perdeu o equilíbrio e começou a rastejar, com gemidos de dor.

    Estralei o pescoço ao girar minha cabeça, e caminhei devagar até ele.

    O guarda lutava para fugir. Por algum motivo, o barulho ainda não atraíra ninguém debaixo. Para mim, assim era melhor; dez inimigos seriam pior do que três ou quatro.

    Agarrei-o pela gola, e o forcei a olhar para mim.

    — Muito bem, quem enviou vocês? — questionei, ao puxá-lo para frente, e encará-lo frente a frente.

    Ele se encolheu, em silêncio absoluto, uma fraca lágrima escorreu pelo rosto dele.

    — Jiahao mandou vocês? — indaguei uma segunda vez, mais incisivo.

    Ele se encolheu ainda mais, com um gemido abafado.

    — Está tudo bem aí em cima? — questionou uma voz do andar de baixo.

    Olhei para diretamente para ele, o guarda tinha uma atitude medrosa, porém seus olhos transmitiam outra sensação.

    — Ele está aqui! — gritou ele, a voz firme.

    A expressão de coragem durou por um único instante, ele engoliu em seco e me encarou.

    Aquele único ato de coragem me fez sentir uma ligeira compaixão por ele, talvez eu devesse o deixar vivo, e esperar que a natureza escolhesse a sina dele. 

    — Você merece viver… — murmurei, ao soltá-lo no chão.

    Seu medo foi substituído por uma curta esperança.

    — Sério? — gaguejou.

    Os passos dos outros guardas subindo pelas escadas começaram a ficar mais altos. Infelizmente para ele, seu ato foi um tanto estúpido, e havia estragado um pouco os meus planos.

    — Quer saber… — Apertei o gatilho, agora sem remorso. — Mudei de ideia.

    Os reforços chegaram no instante em que o colega deles teve os miolos estilhaçados no assoalho. Fecharam o corredor com as lanças apontadas e bloquearam a escadaria; eu só podia recuar.

    — Você está cercado. Renda-se agora! — proclamou um, o mais distinto, com a melhor armadura.

    — Pra que tentar? Você sabe que eu não vou — respondi, ao girar o revólver na mão enquanto ele começava a se transformar.

    — O que vai fazer? — A voz dele tremia.

    Sorri, debochado. Uma espingarda automática de cano duplo materializou-se na minha mão direita no lugar da antiga arma. Ela era longa e compacta, acabamento preto, cano largo e circular com duas nervuras paralelas. A coronha era curta, e o que eu mais gostava era o punho ergonômico ranhurado, que me ajudava a controlá-la no recuo.

    — Eu? — gargalhei, ao soltar a trava de segurança. — Eu vou matar e rasgar!

    Um único disparo teve o poder de arremessar um deles de volta para o andar de baixo. 

    A força do recuo quase deslocou meu punho. Segurar aquela arma com uma única mão era uma má ideia, mas lutar contra eles sem uma mão livre seria ainda pior.

    Eles avançaram em sincronia para me espetar com suas lanças. Com a minha mão esquerda livre, segurei a que se aproximava do meu rosto, quanto as outras, me atingiram com força na região do abdômen, todavia, foram insuficientes para penetrar meu casaco e me ferir gravemente.

    — Colegas… — Sorri ao observar seus rostos surpresos pela minha resistência. — Não veem o quanto isso é inútil?

    Com a mão esquerda, segurei firmemente a haste da lança e a puxei num movimento rápido. O guarda perdeu o equilíbrio. Usei a própria arma dele como alavanca, o puxei para perto, e o acertei com a coronha da espingarda. O impacto esmagou o fino capacete de bronze, que se dobrou como papel sobre o crânio dele.

    Outro guarda tentou reagir. Girou a lança e avançou com uma estocada, mirando o que ele acreditava ser meu ponto fraco, a cabeça. E ele não estava errado. O espaço estreito, no entanto, era uma desvantagem para o uso de uma arma longa como aquela.

    Descarreguei um único disparo em seu abdômen. O tiro à queima-roupa foi devastador, destruiu a armadura e partiu o homem ao meio. Alguns projéteis atravessaram o corpo dele e atingiram outros guardas atrás, e os derrubaram no mesmo instante.

    Um deles, muito corajoso ou um sem juízo, tentou me atacar por trás. Percebi o movimento com o canto do olho. Dei um passo rápido para a direita, desviei da estocada, e girei o cano da espingarda contra ele.

    Mais um corpo para as estatísticas, dessa vez sem a cabeça.

    Headshot… — murmurei com um sorriso perverso.

    — Demônio! — gritaram os sobreviventes, ao largarem suas armas e tentarem correr pelas suas vidas.

    Cocei a orelha com uma mão, enquanto usava o cano da espingarda para limpar o sangue e os pedaços de carne do casaco.

    — Eu disse que ia matar e rasgar… — sussurrei.

    Flexionei os joelhos, e fiz um avanço rápido, quase um teletransporte. Eu surgi para o andar de baixo, bem na frente dos fugitivos.

    — Digam adeus… — murmurei, antes de apertar o gatilho três vezes.

    Foi o bastante para acabar com todos eles.

    O cenário que restou era grotesco. As paredes de madeira da casa dos Wen Qishu pareciam queijos suíços, cravejadas de buracos. Sangue, vísceras e fragmentos de ossos cobriam o assoalho e até o teto.

    — Não está achando muito fácil? — disse Lefkó, agarrada ao meu pescoço.

    — E daí? — Estalei os dedos, e ativei uma das habilidades da carta do “Louco”.

    Esse é o momento ideal para explicar uma das mecânicas mais importantes do meu baralho.

    O Baralho Imperial segue a mesma estrutura de um tarô tradicional: quatro naipes de quatorze cartas, os arcanos menores, e vinte e duas cartas de arcanos maiores, setenta e oito cartas no total. Cada uma possui um poder único e distinto.

    Há, contudo, limitações. Só posso manter até duas cartas diferentes ativas ao mesmo tempo. Normalmente deixo a carta do Louco sempre ativada, já que ela é a mais versátil, útil em quase qualquer situação, e ainda me protege durante o sono ou em momentos de vulnerabilidade.

    Isso significa que, na maioria dos casos, só me resta um espaço livre para escolher outra carta, a que julgar mais conveniente para o que está por vir.

    Além disso, cada carta possui suas próprias restrições. Por exemplo: a carta “Dez de Espadas” pode ser usada livremente para desintegrar objetos inanimados. Todavia, se for utilizada contra um ser vivo, preciso esperar um dia inteiro antes de poder usá-la novamente. Se não fosse por essa limitação, ela seria simplesmente uma das melhores cartas para combate.

    A carta do Louco, por sua vez, guarda uma habilidade conhecida como “Senhor da Névoa”, um poder versátil que abriga dezenas de sub-habilidades e técnicas secundárias. Uma delas é chamada de “Mestre das Marionetes”, e era exatamente essa que eu pretendia usar.

    Quando estalei os dedos, os cadáveres foram tomados por uma névoa negra, junto com o sangue espalhado pelo chão. Em poucos segundos, tudo desapareceu.

    Exceto pelos buracos nas paredes e pela destruição causada pela força da espingarda, não havia mais nenhum traço da chacina.

    — Não está achando muito fácil? — repetiu Lefkó uma segunda vez.

    Suspirei, não gostava de responder a mesma pergunta duas vezes.

    Girei as minhas mãos, dissolvi a invocação da espingarda automática, e finalizei o uso da habilidade da carta da “Carruagem”.

    — Qual o problema? — Retirei uma nova carta do baralho.

    A borda dourada brilhou suavemente sob a luz que atravessava os buracos da parede. No centro, o desenho mostrava um oficial militar imponente, ereto, com o semblante firme. Atrás dele, dois caças a jato cruzavam o céu, e deixavam rastros que se curvavam como asas mitológicas. O oficial segurava duas taças cheias de um líquido negro e borbulhante, e ao fundo, o sol se punha atrás de uma montanha, seus raios se espalhavam em forma de coroa dourada.

    — Tem algo errado, Thomas. Pelos meus estudos sobre este mundo, nossos inimigos deveriam ser muito mais fortes — disse ela, cética.

    — Armas de fogo são eficientes… — respondi, ao erguer a carta, cujo número romano XIV no topo brilhou com a luz. — Temperança!

    — Não deveriam ser… Não contra os habitantes desse mundo… — Ela falou, e ao perceber o meu uso da carta, se escondeu rapidamente para dentro do meu casaco.

    — Aproveite o momento — falei, enquanto sentia meu corpo começar a se dissolver.

    Temperança era a carta que eu mais tinha carinho e afinidade.

    O poder contido nela era, na verdade, o meu poder original: “Alexandria”. 

    “Alexandria” era o nome do meu artefato de nascença, um livro de couro gasto e carcomido que me concedera habilidades quase divinas. Agora, essas capacidades estavam seladas naquela pequena carta.

    Meu corpo se desfez em uma centena de folhas brancas que o vento levou. Em questão de segundos, eu desapareci da casa dos Wen Qishu.

    Restava-me somente esperar o anoitecer para iniciar a primeira etapa do meu plano de retribuição contra Jiahao e os Hua Yuling.

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