Autor: YEisu

    Na vila pequena, no sopé da montanha, crianças brincavam ao redor de uma fogueira. Na vila viviam poucas pessoas, poucas famílias, mas quando o Sol saía cheio de graça para trabalhar além do horizonte, todos se reuniam na praça para nada fazer além de socializar.

    Todos na vila se conheciam; as crianças chamavam os mais idosos pelo nome, enquanto estes pediam todos os dias para que agissem de forma menos “endiabrada”, já não conseguiam acompanhá-las no seu ludismo. 

    Animais? Ah, sim. Haviam alguns cachorros com nomes engraçados, e gatos que agiam como se nunca tivessem sido adotados. Também havia gado — pouco —, e se seguissem na densa floresta, encontrariam vários pássaros e animais selvagens.

    As crianças, como de praxe, pareciam monstrinhos inquietos ao redor da fogueira. Bom, hoje estavam cansadas, então estavam bem melhor do que nos outros dias, pois foi dia de colheita e todos ajudaram seus pais e protetores.

    Os que ainda aguentavam estavam brincando com uma bolinha e sandálias, os que não, dormiam em suas camas. No entanto, um em específico continuava acordado, mas sequer dava atenção à brincadeira.

    Tinha cabelos negros e curtos, mal cuidados como os de alguémque não os dava atenção, olhos castanhos e uma estatura alta para a idade. Estava no meio-fio, sentado e rabiscando o chão com um pedaço de carvão frio que sobrara de uma fogueira anterior. Aquilo era mais interessante, ao seu ver.

    De repente, o garoto olhou para uma aglomeração, de onde ouvia os mais velhos falando com alguém. Ele, cansado, levantou-se devagar e foi ver do quê se tratava, afinal, já se considerava um rapazinho.

    Era um homem de idade e cabelos compridos amarrados por trás da nuca em um coque. Seu corpo remetia a cidade, pois não havia um músculo sequer ou calos em suas mãos. De fato, ele veio da cidade.

    O menino, Augusto, sentiu-se perplexo ao ver as roupas do homem. Jamais tinha visto uma roupa tão lustrosa; um paletó cinza e uma calça de mesma cor e tecido, além de óculos bem redondos e grossos.

    Quando chegou mais perto, um dos mais velhos perguntou: — Quem tu és?

    — Sou apenas um vendedor viajante — respondeu e cumprimentou o estaroste com um aperto de mãos simples. — Minha égua cansou-se e logo me desesperei. No entanto, por pura graça Divina, encontrei-vos poucos segundos depois. Vim em busca de um lugar para pernoitar enquanto deixo minha companhia de longa data descansar. Dar-me-iam a honra? Posso dar-lhes algo em troca, caso seja necessário.

    Havia poucas casas na vila, contudo, isso não foi motivo para que o estaroste recusasse o pedido do homem de fala modesta. Porém, ficara curioso e perguntou: — O que vendes, senhor?

    O homem, no entanto, não respondeu de imediato; era uma pessoa nervosa e um tanto desatenta — assim que recebeu o sim, correu até sua égua sem nem mesmo olhar para trás. O estaroste encarou o nada, sentindo-se abestalhado.

    Quando voltara, junto da égua e da carroça, foi ajudado a pô-la no estábulo mais próximo, e,  com uma parte de sua mercadoria, encarou os que ali estavam reunidos. 

    Augusto, escondido atrás do idoso e de seus amigos, observou bem a caixa pequena, mas que parecia — e era — bem pesada.

    — Vendo livros e cresço a alma, meu bom senhor — anunciou o homem, com um sorriso de orelha a orelha, enquanto ajustava à sua cartola. — Quer uma amostra? 

    O velho senhor, todavia, recusou o pedido: — Infelizmente não sei ler.

    — Não tem problema, posso ler para as crianças, já que estes contos são feitos em justo para o público infantil — continuou, pondo a caixa no chão e desatando o nó de cordas finas.

    As pequenas paredes de papelão soltaram-se e caíram devagar no chão, nem chegando a empurrar a poeira. Vendo o que estava lá dentro, os olhos das crianças começaram a brilhar. A maioria nem sequer sabia ler, mas era a primeira vez que viam tais coisas.

    — Certo, se for assim não tem problema.

    E assim, na vila no sopé da montanha, as crianças finalmente aquietaram-se ao redor da fogueira, e o vendedor por-se-ia a ler suas estórias e, como o próprio dissera, a crescer a alma das crianças.

    Sim, aquele dia foi definitivo para muitos.

    Augusto sentou-se ao lado de Rebeca, uma garotinha da sua idade. Não se falavam muito, não poderiam dizer que gostavam um do outro, mas não se desgostavam. No entanto, ambos ficariam maravilhados e crescidos com a estória.

    Eles observaram atentos o homem enquanto ele se preparava, mas antes que percebessem, um já riscava o chão e a outra cantava baixinho, como se fosse apenas para ela e somente ela fosse ouvir.

    Contudo, assim que a voz do homem ecoou com um belo “pronto”, sua atenção foi capturada de novo  Ao som dos estalos do fogo, as palavras que ecoavam da boca do vendedor pareciam mágicas para eles.

    — Certo, vamos começar! Era uma vez…

    Havia um homem; idoso, na verdade. Ele vivia sozinho na floresta, mas nunca se sentiu solitário. Sempre tinha a companhia do cantar dos pássaros e dos uivos dos ventos quando colidiam na estranha floresta que vivia.

    — A floresta diferia de tudo que já viram e de todas que existem nesse mundo! — afirmou o narrador, controlando seu tom de voz para ser mais imersivo.

    Haviam cachoeiras que despencavam nas nuvens; árvores tão gigantescas que superavam colinas, uma fauna tão misteriosa que era inexplicável ao vivente e, para ele, o mais importante, um rio gigantesco que dividia a floresta em duas.

    Todo dia, ele ia até o rio, mas não ia apenas para pescar e satisfazer sua fome; ia para ver alguém. Ouvir alguém. Todo dia, ao meio-dia, ele ia até o rio, levando seus equipamentos de pesca e lanches doces baratos; caramelos.

    Então, após atirar os caramelos no rio e esperar ansioso, uma melodia solene e serena surgia das águas e abraçava suas orelhas com o conforto de uma mãe. Tão suave que adormeceria qualquer um após uma refeição.

    Aquilo era divino às orelhas do tão deprimido e sofrido ex-soldado. Sentia-se livre das amarras da guerra que tanto lhe trouxe mal, desacorrentado do luto eterno pelos filhos; a música lhe trazia paz.

    Então, após o primeiro ato melódico, a bela sereia de cabelos castanhos saia do rio e, como de costume, pedia por mais doces. Logo conversavam a tarde toda sobre os mais quaisquer assuntos. 

    Ela lhe perguntava sobre o mundo dos homens, e ele, sobre o mundo dos mares. Conversas iam e voltavam, mas os dois pareciam nunca que nunca ficariam sem ter  assunto para falar.

    Mesmo assim, às vezes, ela parava e trazia mais melodias e cânticos ao homem, e ele agradecia da mesma maneira de sempre — mesmo que não precisasse, pois ela nunca os pedia.

    Para ele, a música era a cura. Para ela, a música era uma diversão. Mas para ambos, uma união poderosa. As melodias fizeram uma amizade inacabável.

    No entanto, quando parecia que ainda teria mais história, o homem parou. Dissera que já era tarde para as crianças ficarem acordadas e que contaria apenas mais uma história.

    Augusto, ao ouvir isso, ficou frustrado, mas sua companheira de banquinho, profundamente maravilhada. Algo nela havia mudado graças ao simples continho; um fogo antes tão comum e ignorável parecia ter se tornado um incêndio.

    Ficou impressionado e triste, pois se lembrou de que há muito já não tinha seus pais. De certa forma, achou que reconhecia a dor do idoso, mas voltou sua atenção para o vendedor assim que ele tirou o segundo livro da caixa.

    — Queria contar mais, mas sempre mandava minha filha dormir por este horário. Bem, aparentemente não era apenas eu que o fazia! — gargalhou. — Bem, era uma vez…

    Havia um garoto pobre, muito pobre. Não tinha pais, não tinha avós. Sua única companhia eram os vários animais de rua que sempre o acompanhavam.

    O garoto vivia mal. Não tinha amigos e nem roupas limpas, ainda assim, conseguia encontrar felicidade. 

    Na cidade onde morava, havia uma pequena construção abandonada. Com exceção do menino, ninguém entrava lá. Contudo, o lugar era, aos olhos dele, maravilhoso.

    Havia um depósito, no lugar, lotado de lapises e canetas, além de outros variados materiais de desenho que pareciam nunca acabar. Também haviam paredes, que já foram brancas e limpas, para serem rabiscadas e quadros para serem pintados pela tinta guache seca e velha.

    Quando estava lá, o mundo não lhe parecia cruel. Em um certo dia, seus amigos animais entraram no seu palácio, escondidos, e para a completa surpresa do menino, começaram a pintar junto dele!

    Isso acabou por virar uma rotina. Ele pedia esmolas para poder comer e compartilhava com seus amigões, e então voltava à construção, onde passava o resto do dia desenhando e pintando, às vezes, usando suas mãos, como as patas dos seus amigos.

    Em um certo dia, foi descoberto. Ele esperava que fosse punido, no entanto, o que aconteceu foi o contrário do que esperava! Foi levado a ser o tópico das conversas da cidade e tornou-se um pintor renomado após crescer!

    — Mas… ele não tinha feito algo errado? Por que as pessoas lhe deram fama se ele fez algo errado? — perguntou Augusto, incrédulo.

    — Veja, garoto, de fato, ele fez algo errado. Contudo, não o fez por mal, nem feriu ninguém de verdade.

    — Mas não muda o fato de que ele fez algo errado. Se for assim, os mais velhos não poderiam me punir por eu ter rabiscado o chão! — retrucou o garoto, com um semblante irritado e seus braços, cruzados.

    O vendedor olhou para os mais velhos, que ali se encontravam, com um certo furor, mas sumiu quando Augusto se aproximou — sedento por uma resposta. Ele pensou por um instante, então chegou em uma conclusão satisfatória.

    — É porque é arte, e ela muda a perspectiva das pessoas, pequeno. Às vezes, as pessoas veem coisas tão lindas que mudam seus pensamentos e a forma de ver o mundo!

    — Como assim? — questionou o garoto, olhando para o carvão na sua mão.

    — Veja o idoso do conto anterior. Muitas pessoas tendem a tirar a própria vida quando sofrem em demasia, contudo, graças ao canto da sereia, ele não cometeu o pecado. Isso foi graças à arte, menino.

    — … eu não entendi.

    Vendo que seu exemplo era insuficiente, decidiu falar mais; desta vez usando a própria vida.

    — Eu não era um homem muito próximo das artes, garoto. No entanto, tive uma filha há muito tempo, e ela amava. Todo dia era uma bagunça! Pintava as paredes da nossa casa, riscava os cadernos da escola com coisas que não eram da escola, cantava o tempo todo e sem parar… Ela era uma boa garota, mas vivia me enchendo de trabalho.

    — E? — indagou o garoto, voltando ao seu lugar e olhando à colega, que lhe fitava de forma curiosa.

    O vendedor se sentou no chão, sem ao menos ter varrido, e continuou: — Conforme ela cresceu, suas travessuras ficaram mais belas, e chegou um momento que até eu fui domado por sua mania de ver tudo como uma pintura, apesar de que eu não tinha tanto talento.

    Então deu sequência ao seu argumento. Contou como sua filha seguiu a carreira artística — como uma pintora —, após ter crescido tanto em beleza quanto em talento, e como chegou a ter uma fama considerável. 

    Contudo, após ter decidido abrir uma escola de artes, veio a falecer de pneumonia. 

    Contou, ainda, o quão triste ficara graças ao evento. Tornou-se um coitado ríspido e alcoolizado, que brigava com todos ao seu redor e era conhecido como uma figura digna de pena pele povo da cidade grande.

    No entanto, houve um dia em que entrou, bêbado, em uma construção abandonada — o lugar que sua filha comprara e planejara para ser sua escola — e lá achou algo: uma pintura velha, mas que estava muito bem conservada.

    Não conseguia ver de longe dado a idade e torpor alcoólico, contudo, quando se aproximou, tudo aquilo parecia ter sumido em um instante. Era uma pintura, uma reimaginação de um desenho que ele mesmo tinha feito quando era o primeiro aluno da própria filha.


    Ele notou com extrema facilidade de quem era a autoria, pois reconheceria o traço em até mesmo sem a visão!

    — Foi naquele dia que decidi seguir o sonho de minha falecida filha. Ah! — Parou por um instante. — Acho que isso é uma mudança de perspectiva, não é mesmo? Hahaha!

    O garoto encarou o vendedor, e nesse momento, sentiu algo acender dentro dele. Quis falar, talvez contra-argumentar, mas apenas ficou em silêncio, agradeceu pela história e voltou à casa do estaroste, onde morava desde que perdeu seus pais.

    A noite passou enquanto todos dormiam, e logo cedo, o vendedor tomou um forte café-da-manhã oferecido pelos senhores da vila, preparou suas coisas e, prestes a sair, foi parado pelas duas crianças cujos contos fizeram os olhos brilharem.

    Ele viu as malas que tinham alta probabilidade de não serem deles e de estarem mal feitas, no entanto, perguntou uma única coisa: — Seus responsáveis permitiram?

    E assim, a arte triunfa mais uma vez quanto a acender vontades!

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