Capítulo 23 – Patria potestas – parte 2
Subitamente a porta se abre.
Pergunto-me quem poderia ser, as servas relacionadas à saúde que eu necessito já estão aqui comigo. E todos os outros já foram para a capital.
A pessoa que abriu a porta se revela: é o Aurelius.
Aurelius…
Ao ver sua face o meu coração chafurda em cólera, meu desejo é vingativo e ruim. Mesmo que ele não tenha feito nada de fato, afinal, estou nesta situação por conta de meu próprio descuidado no uso de feitiços. Contudo, mesmo assim, cólera profunda há em meu coração.
Eu tento apertar minha mão com raiva, mas não tenho força suficiente nem para realizar essa banal atitude no momento.
— Olá, irmão. Como estás? — Aurelius inicia a conversa.
Prontamente eu considero isso uma ironia, uma grande ironia, mas Aurelius não aparenta estar a ser irônico, surpreendentemente, neste momento. É mais como se fosse uma formalidade do estabelecimento duma conversa.
— Como podes ver, eu estou péssimo. Sinto como se tivesse morrido e algum necromante desdito tenha me retirado do meu sono eterno no Caelum e me posto de volta no mundo dos humanos. Tudo dói. Minha mente não aparenta estar a funcionar corretamente — relato para ele.
— É, não seria um exagero dizer que é um milagre tu teres acordado e voltado tão rapidamente — Aurelius comenta sobre a minha condição.
— Agradeço muito ao trabalho das curandeiras aqui.
O que ele disse não está errado. O sobrecarregamento mágico é um assunto sério no mundo da magia.
Quando eu estudava no Instituo Magia pude testemunhar vários casos nos quais magos ousados e inexperientes descarregavam toda sua quintessência rapidamente e simplesmente apagavam.
Cegueira momentânea ou crônica, má funcionamento de órgãos, dor intensa em certas partes do corpo ou até mesmo morte no pior dos casos.
Ao parar a pensar, o que eu fiz foi completamente estúpido e descuidado. O que cacetes eu estava a pensar ao fazer aquilo? Será que eu estava a pensar que o meu ódio iria impedir-me de sofrer por uma atitude ausente de prudência?
Vamos lá, isso é irreal.
É melhor eu só acalmar-me, controlar meus nervos e ouvir o que ele tenha a dizer.
— Tu sabes por que estou aqui? — Aurelius me pergunta.
— Não faço ideia — respondo friamente.
— Para conversar, apenas conversar. Ao menos espero que desta vez sejam apenas conversas entre dois irmãos.
Conversar? Eu não estava a esperar isso, ainda mais de Aurelius. Eu e ele nunca fomos próximos para conversar sem nenhum grande motivo por trás, então estranho essa situação.
Sinalizo com os olhos para as servas saírem do local.
Após ouvir o barulho da porta a fechar-se, eu pergunto.
— Conversar? Sobre a possível futura guerra?
— Não, não. Somente conversar.
Isso é muito estranho.
Com toda certeza deve haver algum motivo para ele vir até aqui. Ele nunca faria algo do tipo sem nenhum objetivo em mente, embora eu não faça ideia do que é esse objetivo ou se ele realmente existe…
Não tenho muitas outras opções além de esperá-lo dizer o que queres, ou descobrir através de suas palavras. Não é como se eu pudesse simplesmente mandá-lo embora neste momento.
Aurelius pega um banco que uma das enfermeiras usava e o coloca ao meu lado para sentar-se.
— Certo…
— O que tu achas do mundo em si?
— Do mundo? Como assim?
— Dos estados das cousas, sobre o que os humanos ou não humanos fazem, da história, dos deuses.
Aurelius me confronta com perguntas filosóficas e reflexivas. Será que isso está relacionado ao seu objetivo aqui?
— Bom, para mim o mundo é um lugar cheio de cousas incríveis. Há milhares de cousas para explorar, experimentar e enriquecer-se com, contudo é óbvio que isso não é um privilégio de todos. E tu? Aurelius. O que tu achas?
— O mundo é um lugar incrível. Os seres que habitem este mundo nem tanto.
— Mas que visão pessimista, não?
— Pessimista? Eu não acho, diria que é uma visão realista.
— Eu consigo compreender o porquê do Deus único ter se dividido para criar nosso mundo. E consigo compreender porque 7 partes de seu ser se revoltaram contra o mundo.
— Tu já paraste a pensar do porque 7 partes se separaram de outras 7 partes? — Aurelius me indaga com uma pergunta questionante.
Os ensinamentos do colégio dos religiosos ensinam que no início de tudo havia apenas um Deus único. Contudo ele era só, era único, portanto se dividiu em 14 partes que criaram o mundo, criaram o que mais as agradavam.
O «Bem e o Mal», isso foi o que eles criaram. Essa é a história de criação de nosso mundo.
— Bom. Cada indivíduo é diferente doutro, cada indivíduo quer algo diferente doutro. Ou até mesmo quer o que o outro possui. Seria lógico pensar que elas teriam seus próprios conflitos — eu respondo.
Algo básico na compreensão das criaturas é a compreensão de suas diferenças. O mesmo sinal pode ter significado diferente a depender de quem emite ou quem recebe. E é isso que torna o indivíduo tão complicado.
— Talvez.
— «Talvez?» fico surpreso com a resposta dele. Não era o que eu esperava ouvir. Não é o que geralmente respondem.
— O bom é bom porque ele é bom, ele não é ruim. O ruim é ruim porque ele é ruim, ele não é bom. Ser bom é bom, pois não é ruim. Ser ruim é ruim, pois não é bom.
…
Essa abstração e confirmação do óbvio que é tão comum na filosofia me quebram em pedaços. Ainda mais quando é o Aurelius que diz isso.
— As 7 partes boas eram boas, elas criaram cousas boas e gostaram de tais cousas boas. As 7 partes ruins o perfeito contrário. A questão é que as 7 partes ruins são ruins, fazem cousas ruins. Logo, o ruim delas é simplesmente ruim.
— Esperes um pouco. Não estou a conseguir compreender o que estás a querer insinuar — com a mão direita em minha testa e a esquerda estendida em minha frente, eu ordeno-o.
Geralmente para confirmar a existência do que conveniente chamamos de «Mal» ou «Ruim» as pessoas tendem a dizer que para quem nunca aprendeu ou conheceu em totalidade o que conveniente chamamos de «Bem» o mal se parece bondoso em seus olhos.
«Quem ama o feio, bonito lhe parece» dito duma forma que se enquadre no contexto filosófico.
Só que a característica do geral realmente não pode ser utilizada para ninguém desta família, ainda mais para o Aurelius.
— Deixe-me ver se compreendi. O que estás a fazer é justificar a validade do mal? Aurelius.
— Se tu interpretas assim, talvez esteja. Mas o meu foco é validar a existência do mal.
— O mal existe e é isso. Há pessoas más e é isso. Nenhuma diferença irá fazer alguém discordar da dualidade divina, apenas a polaridade de teu próprio e ínfimo coração.
— 7 partes do Deus único se revoltaram contra o mundo porque são más, se separaram porque são más. E é apenas isso — Aurelius conclui sua tese.
O que ele me diz é diferente. Dúvidas se enchem em minha mente. Se o objetivo dele era fazer-me refletir, ele conseguiu.
— Isso não seria de certa forma uma blasfêmia? — pergunto ao Aurelius.
— Blasfêmia? — sem entender-me ele cita o que eu disse.
— Se o mal é mal e é isso, então o real significado disso é que o bondoso Deus único possuía maldade em seu coração. Se os clérigos o ouvissem dizer tais cousas tu poderias complicar-se bastante.
— Não, não seria ou é blasfêmia. Mesmo que fosse, eu não ligaria. Não preciso de colégio algum para falar dum conceito, eu só quero falar da essência.
— A essência é: a maldade é má para quem a considera má.
Novamente Aurelius dita o aparente óbvio, mas desta vez eu consigo compreender o que ele diz.
Se um lavrador duma plantação tem sua mão cortada por arruaceiros comumente iremos rotular isso como mal. O motivo é que entre um arruaceiro e um lavrador, nós nos refletimos primeiro no lavrador.
Mas e o contrário? Se um arruaceiro tiver sua mão cortada por um lavrador, o fato deixa de ser mal. Porque todos nós somos iguais aos lavradores.
Um assassino executado por seus diversos assassinatos irá dizer que matá-lo é uma maldade. Pois para ele aquilo é uma maldade. Mas para quem não é um assassino usaremos aquela conhecida palavra: justiça.
E assim nós vamos a julgar e a criticar as ações com base em quem as fazem, no contexto em que as fazem e nunca ela em si.
— Quando tu explicas as cousas assim, eu até penso que tu podes estar certo. Só que as cousas não são simples ou fáceis assim, quem dera se fossem — sem render-me à sua opinião, eu comento.
— É fato ser mais normal seguir o senso comum sobre os assuntos da vida, pois tu encontrarás menos rejeição e oposição.
— Ninguém quer ser rejeitado, confrontado. Excluído — Aurelius conclui.
Realmente, ninguém quer. A parafrasear Aurelius: emoções ruins são emoções ruins, pois elas são ruins.
Elas te fazem duvidar das pessoas e principalmente de si mesmo. Aprisionam-te em um casulo de dor e medo, impedem-te de mover-se e fazer ações básicas do dia a dia como admirar o que está ao seu redor, apreciar uma boa comida, conversar com amigos, sorrir.
É uma grande corrente que não o deixa atingir um estado de inspiração que todos nós supostamente deveríamos atingir.
Portanto, se houver uma forma de negar ou amenizar a existência de tais emoções, é lógico pensar que buscaríamos isso.
— E é esse medo do confronto que torna o homem em um covarde.
Eu me estremeço ao ouvir a última palavra.
— Nem todo homem é um guerreiro, Aurelius. Há vários arquétipos que alguém pode assumir — eu retruco imediatamente ao ouvir sua fala.
Com uma simples palavra eu entrei num estado de defesa e negação.
Eu realmente sou um…
— Eu reconheço isso. Eu sei disso. Contudo a covardia não é um aspecto relacionado somente aos guerreiros. Covardia não é simplesmente o medo da luta, o medo da morte. É um medo do futuro. Todos podem ter medo do futuro.
— No passado houve muitas guerras, muito sangue derramado e muitas mortes. Claro, não é possível ignorar que ainda há isso também no presente, contudo devido aos seus sacrifícios, isto é, os sacríficos de nossos antepassados, agora há menos.
— Nossos antepassados ousaram em desafiar algo por um objetivo, ousaram jogar um dado e testar a sorte por um futuro melhor. A coragem que eles demonstraram que fizeram nosso mundo um lugar gigante. Em suas falhas e acertos.
— Mas e hoje? O que vemos? Um bando de gordos a fazer ameaças pelas sombras, nem sequer a hombridade de declarar suas intenções em público possuem — com um tom de irritação Aurelius argumenta.
Algo passível de clara compreensão sobre Aurelius é que ele detém um desprezo nunca visto pela a aristocracia, o senso comum, as normas e a nobreza como um todo.
Creio eu que isso seja influenciado pelo o que ele leu em livros antigos que estão na biblioteca do palácio. Livros estes que foram escritos por diversos Conflagratus anteriores a nós que relatavam o estado e a situação da família, objetivo entre outros.
Nosso pai já tentou impedi-lo de ficar a ler tais livros que ele categoriza como «Devaneios de velhos birutas que nada mais têm a ver conosco.», todavia foi um esforço inútil. Aurelius sempre o contrariou a dizer que os relatos históricos de nossa família são nossa «Época Áurea».
— Esses «bando de gordos» possuem influências tão gordas quanto eles, são capazes de afundar nossa nação inteira em suas birras — eu comento ao Aurelius.
— Capazes são, mas são covardes, Lucius. Eu sei que disse que não iria falar da possível guerra, mas é impossível ao considerar o momento.
Aurelius se levanta da sua cadeira e se coloca em minha frente.
— Veja, eu não posso dizer que irei apoiá-lo de coração. Eu não posso dizer que concordo com a situação. Contudo eu posso dizer que eles são covardes, Lucius. Se tu mostrares bravura em suas frentes eles não farão nada.
— Isso parece um pouco presunçoso de tua parte, afirmar tais cousas.
— Eu sou alguém presunçoso, Lucius — Aurelius diz enquanto estende a tua mão para mim, a esperar um cumprimento. Ele sorri com uma confiança inabalável.
— Apenas confie em mim para eu poder confiar em ti.
E no final o objetivo dele é revelado. Toda essa conversa tinha como finalidade a formação dum contrato entre mim e ele.
Eu não consigo dizer o que ele espera no momento, utilizar-me para acabar com os nobres? Usar minha influência para minar possíveis ataques deles contra nós? Ou até mesmo fomentar essa guerra mais ainda?
Ao ver sua mão estendida para mim eu penso em várias cousas. Analiso os riscos. Calculo os lucros. E defino a minha resposta.
— Irei confiar em ti, Aurelius. Ao menos por enquanto — digo enquanto aperto a mão de Aurelius.
Seria uma estupidez recusar a proposta de Aurelius neste momento, ainda mais ao considerar as verdades que nossa batalha demonstrou. Mesmo eu a odiá-lo, Aurelius é um prodígio.
Eu sei que ele ainda irá evoluir mais e mais, adquirir mais e mais poder. Mesmo que seja um acordo sem nenhuma veracidade, apenas máscaras, ainda é um acordo. Um acordo entre dois homens com objetivos diferentes, mas que podem beneficiar um ao outro.
Ao ter sua mão cumprimentada Aurelius ri.
— Então é isso, finalizei o que me estava pendente.
— Pendente? — pergunto a ele.
— Flavia me disse para eu tentar demonstrar apoio, eu tentei e foi lucrativo.
Mãe… agora entendo o porquê da estranha aparição dele aqui. Mas é mais estranho é ele ter acatado um pedido dela.
— Enfim, nossa negociação me tomou mais tempo do que eu planejava.
— Demorarei a chegar à capital, ainda mais ao considerar que a estrada principal está interditada — Aurelius lamenta.
Quando eu descobri que a estrada foi interditada eu senti como se o mundo estivesse a conspirar para eu não tornar-me patriarca, foi irritante. Mas acredito que seja irritante para todo mundo no final das contas.
— A rota alternativa que propuseram é longa, afinal — eu tomo compaixão para ele.
É um contorno total em volta da estrada principal. Mais do que normal perdemos tempo nela.
— Sim, é, mas sei como evitar isso. Queres tu que eu te acompanhe? Lucius. Sei duma outra rota que corta caminho.
Eu andar dentro duma carroça com Aurelius ao meu lado? Com toda essa mistura de medo e raiva acumulada que eu sinto por ele? Deveras cômico. Mesmo que tenhamos acabado de fazer um contrato, eu ainda não consigo suportar ficar perto dele. Principalmente em um lugar pequeno e fechado.
— Melhor não, Aurelius. Ainda irei permanecer aqui por enquanto para realizar ao menos um pouco mais do tratamento, quero sentir-me bem numa hora tão importante — declino politicamente.
— Mas… que rota mais curta é essa que tu estás a falar? — curioso sobre o que ele disse eu pergunto.
A ideia de fazer alguém da casa dos Primus esperar por mim é assustadora. Não quero começar com o pé esquerdo na minha relação com eles.
E eu sei que por ser alguém de espírito livre Aurelius conhece muito bem a topografia do terreno e seus arredores. Invejo-o por isso.
Ao ouvir minhas palavras Aurelius vai para a porta e chama por uma das servas, a pedir por um mapa. Após alguns minutos uma das servas chega com um mapa da região.
Ele então começa a explicar e apontar no mapa onde é essa rota, traçando com o próprio dedo os caminhos.
— É bem simples, ao invés de ir por esse caminho convencional é só tu cortares caminho por aqui. É de certa forma mais difícil o acesso, mas mais rápido também.
Com a explicação feita Aurelius se despede e deixa o mapa comigo. Ele sai pela porta de frente e eu fico sozinho na sala.
— Que estresse…
Eu só espero que isso tudo tenha um sentido no final.
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