Capítulo 102 - Milagres e Sacrifícios (10)
Tristan e o cão rúnico haviam acabado de saltar para dentro da névoa branca, numa tentativa desesperada de escapar dos Marcados. Assim que atravessaram a parede de névoa, um novo mundo se revelou diante deles — ou, talvez, a ausência de qualquer mundo.
A visão era desorientadora.
Tudo ao redor parecia idêntico. Um mar branco e infinito de neblina cobria o solo e preenchia o céu, apagando qualquer noção de horizonte ou direção. Tristan não conseguia distinguir o que era chão e o que era ar, como se estivesse preso dentro de uma pintura monocromática sem bordas.
O cão, que até então o carregava pela boca, largou-o no chão sem delicadeza alguma. Tristan sentiu o corpo ricochetear levemente contra a superfície macia, como se o chão fosse feito de algum tecido elástico ou inflado. Sem tempo para se incomodar com isso, virou-se de imediato, buscando com os olhos o ponto de entrada.
Atrás de si, brilhando com intensidade em meio à brancura absoluta, havia um meio círculo de chamas douradas.
Famintas.
Tristan deu alguns passos para trás, instintivamente, o corpo ainda em estado de alerta. Ele se perguntou se os Marcados os seguiriam até mesmo ali dentro. Era impossível saber. Porém, antes que pudesse refletir melhor, seu pé afundou — e, em um instante, ele caiu.
A queda foi curta, mas intensa. Tristan despencou por cerca de vinte metros, os braços tentando agarrar o nada, até finalmente atingir um novo “chão”, tão macio e estranho quanto o primeiro. Ele gemeu baixinho ao tocar a superfície, mas nada que parecesse ferimento grave. Sentou-se e olhou em volta, atônito.
O cão havia desaparecido.
O coração de Tristan acelerou.
Aquela neblina branca parecia absorver até mesmo os sons.
Magia de ocultação?
Que tipo de lugar era aquele?
Então, ele ouviu.
Uma batida rítmica, como o som de um tambor distante, ecoou pela névoa. Seus sentidos aguçados o alertaram, e ele se enrijeceu imediatamente. Seria algum tipo de criatura se aproximando? Ficou imóvel, forçando a respiração a manter-se silenciosa. Mas o som não parecia se aproximar. Ele apenas… estava ali.
Passaram-se alguns segundos. Nada aconteceu.
Com cautela, Tristan estendeu a mão à sua frente e tocou a névoa. Para sua surpresa, ela era firme como o chão, como se fosse uma parede de nuvem sólida. A névoa ao redor, no entanto, continuava etérea como se nem fosse real. Ele não conseguia distinguir a diferença apenas olhando. Franziu o cenho, tentando sentir algo com seus sentidos místicos — alguma pulsação de energia espiritual, qualquer pista oculta — mas não havia nada.
Foi aí que percebeu.
Aquele mundo estava vazio.
Nenhum traço de energia mágica existia ali. Era uma área estéril, completamente isolada da essência do mundo. Tristan compreendeu, com um calafrio, que não seria capaz de cultivar ali dentro, nem de recuperar sua essência espiritual. O lugar era como um vácuo para tudo que envolvesse magia.
Com um suspiro contido, ele se levantou e cravou os dedos na parede firme da névoa à sua frente. Começou a subir, escalando com esforço. Conforme subia, o som da batida retornou — agora acompanhado de uma segunda batida, ambas em sincronia, mas vindas de direções distintas. O que quer que fosse, permanecia longe demais para que ele identificasse.
Quando atingiu certa altura, os olhos de Tristan vislumbraram novamente as chamas douradas. Estavam a cerca de três metros de distância — e apenas então se tornaram visíveis. Um detalhe inquietante.
Ele olhou ao redor. Nada do cão.
Agachou-se, tocando o chão com cuidado, tateando como um cego. Evitou cair novamente, arrastando-se lentamente para longe do círculo de fogo. Quando se afastou mais de três metros, as chamas desapareceram por completo, engolidas pela névoa densa.
‘Cão rúnico…’
Tristan pensou. Talvez o animal estivesse muito além do alcance. Talvez tivesse caído, como ele, para algum lugar oculto pela névoa.
Com cautela, ele chamou, em voz baixa:
“Ei… cão rúnico, você está por perto?”
Não ousava gritar. Seria arriscado demais alertar qualquer coisa que estivesse à espreita. Continuou chamando em voz baixa, diversas vezes, mas o silêncio foi sua única resposta.
Sentiu-se estagnado. Sem rumo. Não podia se afastar do arco dourado e perder o único ponto de referência que tinha.
Voltou até a borda flamejante. Ajoelhou-se diante da névoa onde haviam atravessado. Havia algo de hipnotizante e terrível naquela luz. Com cautela, ergueu o dedo e o empurrou em direção à parede branca.
Seu dedo desapareceu.
Assustado, Tristan puxou a mão de volta. Observou-a com atenção. Todos os dedos estavam intactos.
‘Isso é algum tipo de portal?’ Tristan pensou, aliviado ao perceber que seu dedo não havia sido arrancado. A estranha parede de névoa que separava aquele mundo silencioso do lado de fora reagia como uma membrana mágica.
A dúvida logo se transformou em curiosidade.
Movido por um impulso ousado, Tristan inclinou o corpo e empurrou a cabeça contra a névoa, tentando ver o que havia do outro lado. O que viu fez seu estômago revirar.
Do lado de fora, dezenas de bestas rúnicas estavam paradas, imóveis como estátuas.
Foi só quando os olhos de algumas delas se encontraram com os dele que algo mudou.
Elas avançaram em uníssono — mas Tristan já havia recuado antes mesmo de ver os dentes grandes e afiados de um gato-das-neves se aproximando. Seu coração batia com força, mas ele estava a salvo, pelo menos por agora.
De volta ao silêncio branco da névoa, Tristan começou a contornar o círculo de chamas douradas, observando com atenção como aquelas labaredas não queimavam a névoa, mas pareciam devorá-la, rasgando a estrutura do mundo. Era como se elas tivessem criado uma fenda dimensional entre duas realidades distintas — o exterior perigoso e esse mundo insondável de brancura.
Nesse instante, algo mudou.
Um novo som surgiu — uma terceira batida. Era diferente das duas anteriores, estava fora de sincronia. Irregular. Um batimento estranho, com um ritmo próprio. Tristan franziu a testa e tentou se concentrar naquele som dissonante.
E então o mundo reagiu.
A névoa ao seu redor começou a se ondular, como um lago após receber o impacto de uma pedra. Ondas se espalharam por todos os lados, e o branco imutável tremeu, mudou, se transformou.
A princípio, Tristan achou que a névoa estivesse se movendo, mas logo percebeu a verdade: não era o mundo que mudava — era sua percepção.
As formas começaram a se materializar diante de seus olhos. O branco assumiu contornos de cabos entrelaçados, corredores de fumaça, paredes e túneis. Era como se o tecido do mundo estivesse se revelando, lentamente, em meio ao caos.
Pela primeira vez, Tristan pôde ver alguma coisa.
Olhou ao redor, absorvendo cada detalhe daquele ambiente bizarro. E então o viu.
A apenas vinte metros de distância, uma figura colossal se movia em círculos. Era o cão rúnico.
A criatura parecia confusa e inquieta. Tristan hesitou. Não sabia o que esperar. Aquela criatura era um dos Marcados, afinal. Mas… também havia salvado sua vida.
‘Há algo de diferente nele. Definitivamente, ele não é como os outros’, Tristan refletiu.
Com passos lentos e cautelosos, começou a se aproximar.
Foi então que viu o cão atacar. A criatura se lançava contra a névoa, desferindo golpes furiosos. Às vezes acertava apenas o ar; outras vezes colidindo com as paredes. Mas nada mudava. Nenhum arranhão, nenhuma rachadura.
Vendo aquilo, Tristan parou. Estendeu a mão e convocou uma centelha de Escuridão, esfregando-a contra a parte sólida da névoa.
Nada aconteceu.
‘Essa coisa é imune a magia? Ou minha magia é fraca demais? O que diabos eram aquelas chamas douradas, para conseguirem danificar esse lugar?’
A mente de Tristan fervilhava.
Aproximou-se mais do cão Marcado. Não sabia se devia chamá-lo de inimigo ou aliado. Mas decidiu tentar se comunicar.
“Está perdido também?” — perguntou, a voz baixa, mas firme.
A reação foi quase imediata. O cão se virou em sua direção, a cabeça girando de um lado para o outro. Mas parecia cego.
Tristan deu um passo para trás, queria confirmar algo.
“Uhm… só eu consigo enxergar aqui.” Pelo menos, por enquanto.
Suspirou.
Era como mergulhar em um mar de perguntas sem fundo. Cada resposta o levava a um novo abismo de dúvidas.
Tristan deu mais um passo. O cão recuou, surpreso com sua súbita aparição.
“Você consegue entender o que eu falo?” — questionou com cuidado.
A criatura assentiu. A cabeça imensa moveu-se para cima e para baixo, em um gesto lento.
Tristan ergueu as sobrancelhas.
Interessante.
‘Infelizmente, ele não parece um tipo de cão mágico que fala. Isso facilitaria bastante as coisas.’
“Você está relacionado com aquele ser estranho da caverna oculta?”
Mais uma vez, a criatura assentiu.
“Essas runas no seu corpo… foi ele quem fez?”
Outra confirmação.
“Você entende o que ele fez com você?”
Dessa vez, a resposta foi negativa. A cabeça do cão moveu-se com uma lentidão pesada, como se a própria pergunta o perturbasse.
Tristan permaneceu em silêncio por alguns segundos. Ainda não compreendia o que estava diante de si.
“Você está livre da influência dele?”
A criatura hesitou.
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