Capítulo 32 - Depois da tempestade, vem remediações e preparos - parte 2
Como eu havia previsto, ouço leves toques na porta de madeira do escritório. Deve ser a Quinta.
— Entra. A porta está destrancada — ordeno em resposta aos toques.
Após a minha fala, a grandiosa porta de madeira nobre se abre lentamente e me revela o visitante: é a Quinta, mas a Cecilia, por algum motivo, também está adjunto a ela.
Quinta tem em suas mãos uma caixa com um tabuleiro e peças de jogar latrúnculo em suas mãos. Eu previ o futuro perfeitamente, huh.
Ela coloca a caixa com o tabuleiro numa mesa que está por perto e se senta ao canapé ao lado. Cecilia também repete a mesma ação e se aloca no lugar.
— Aurelius… vamos jogar? — com uma expressão permutada de tristeza e tédio, Quinta me pergunta.
Eu a escuto e olho para ela, contudo nada digo.
Após alguns segundos, ela novamente chama pelo o meu nome:
— Aurelius? — com uma cara confusa ela diz, Cecilia, atrás dela, também possui a mesma feição.
E eu novamente nada digo…
— Ah… Senhor, quer jogar uma partida de latrúnculo comigo? — Quinta muda o jeito de referir-me a mim, mas ainda não é isso o que eu quero.
— … — novamente, só há silêncio na sala.
— Eu não vou dizer isso… — com uma leve cor avermelhada em sua cara, Quinta diz baixinho.
Eu miro ela e levanto a minha sobrancelha direita como se eu dissesse «Dizer o quê? Quinta», ela desvia o olhar, agarra vigorosamente sua saia de cor turquesa pastel e finalmente começa a falar:
— P-Patriarca dos Conflagratus, tu me darias a honra de j-jogar uma partida de-
— Por que tamanha formalidade? Quinta, minha querida irmã. Ainda mais com o teu irmão mais novo! — eu a interrompo no caminho, dotado dum grande sorriso em minha cara.
Com a cara mais vermelha que um morango silvestre e seus lábios a tartamudear sem voz audível, ela cerra os punhos e me observa de forma penetrante.
— Eu devo dizer… Mesmo que a diferença seja só de 2 anos, tu és o irmão mais novo mais atrevido da face da Terra… — a falar baixinho, Quinta reclama.
— Bom… — Cecilia junta as palmas de suas finas mãos e deixa de ser uma observadora ao colocar-se na prosa.
— Aurelius! Bom dia! — com uma vibração felícia que só ela tem, Cecilia me cumprimenta.
— Bom dia, Cecilia.
— HÃ?! — Quinta imediatamente retorna na conversa com uma expressão de revolta.
— O que foi? Quinta.
— TU! ELA! SÓ! TIPO? SÓ «AURELIUS» E… POR QUE EU. «PATRIARCA». AHHHHHHHH! Deixa quieto isso. Não é nada…
Bem, se ela diz que é nada quem sou eu para dizer o contrário?
Eu me levanto da minha mesa e puxo três cadeiras para nos sentarmos na mesa em que se encontra a caixa com o tabuleiro. Ofereço os assentos para elas primeiro, por cordialidade, e depois me aloco em suas frentes.
Isso me chamou a atenção desde o primeiro momento, então resolvo sanar essa pequena curiosidade agora mesmo:
— Cecilia, por que estás a cá?
— Uai, eu não posso estar? Que malvado! Aurelius malvado! — Cecilia coloca as mãos em seu rosto e emula sons de choramingo.
— Brincadeirinha! É só que eu gostaria de ficar convosco um pouquinho e também… — ela desvia o olhar do meu e enrola a ponta do seu cabelo ao dedo.
— Também?
— Eu gostaria de aprender a jogar latrúnculo! Por favor, ensina-me! — Cecilia exclama com ambas as mãos entrelaçadas, a fazer um pedido.
— Ora? Pensei que tu sabias jogar um jogo tão simples como esse — surpreso com a informação, eu respondo.
— Só eu, tu e… o Lucius sabemos jogar esse jogo, Aurelius — com um decréscimo na voz ao citar um certo nome, Quinta explica.
— Sim! Sim! E eu queria jogar convosco também, posso? Seria muito legal!
— Bom, sobre ensiná-la: eu posso, mas jogar conosco é uma tarefa o tanto quanto complicada. Afinal, esse é um jogo apenas para duas pessoas — ao ouvir o que eu digo, Cecilia dá um sorriso envergonhado e mostra a língua jocosamente para mim.
— Não irei fazer uma explicação muito longa, acho mais coerente tu aprenderes ao jogar e ao assistir-nos jogar, mas vamos lá — eu pego uma peça circular na cor negra e mostro para a Cecilia ao colocá-la no tabuleiro.
— O tabuleiro possui 8 colunas, ou verticais, e 12 fileiras, ou horizontais, a totalizar 96 casas. Cada jogador tem 12 peças chamadas comumente de soldados ou soldadinhos mais uma peça especial: o Dux.
— Dá para chamar as peças de ladrões ou ladrõezinhos também — Quinta me complementa — «Latrúnculo» vem da língua anciã «Latrunculorum» que vem de «Latrunculus» e que significa «ladrão» — com a mão estendida sobre o peito, Quinta afirma orgulhosamente.
Aparentemente a Quinta tem um bom conhecimento sobre a língua antiga. Claro, eu sei que ela como toda boa nobre estuda a língua em seu currículo de artes. Só que estudar e saber são cousas bem diferentes.
Com a demonstração de perspicácia da sua irmã mais nova, Cecilia bate palmas. «Que inteligente! Essa é a minha irmã!», ela diz.
— Para ganhar no jogo tu tens que capturar as peças adversárias ao prensá-las de maneira ortogonal.
— «Ortogonal»? — com o indicador esquerdo em seu queixo, Cecilia pergunta.
— «Ortogonal» quer dizer que tem 2 peças a prender a peça adversária seja na horizontal ou na vertical. O Aurelius que gosta de usar essas palavras complicadas… — Quinta explana mais suavemente para a nossa irmã desprovida de inteligência.
— Entendi! Eu não sou muito boa em aritmética ou álgebra na verdade…
Eu poderia falar que isso na verdade não é aritmética ou álgebra, mas é melhor esquecer isso…
— E aquela especial, o Dux, Aurelius. O que ela faz?
— Ela é uma peça especial que não pode ser capturada, apenas imobilizada. Para imobilizar tu precisas prendê-lo no canto ou nos 4 pontos cardeais. Isso é o básico, entendeste?
— Sim, senhor! — Cecilia responde ao fazer uma saudação cavalheiresca.
— Bem, então vamos jogar.
Depois dessa extensa explicação dum simples e bobo jogo, eu finalmente começo a jogar com a Quinta. Cecilia nos observa fielmente, ocasionalmente a realizar algumas perguntas para mais compreender o jogo.
O meu estilo de jogo se baseia em cercar o Dux e imobilizá-lo, ao invés de simplesmente focar em capturar os soldados inimigos, pois sinto mais gratificação em jogar assim.
No início esse meu estilo de jogo era efetivo. Entretanto, após jogarmos juntos algumas vezes, a Quinta já compreendeu como neutralizá-lo em sua maior parte.
Após 3 partidas, Quinta me vence por 2 a 1 e a sentir-se satisfeita com o resultado, ela sai da sala. Eu até gostaria de estender a disputa para uma melhor de 5, todavia não tenho atualmente tanto tempo livre assim.
Já a Cecilia ainda assim continua na sala…
— Aurelius — antes que eu pensasse em interrogá-la, Cecilia inicia a conversa.
Ela se levanta da cadeira, puxa-a e a traz para o meu lado, sua feição é estreitamente séria. Algo que não é comum para uma cabeça de vento igual ela.
Isso me incomoda um pouco, melhor: incomoda-me muito. Não acho que seja possível, mas será que ela… ?
— Obrigada! — Cecilia diz e sorri abertamente para mim, a contrariar as minhas teorias.
— «Obrigada» por… ? Ensiná-la a jogar?
— Não, não é isso. É por mim e pela Quinta.
— Quinta? — meio confuso com a situação, eu questiono.
— Tu percebeste, não? Desde que o nosso irmão se foi, ela perdeu um pouco do seu brilho… Acho que entre todos nós, ela era a mais próxima dele. Só que tu tens a ajudado nisso — com a face cheia de amargura, Cecilia diz.
— Eu percebi, é claro, não só ela, de certa forma todos nós. Mas não há necessidade de agradecer-me, jogar com ela um pouco é uma tarefa banal.
— Possa ser banal, mas… hoje eu percebi algo.
— Eu tenho tentado conversar com ela há um tempo, mas ela só diz cousas do tipo «Está bem, eu estou bem, não se preocupe» e me deixa sem opções — cabisbaixa, ela diz.
— Mas a ver tu a conversar com ela eu consegui constatar que o brilho natural dela não se perdeu, o jeitinho que só ela tem, sabes?
— A forma que tu provocas ela, não sei se por intenção ou de maneira natural, e a forma que ela reage… Sembra-me de como as cousas eram antes daquilo.
— Eu fico grata por isso, realmente grata. Eu espero que não importe a adversidade, nós consigamos ficar juntos como uma família.
Cecilia desabafa e me agradece, mas o que eu posso dizer aqui? Não é como se eu fosse alguém que merecesse tais agradecimentos.
Eu realmente não mereço nenhum agradecimento.
— Tu pareces a Flavia quando falas desse jeito, Cecilia — cruzo as pernas e faço um comentário qualquer.
— Não é «Flavia». É a tua mãe, nossa mãe — Cecilia me repreende imediatamente — Algum dia, eu creio que tu irás compreender isso. Eu rezo para isso.
— Enfim, Aurelius, desculpa-me por tomar do teu tempo. Era só isso que eu gostaria de dizer: obrigada.
— Não acho que eu mereça teus agradecimentos, mas se é isso que queres. Que seja.
Após seus dizeres, Cecilia finalmente se levanta e caminha em direção à porta para sair do escritório. Eu a sigo e por gentileza abro a porta.
— Ah… Aurelius! Antes disso… — em frente à porta já aberta, Cecilia subitamente empaca como um animal marrento.
— Vira de costas, Aurelius, vira!
— Virar de costas? Por quê?
— Porque sim! — a tirana Cecilia diz e eu, seu pobre irmão, assinto.
Viro-me, eu, então, e sinto uma sensação de quentura em minhas costas, adjunto de longos e finos braços a realizar o diâmetro do meu corpo.
— Por que eu tinha que me virar para um abraço? Cecilia. Geralmente abraçamos as pessoas de frente.
— É-É porque eu estava com vergonha… — Cecilia me responde a gaguejar.
Como eu estou de costas para ela, não sei qual face ela faz no momento, todavia eu posso muito bem imaginar…
— Bem… caham! O que eu quero dizer, Aurelius, é que da mesma forma que tu ajudas a Quinta, eu estou aqui para ti também, Aurelius. Não te limita — Cecilia me aperta mais fortemente, mas de forma alguma com ódio.
— Não só eu. A Lucia, a Valentina e até mesmo a Alma! Então, não te limita! Se precisares de ajuda, fala conosco. Tu não precisas ficar a fazer-te de forte! Com essa cara estática.
«Até mesmo a Alma!», eu não acho que uma garota revoltada com a vida como ela tenha paciência para oferecer apoio a alguém…
— Vou ter isso em mente…
Cecilia então se desgruda de mim, «Que corpo duro, Aurelius! Devias parar um pouco com esse negócio de exercícios», realiza corajosamente uns comentários pejorativos sobre o meu lindo corpo e sai da sala.
Com tudo o que ela me disse, eu acabo por perceber um grave erro em meu agir. Pego um espelho na gaveta da escrivaninha, observo o meu rosto e o tateio com meus dedos.
— Talvez seja coerente eu fingir uma maior tristeza nessa situação…
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