Capítulo 6 - Reunião Anual da Família Rose
Autor: Miltil
Vinte e quatro de novembro, véspera de Natal, como odeio essa data. Sim, é uma ocasião detestável para mim. Tenho que sair da minha adorável cidade natal, ensolarada e com as praias mais belas, para vir para o fim do mundo gelado e escuro.
Acontece que a grande parte da família do meu pai vive na Terra de Thomas Nyrzyr, um território ultramarino localizado no extremo Atlântico Norte. É um costume da família reunir-se todos os anos nessa data na casa dos meus bisavôs, na ilha de Henry Nyrzyr, a maior das quinze ilhas e uma das duas permanentemente habitadas.
Era um domingo nevado, como todos os malditos dias de inverno nessa ilha. Eu havia acabado de chegar ao porto e a brisa polar já colidia em meu rosto. Fechei meu agasalho e apertei o cachecol em meu pescoço.
— Que dia! — reclamei para os meus pais, que desembarcaram na minha frente. Para o meu azar, tive que auxiliar a minha irmã mais nova.
— Pare de reclamar, estou ansiosa para ver minha família — disse ela para mim ao mexer no celular. Sua toca roxa com orelhas de gato estava na mão. Ela permanecia indiferente ao frio que eu sentia congelar meus ossos.
— Entao, venha logo, não faça corpo mole — ordenei ao deixá-la para trás ao carregar as nossas mochilas.
Saímos do cais assim que o cruzeiro quebra-gelo tocou suas buzinas. Na rua, meu irmão mais velho, Luiz, nos esperava na caminhonete surrada do nosso avô.
— Pai, é bom ver vocês! — cumprimentou ele com um abraço apertado em nosso pai e outro em minha mãe.
— O bigode ficou bonito em você, filho… Parece o seu pai com a sua idade — elogiou minha mãe ao abraçá-lo.
— Esse ano pareceu uma eternidade. A faculdade não acabava nunca! — falou ele.
Meu irmão havia saído de casa no ano passado, após entrar na sua sonhada faculdade de medicina. Minha vez de fazer o mesmo chegara; após o fim do ensino médio era a hora de decidir o meu futuro. Todavia, não havia nenhuma faculdade que me agradasse. Na pior das hipóteses, eu entraria no exército e tentaria uma carreira militar.
— E como estão meus irmãozinhos? Peter e Sara? — perguntou ele para mim.
Eu colocava as malas na caçamba da caminhonete, com uma torcida silenciosa pelo bem-estar dos meus dedos, que pela falta de luvas, poderiam congelar.
Peter, como eu detestava aquele nome, não era incomum em nosso país tão miscigenado e cheio de imigrantes, mas por que não escolher Pedro ou qualquer outro nome mais aportuguesado? Como os meus outros colegas de classe? Perguntas que eu sempre fiz para os meus pais e nunca recebi uma resposta.
— Congelando… Podemos ir logo? — reclamei ao entrar no carro.
— Luiz! — gritou minha irmã ao abraçá-lo.
Os dois eram muito apegados. Lembro-me de ver minha irmã chorar horrores no dia em que ele saiu de casa. Comemorei sem parar; o quarto se tornara exclusivo, nada de dividir videogame, banheiro ou qualquer coisa parecida.
Todos entraram no carro, e partimos pelas ruas lotadas de neve em direção à casa dos meus bisavôs, que ficava isolada do outro lado da ilha.
— Vocês são os últimos a chegar — disse meu irmão no volante. — Todos esperam por vocês…
— A Liza já chegou? — gritou minha irmã animada, empurrando-me e inclinando-se para a frente para conversar.
— Ei! — berrei para ela irritado. — Na próxima, sente no banco do meio e me deixe na janela! Idiota…
Minha mãe ao meu lado beliscou-me na perna; seu olhar já comunicava tudo o que eu precisava saber, então fiquei quieto. Observei pela janela a cidade enquanto minha família conversava sobre assuntos dos quais não me lembro.
A cidade estava um pouco diferente naquele domingo; diversos militares patrulhavam as ruas com seus uniformes de inverno, sempre em pares, em cada esquina, cada praça. Apesar de eu saber que a outra ilha habitada do arquipélago era uma base naval, a cidade era uma zona civil.
Estávamos quase saindo da cidade, para entrar na estrada que leva ao nosso destino, quando uma blitz policial nos parou. O guarda fez o sinal de parada, que meu irmão prontamente obedeceu.
— Bom dia. — Luiz abriu a janela do carro.
— Bom dia, ocorreu um incidente na estrada mais cedo… — O guarda então olhou para o meu pai. — Oh, senhor Will, é bom vê-lo! Estão aqui para a reunião da família Rose?
Meu pai concordou com a cabeça.
— Sim, nós estamos. Posso perguntar o que ocorreu, Altair? — questionou meu pai ao guarda, que fora seu colega de escola.
— Um ataque de urso polar, o pobre do senhor Zuni nem teve chance — respondeu Altair ao esfregar o óculos embaçado no casaco.
— Zuni? Aquele velhinho que todos os anos é o Papai Noel? — Meu pai ficou incrédulo, sem acreditar no que ouvia.
— O pior de tudo foi que algumas crianças viram a cena. — O oficial colocou os óculos de volta e sussurrou em um tom baixo. — Parece que o trauma foi tao grande que elas inventaram uma história.
— Uma história?
— Sim, eles contaram que uma grande criatura com pelos cinzas e chifres atacou Zuni. Tiveram que chamar os militares… — contou com uma pequena gargalhada, então recuperou a seriedade. — Eu pessoalmente acredito que essa descrição se parece com um diabo, ou um krampus, que deve ter sido a forma da mente reprimir a verdadeira cena que viram.
— E o urso? Ainda solto? — indagou meu irmão.
— Infelizmente, o tenente disse que mandará alguns fuzileiros atrás dele… Não sei se terão sucesso, existem muitos ursos polares para descobrir qual foi o culpado. — O oficial suspirou e deu um pequeno tapinha na lataria. — Apenas peço que caso avistem algum urso, me avisem. Tenham uma bom dia.
— Obrigado Altair — agradeceu meu pai e depois fez um sinal para o meu irmão colocar o carro em movimento.
Continuamos a viagem, percorrendo uma estrada auxiliar coberta de neve que percorria a margem do grande lago congelado no meio da ilha. De um lado eu via os pinheiros brancos pela neve e do outro o mar. Após quase quinze minutos, alcançamos a antiga propriedade da família.
O grande portão de ferro que delimitava a propriedade estava aberto, pois a neve impedia sua abertura e fechamento constantes. A imponente mansão despontou no horizonte, um casarão do século XIX construído para o antigo governador local, posteriormente adquirido e reformado pelo meu bisavô quando trabalhava na antiga indústria petroquímica que por muitos anos foi o pilar econômico da região.
Ele havia acumulado riqueza com os abundantes poços de petróleo, mas um dia esses poços secaram. Para preservar a economia local, o governo comprou os direitos de exploração por preços exorbitantes. Dinheiro suficiente para iniciar uma nova companhia de mineração no arquipélago de New Gate, outro território ultramarino imperial, que, no meu caso, é a minha terra natal.
Um arquipélago muito mais agradável que o local em que me encontrava agora. Uma região tropical, com sol o ano inteiro, praias repletas de belas pessoas e todas as comodidades que o maior centro turístico do Império poderia oferecer. No entanto, meus bisavôs amavam aquela propriedade, isolada no meio do nada, onde predominava a neve por metade do ano.
Saí do carro e entrei no casarão, para sentir o refrescante ar quente do aquecedor. Na sala, ao redor da lareira, minhas primas assistiam alguma comédia romântica irrelevante. Minha irmã correu até elas, empurrou-me para o lado e quase me faz cair no chão com as bagagens.
Olhei para minha mãe e meu único desejo era que ela visse aquilo e me permitisse xingar minha irmã. Infelizmente isso não ocorreu. Meu pai deu um tapa no meu ombro e falou:
— Peter, você poderia acompanhar seu irmão e os seus primos? Eles vão até a cidade pegar a encomenda da sobremesa.
— Nós cinco? — Meu desejo era permanecer aquecido, não enfrentar a nevasca que caía. — Tem certeza que não tem mais ninguém para fazer esse trabalho?
Meu pai olhou para mim com o balançar da cabeça, pôs a mão em ombro e mandou um conselho furado para tentar atingir meu ego.
— Com a idade, vem grandes responsabilidades…
— Vamos Peter — disse meu irmão ao pegar a chave do rabecão.
O rabecão era o apelido do carro que o meu tio Alan possuia, um carro com um grande bagageiro, no qual dizia-se ser suficiente para um caixão. Logo o apelido pegou, e o carro nunca mais teve outro nome, senão rabecão.
Tirei minhas luvas de frio da minha bolsa e entrei na garagem. Meu primeiro instinto foi sentar no banco da frente. Não queria ter que dividir o assento com outros dois patetas. Logo meu três primos chegaram, Eduardo, o mais velho do grupo, e os irmãos Jason e Henry, filhos do meu tio Alan.
Percorremos todo o caminho de volta para a cidade novamente. Paramos na frente da padaria Themis, meus primos Jason e Henry permaneceram no carro. Entramos no local um pouco cheio para uma véspera de natal.
Eu olhava para o relógio do meu celular, que como sempre em naquele fim de mundo, estava sem sinal. E, em seguida, para o meu irmão Luiz, que discutia com o balconista.
— Como assim trinta minutos? Vocês disseram que o bolo ficaria pronto ao meio-dia! — reclamava ele para o funcionário.
— Senhor, peço desculpas pelo atraso, vários dos meus colegas faltaram hoje, estamos com o pessoal reduzido. — O jovem olhava para a cozinha a cada frase e suspirava baixo.
— Isso está sem gosto! — gritou um dos clientes, levantando-se da cadeira e caminhando até o balconista.
— O que aconteceu, senhor? — indagou com um grande sarcasmo na palavra “senhor”.
— Veja esse cupcake de goiaba que comprei. — O homem colocou um bolinho mordido no balcão. — Onde está o recheio disso?
O balconista ia explicar quando o homem caiu no chão com a mão na cabeça.
— Preciso de uma ambulância aqui — ordenou meu irmão ao iniciar os primeiros socorros.
Foi então que o som das sirenes de emergência irrompeu no ar, tons altos e estridentes feitos para chamar a atenção.
— Dois toques longos com dois toques curtos — comentou meu primo Eduardo, que havia entrado na padaria conosco. — Não é uma nevasca, é um ataque… Luiz! Temos que sair daqui!
O barulho das sirenes se misturou com o de tiros. Do lado de fora, algo grande acontecia.
— Luiz! — Eu olhava para fora, vendo os militares correndo na direção do porto o mais rápido possível. — Os alarmes têm um propósito!
— Não posso deixar esse homem caído, meu juramento de Hipócrates — respondeu.
— Você jurou em nomes de deuses gregos, isso nem devia ser considerado juramento!
A cabeça do homem inchou, e simplesmente explodiu, jogando a massa cefálica no casaco do meu irmão. Fiquei imóvel, atônito, minha mente processava o que eu acabara de presenciar.
Uma aranha saiu da cabeça do cadáver, era um pouco maior que uma mão humana e tinha cinco pares de pernas. Olhávamos para a criatura, e ela nos encarava perdidamente no mundo humano.
Luiz esticou a mão para tocar no animal, sendo impedido por um grande grito da cozinha. O cozinheiro abriu a porta com um machado nas mãos e golpeou o balconista. Aquilo foi o bastante para meu irmão levantar-se e correr até o rabecão.
Eu e meu primo fizemos o mesmo, e Eduardo roubou meu lugar no banco da frente, me obrigando a sentar atrás com Henry e Jason.
— Que merda é essa? — indagou Henry ao olhar o casaco de Luiz manchado de sangue.
— Eu não sei! — respondeu ao dirigir o carro de volta para a mansão.
— Que nojo… — Eduardo colocou a mão na boca, para segurar o vômito.
Luiz parou o carro no meio da rua, enquanto eu via a cidade atrás de nós em chamas. Teria perguntado a ele o motivo de ter parado, se não enxergasse o policial que nos parara antes com a arma apontada para o carro. Um fino tentáculo de cor escura saía do olho esquerdo dele. Um tiro e a cabeça de Altair foi dilacerada pelos projéteis. O corpo, sem vida, caiu na estrada, a dez metros de nós.
O atirador era um jovem da minha idade, uniformizado com o traje negro da Guarda Imperial, as forças de elite do governo. Ele segurava uma escopeta com a mão direita, sem mover o braço durante o recuo da arma.
— Tá esperando o quê? — questionou Eduardo no banco do passageiro para Luiz.
A cidade ficou para trás, e nossos corações se acalmaram um pouco, tivemos tempo de refletir sobre o que acontecia. Fui o primeiro a tomar a palavra, juntei minhas observações e falei:
— A Guarda Imperial está aqui, os soldados da marinha patrulhavam a cidade hoje cedo… Eu ainda não entendi, aquele senhor tinha uma aranha no cérebro dele? E o oficial de polícia, um polvo?
— Temos que voltar para casa e relatar isso… — suspirou Jason ao olhar pela janela e ver a pura neve branca cair. — Espero que todos estejam bem.
Eu não lembro mais nada do que aconteceu… Um vulto cinza na estrada, ele apareceu na frente do carro e nós saímos da estrada. Quando acordei, senti um líquido escorrer na minha cabeça, toquei no meu lábio e vi o sangue sujar a ponta das minhas luvas.
O veículo havia batido em um pinheiro, a parte direita do veículo foi destruída no acidente. Se Eduardo deixasse eu sentar na frente, seria eu naquela situação. O meu primo ficara preso nas ferragens, que esmagaram suas pernas.
Ninguém sabia o que fazer naquela situação. Podíamos ver ao longe as luzes da mansão, mas o caminho mais rápido a pé era atravessar o lago congelado. O resto de nós estava com ferimentos leves, alguns cortes no rosto e nada mais grave. Mas o estado de Eduardo era muito preocupante.
— Devemos tirar ele do carro? — perguntou meu primo Henry ao sair do carro e ir ver como Eduardo estava.
— Pelo amor de Deus, não toquem nele, podem só piorar os ferimentos — repreendeu meu irmão.
— O que a gente faz? — questionou Jason.
— Eu e o Peter chamaremos ajuda, fiquem aqui e cuidem dele. — Luiz disse ao correr pelo gelo fino.
Incrédulo e preocupado com a minha segurança, indaguei:
— Vamos mesmo atravessar o lago?
— O caminho mais curto entre dois pontos é uma reta.
Eu o acompanhei. O frio batia no meu rosto cortado e a agonia era cada vez pior. No meio do caminho, vi uma enorme sombra negra se mover por debaixo de nós.
— Luiz… — Parei e observei a sombra diminuir na água aos poucos.
— Estamos quase lá, não podemos parar! — Meu irmão nem percebera o que existia embaixo do gelo.
Vi a sombra se aproximar, ficando cada vez maior, direto para o meu irmão…
— Tem algo no gelo… — alertei ao voltar a correr para alcançá-lo.
Não deu tempo. Senti como se o mundo tivesse parado. Escutei o gelo quebrar, o enorme tentáculo sair do lago e agarrar o meu irmão. Pulei e agarrei o braço dele, para impedir que o puxassem para a água.
— Cuide da nossa irmã… — Foram as últimas palavras dele, não havia medo em seu rosto, só um sorriso que me marcou como minha lembrança dele.
Em dois instantes, meu irmão afundou nas águas geladas, enquanto um solitário buraco no gelo era a única prova que sobrara do que ocorreu. Fiquei em choque e voltei a correr em direção à mansão.
A criatura não aparece mais, mas eu sentia que ela me observava no fundo, pronta para me atacar. Foi um alívio enorme chegar à margem. Me ajoelhei em prantos ao me lembrar do meu irmão. Na minha mente, eu voltaria para casa e ele estaria lá, como sempre…
O perigo do lago acabou, e comecei a caminhar a passos lentos por dentro da floresta de pinheiros, até que avistei algo incomum. Um cachorro negro no meio do branco da neve e do pouco verde que restava nas árvores. Era um doberman de grande porte, quase do meu tamanho.
Fiquei parado, e nós dois nos encaramos. O cachorro deu um latido e correu para o meio da nevasca. Com certa relutância, resolvi segui-lo, talvez o seu dono precisasse de ajuda. Em certa parte, eu acertei.
O corpo do fuzileiro estava caído de costas, sua cabeça havia sido explodida, e a neve ao redor ficara vermelha. Existia um rastro que se iniciava no corpo e adentrava a mata mais fechada, como algo que se rastejara.
Olhei para os lados, o cachorro havia desaparecido no meio da nevasca. Apanhei a arma caída do militar, uma escopeta com duas munições restantes.
— Ótimo… Mas melhor do que nada — pensei em voz alta.
Um grito familiar chamou minha atenção, abafado pelo vento gelado do ártico. Fui na direção do som, com esperanças de ver um rosto amigo. Cheguei na colina e vi minha irmã fugindo de uma criatura de pele cinza.
Era um bípede com casco de bode, chifres negros retorcidos e dois olhos brancos que sugavam a sua alma apenas com o olhar. Olhei para aquilo, e os meus pelos se arrepiaram todo, foi pior do que ver o policial com o tentáculo no olho.
Minha irmã passou por mim, aliviada ao me ver com a arma apontada para o bicho. No instante que ele chegou perto da minha mira, apertei o gatilho. Apesar de eu segurar a arma com as duas mãos, o recuo ainda me derrubou com tamanha força.
Caí de costas na neve, ainda vivo, mas aquilo caiu com todo o tronco despedaçado. Soltou um gemido agudo ao se arrastar pela neve com as garras e depois parou de se mover, já sem vida.
— Eles… Eles… — Minha irmã me abraçava engasgada com soluços, era a primeira vez em muitos anos.
— Não se preocupe, eu estou aqui. — Eu tentava a tranquilizar com um beijo na testa. — Conte o que aconteceu, eu preciso saber…
— Atacaram a casa… saíram da neve… E… — gaguejava, e ela olhou para mim e voltou a entrar em um rio de lágrimas.
Nunca tivemos proximidade, todavia naquele momento de tensão, eu a abracei com toda minha força e carinho. Senti a necessidade de protegê-la, não importa o que houvesse.
Um uivo sinistro ecoou no ar, eu vi outra criatura no topo da colina, maior que a primeira e com os olhos brancos mais assustadores ainda.
— Sara, fuja, mas não tente caminhar sobre o lago — alertei para ela.
Ela concordou e indagou:
— O que planeja fazer?
— Dar a ele o mesmo destino de seu amigo — respondi ao tocar o cano quente da escopeta.
!
Sara correu para a floresta. Continuei a observar a criatura, que me olhava de volta, mas não saía do topo da colina. Cada segundo aumentava minha adrenalina; eu deveria correr ou ser passivo e esperar ele entrar no meu alcance para desferir o golpe final?
Distraído em meus pensamentos, ignorei o que acontecia ao meu redor. Uma aranha negra, semelhante à da padaria, andava sorrateira atrás de mim. Quando percebi, era tarde demais, ela pulou em cima de mim e por reflexo gastei minha última munição nela.
Ao ver isso, o bode humanoide desceu a colina e me perseguiu. Larguei a escopeta e tentei despistá-lo entre as árvores. Me escondi atrás de um grosso pinheiro, e a criatura fungava o ar na tentativa de sentir o meu cheiro.
Dei uma pequena olhada de relance e assustei-me com a minha irmã parada, congelada de medo na frente da criatura. Ela não havia fugido como pensei, só se escondera na floresta.
Gritei para desviar a atenção para mim. Não funcionou; a besta moveu sua garra e partiu o corpo dela em dois no mesmo instante que eu soltava um grito de agonia. Caí de joelhos no chão, valia a pena tentar sobreviver?
— Não desista ainda — gritou uma voz do além. — Você tem futuro, só precisa de um empurrão.
Era o jovem da guarda imperial que atirara no policial na cidade. Ele empunhava um longo sabre com detalhes dourados, e em seu traje havia o emblema da família imperial, uma coroa transpassada por uma espada.
— Lute! — ordenou ao jogar sua arma para mim.
A lâmina prendeu na árvore próxima a mim. Peguei-a com ódio e cortei o braço do monstro quando ele tentou me atacar da mesma forma que fizera com minha irmã. O sangue da criatura jorrou e me sujou. A besta se ajoelhou ao ver o seu braço direito, essa foi a única abertura que precisei para decapitá-la.
O sujeito começou a bater palmas em felicitações. Ele sorriu e me elogiou:
— Ótimas habilidades, a maioria tremeria de medo e seria morto pelo cranyus krampus.
Soltei a espada e comecei a chorar, botar tudo o que eu sentia para fora. Meus dois irmãos estavam mortos, como eu iria dar essa notícia para os meus pais?
— O que aconteceu aqui? O que são essas criaturas? — perguntei sem acreditar que tudo aquilo era real.
— Apenas um experimento do governo que saiu do controle, nada que já não tenha sido controlado.
O quê? Um experimento do governo? Tentei dar um soco nele, que foi hábil o suficiente para escapar do meu golpe.
— Calminha aí valentão, você pode ser o último sobrevivente, mas ainda lhe falta técnica para me acertar — zombou ele ao me empurrar no chão.
— Maldito! Como assim experimento do governo?
— Encontraram algumas criaturas congeladas durante uma perfuração de petróleo, o Império tomou para si e utilizamos o gene para criar bioarmas. Nada incrível e novo.
— Acha que vão sair impunes? Contarei para todos a verdade! — Levantei-me do chão e o encarei nos olhos.
— Sinto muito, mas você não sairá daqui. — Ele retirou uma pistola do coldre e a apontou para a minha cabeça. — Tudo não passou de uma tragédia, o vulcão entrou em erupção infelizmente e todos morreram.
Eu cuspi no rosto dele, que apenas inclinou o corpo para escapar da minha saliva.
— Ousado. Gosto disso… — disse em um tom zombeteiro. — Ouça, vou te dar uma oportunidade única, o de voltar ao zero, como se tudo fosse apenas um sonho.
— Vai me drogar e me deixar em coma?
— Não seria uma má ideia… Mas tenho planos melhores… Vou te dar uma escolha… — Ele abaixou a pistola e a entregou nas minhas mãos. — A escolha é simples, morrer nas minhas mãos ou nas suas, na primeira não haverá nada além do vazio eterno, na segunda, você acordará hoje de manhã e tudo não foi um sonho.
— Parece bom demais para ser verdade…
— Devo alertar que a segunda opção lhe dá uma dívida eterna com o governo, será obrigado a integrar as forças armadas de forma vitalícia.
— Feito… — falei sem pensar, meus planos eram de entrar no exército mesmo, não seria uma grande mudança na minha vida.
— É só atirar e tudo será como antes. — Sorriu o jovem ao cruzar os braços e esperar para ver o que eu faria.
Fechei os olhos e apontei a arma para minha própria cabeça. Apertei o gatilho, todavia não ouvi o disparo, eu apenas escutava o barulho das ondas e um fino ruído de uma música no fundo.
Havia uma fina luz que entrava nos meus olhos, mas eu ainda nos os abri de medo. Eu não estava em pé, estava deitado em algo macio e fofo. O que havia acontecido? Olhei ao meu redor e eu estava na cabine do quebra-gelo que me trouxera para a ilha.
Eu estava deitado na minha cama, confortável, minha irmã conversava com a minha mãe ao observarem o mar pela janela. Sentei com um bocejo, minha cabeça doía um pouco e eu sentia o ar me sufocando.
“Tudo fora um pesadelo? Que merda”, pensei ao gargalhar. Elas olharam para mim como se eu fosse um louco e voltaram a conversar. Chegamos ao porto de Henry Nyrzyr, e tudo permanecia calmo, natural.
Escutei um leve sussurro enquanto em caminhava no cais com as bagagens:
— Peter Rose?
— Sim? — respondi para procurar quem era.
O jovem da guarda imperial estava encostado em uma parede, vestido com roupas civis, e ao seu lado, sentado, o mesmo doberman da floresta. Com o seu típico sorriso, ele confirmou o pior.
— Você tem uma dívida com o governo, não se esqueça disso.
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