Capítulo 101 - De onde o corpo nunca saiu
O caminho até Anacostia passava por avenidas de tons diferentes por quilômetro. Em sua saída dos prédios oficiais, das cafeterias revestidas de vidro espelhado e dos bancos de mármore, Darcy seguiu por ruas que deixavam de brilhar. A pintura dos postes estava desgastada. As fachadas ganhavam cicatrizes. Nem o concreto que as construiu nem a política que as moldou tinham mãos para apagar as marcas que o tempo não apagava.
O rádio estava desligado, e o cigarro se apagou no cinzeiro. Para se lembrar daquele lugar, não precisava de trilha sonora. Tudo estava impresso em seu corpo desde o canto do olho de onde o retrovisor refletia os muros pichados àquele pequeno comércio de esquina protegido por grades mais grossas do que sua memória registrava, além do ponto de ônibus a céu aberto ao qual costumava ir sozinha e ouvir comentários indesejáveis para alguém tão jovem.
Os grafites velhos ainda estavam lá. O nome da prima continuava pintado no portão da escola, e o rosto da vizinha, no mural do beco. Pequenas marcas de quem ficou, de quem partiu antes da hora.
Estacionou o carro ao lado de uma quadra de cimento gasto delimitada por duas traves de ferro torto. As crianças chutavam uma bola furada com tênis desiguais nos pés. Nenhuma delas se virou ao notar o carro. Aquilo era muito comum para ser novidade. Darcy desligou o motor. O coração, porém, não desacelerou.
Do outro lado da rua, uma mulher idosa, sentada em uma cadeira de plástico, abanava o rosto com um pedaço de papel. Seus olhos se encontraram momentaneamente. A mulher não sorriu ou mostrou surpresa. Apenas assentiu com a cabeça.
Darcy descera do carro e passara pela mesma calçada na qual, um dia, correra descalça e caíra, esfolando os joelhos. As pedras imutáveis e imundas lá continuavam. Alguns notaram sua presença, embora ninguém a tenha abordado. O respeito ali tinha outro nome. Sabiam quem ela era e o que se tornara. De qualquer forma, esse lugar não aceitava medalhas. Quem partia e voltava precisava entender que o asfalto conhecia a diferença entre promessas e presença.
Um deles tropeçou no próprio impulso, caiu de costas e riu ao tocar o chão. A bola rolou até a calçada e parou aos pés de Darcy. Este olhou para ela. Sem se levantar, ele estendeu o braço preguiçosamente, esperando que o devolvesse.
A mulher baixou o olhar, não disse nada, apenas se agachou e pegou a bola. Suas mãos se apertaram ao redor daquele couro áspero do jeito que faziam com relatórios e armas, como se tentassem se lembrar. Em seguida, jogou a bola de volta para o garoto.
— Valeu. — disse ao pegá-la.
Dois outros garotos se aproximaram visivelmente nervosos, apesar de tentarem disfarçar. Um deles usava uma camiseta do Nationals com um buraco na lateral e um colar de miçangas coloridas batendo no queixo. O outro mascava algo e tinha olhos castanho-escuro muito atentos para a idade.
— Tu voltou, né? — disse o da camiseta.
Darcy inclinou o rosto, com as mãos nos bolsos, tentando conter um sorriso que mal nasceu e já queria sumir.
— Por pouco tempo.
O mascador riu de canto, chutou uma pedra para o meio da rua.
— Falam de ti por aí. Minha tia disse que tu é importante.
— Sua tia é exagerada.
Uma menina pequena surgiu entre os garotos. Ela tinha o cabelo preso com tiras vermelhas encardidas pelo tempo, a pele manchada de sol e olhos negros demais para a idade. Questionavam sem falar, mas ela mantinha a boca selada, acostumada a não incomodar. Ela estendeu a mão. Dentro dela, um papel amassado, com as bordas suadas. Era um desenho de Darcy, de paletó escuro e crachá no peito, cercado por estrelas tortas feitas a lápis de cera.
Darcy ficou olhando por longos segundos. Aquilo doía mais que tiro. Pegou o papel devagar, dobrou com cuidado e guardou no bolso interno do casaco.
— Bonito. Qual o seu nome?
— Tasha.
— Continua desenhando, Tasha. Um dia quem vai me ensinar é você.
A menina arreganhou um sorriso desgovernado e saiu disparada, o rastro de alegria deixando um silêncio quebradiço atrás.
Quando a vice-líder começou a andar, foi aí que começou.
— Olha só… o gremlin agora virou artista. — disse o garoto que estava com a bola, rindo com escárnio na boca e podridão nos olhos.
— Aquela ali? Ninguém aguenta o bafo daquela mina. — Outro emendou, tapando o nariz com a camiseta.
— Desenha mó feio, né? Igual ela. Parece que pegou AIDS no papel. — disse o menor deles.
— Ah, mas tu viu os dentes dela? Parece que mastigou tijolo. Aquela porra parece que dorme em caixa de papelão e toma banho de mijo.
— Deve nem ter mãe. Ou se tem, tá dando por pinga por aí.
Darcy travou os pés no chão. Seu corpo virou sozinho, puxado de dentro para fora por algo que gritava onde ninguém ouvia. Mas ouvia, sim. O grito era dela, guardado há anos, e agora voltava com gosto de sangue e poeira, rasgando o que levou tanto tempo para se manter de pé.
Andou até eles.
O riso morreu no ar antes do segundo passo. Um dos garotos se curvou, envergonhado, sem entender o motivo, com uma reação que antecipava o que a cabeça ainda não tinha processado. Outro ajeitou o boné, disfarçando a tensão com arrogância. Todos se intimidaram. Até a bola ficou parada no chão, sem dono, sabendo que aquela linha tinha sido cruzada.
Darcy parou no meio deles.
O calor interno queimava em áreas inalcançáveis. Seu estômago se revolvia com a mesma náusea de sempre, provocada pelo olhar que a tratava como algo a ser escondido. O peito dela não doía por Tasha; doía porque Tasha era ela mesma, muitos anos atrás, com o mesmo traço grosseiro, a mesma esperança ingênua de ser vista por alguém que não riria. E agora essa esperança acabara de ser pisada com a mesma crueldade já tão bem conhecida por esta.
Seu cabelo foi raspado porque o cortaram no colégio com uma tesoura. Ele usava uma blusa encardida, sentia dores de dente por falta de um dentista e tinha os olhos secos porque chorar não adiantava. Relembrou as risadas no portão pelas piadas que grudaram à sua pele como um fungo, e fingiam não ouvir os adultos que passavam.
Era a mesma história, no mesmo tom nojento, mudando apenas os nomes.
O gosto seco na garganta voltou. Exatamente como quando segurava o choro até chegar em casa por medo de ser vista. O mesmo gosto quando entendeu que o mundo não alisa o cabelo ou o coração de uma menina preta da periferia.
Gostaria de partir para cima deles, arrebentá-los e mostrar o que era vergonha de verdade. Fazer com que soubessem que, no fundo, nenhum deles era forte o bastante para aguentar metade do que ela aguentou. Essa atitude, no entanto, apenas alimentaria o mesmo ciclo do qual ela jurou fugir.
A mão se abriu, mas a fúria não saiu. Só mudou de lugar.
Os olhos dela encararam cada um deles.
Ficou parada ali, no meio deles, sem mudar o tom.
— Engraçado. Vocês têm tempo para rir dela, mas ninguém aqui me mostrou nada.
Os olhos deles se desviaram.
— Vocês sabem usar lápis? Ou só sabem usar a boca pra falar merda?
O mais novo engoliu seco. O da camiseta passou a língua nos lábios rachados
— Foi só zoeira, tia
— Zoeira é o que a gente faz com amigo. Isso foi outra coisa. Vocês não sabem nada da vida. Cresceram achando que pisar no outro é subir um degrau. Que machucar é engraçado, mas eu cresci diferente. Eu cresci sozinha ouvindo o que vocês acabaram de dizer. Só que, ao contrário de vocês, eu não precisei destruir ninguém pra me sentir gente.
Fez menção de ir embora, mas parou no meio do gesto. O olhar incisivo voltou a perfurar a superfície dos meninos. Quase dava a impressão de que o tempo desacelerou para que a lição doesse mais.
— Se algum de vocês abrir a boca de novo pra falar dela, eu volto. E juro, pelo inferno onde fui criada, que vocês vão aprender o que é medo de verdade.
Os meninos se entreolharam. Murmuraram um foi mal engasgado que Darcy nem respondeu.
A vice virou de costas e caminhou em direção à casa comunitária. O portão de ferro enferrujado ainda fazia seu som característico. Passar dali significava atravessar uma fronteira intangível que separava o mundo organizado da aparência e aquele onde as coisas respiravam fora do prumo, mas nunca paradas.
A casa comunitária ainda tinha tinta amarela nas paredes, embora o sol e o tempo já tivessem desbotado parte da cor. As telhas lascadas deixavam frestas de luz torta no chão. O calor era denso que invadia os poros, agarrava-se à pele e misturava-se ao cheiro de comida simples, sabão de barra e cansaço humano. A limpeza do local não era motivada pela estética, mas pelo respeito. Um lugar cujos moradores limpam o que têm porque ainda acreditam que o pouco que possuem merece dignidade.
Vozes se cruzavam em seu interior. Duas mulheres empilhavam alimentos em sacolas; uma delas dobrava os pacotes de arroz, a outra segurava um caderno com uma lista e riscava nomes com a ponta do dedo, enegrecido pela farinha. Mais ao fundo, um menino franzino enfileirava mochilas escolares em um canto da sala, alinhando os fechos. Seu olhar evidenciava concentração daqueles que ainda não entenderam os desígnios do mundo. Perto da janela, um rádio antigo tocava um blues. Um ventilador de chão velho girava a cabeça vagarosamente, distribuindo um vento morno por um espaço já acostumado a dividir o ar com muitos.
Darcy sentia os olhos em suas costas, desde os que carregavam respeito até os que mediam distância, questionando se a visita era um preparativo ou uma permanência. Naquele lugar, presença não era promessa, senão compromisso. Quem chega e some vira apenas mais um nome descartado no café da manhã. Para eles, quem se importa aparece. Fica e volta. Ou, pelo menos, explica por que não veio.
O cheiro da casa insistia em permanecer na roupa. Pelo visto, demoraria para sair. Talvez ela não quisesse que eu saísse tão cedo. Tinha algo no ar que fazia Darcy lembrar quem ela era antes de se tornar quem era hoje. E essa lembrança não doía. Ardia, sim. Mas, se estava queimando, era um sinal de que estava viva.
— Olha só quem deu as caras — disse uma voz vinda da porta lateral, rouca e bem humorada. — Pensei que só voltava aqui de helicóptero, depois que virasse senadora ou alguma porra dessas.
Darcy se virou para ele. Era Malik.
O mesmo corte de cabelo raspado, com entradas largas que atestavam os anos de preocupação à mercê do sol. Sua pele negra trazia ranhuras finas ao redor dos olhos que não escondiam o desgaste acumulado por anos de superação com mais garra do que recursos. Ainda assim, ele se impunha. Vestia uma camiseta desbotada dos Lakers e uma bermuda militar gasta; os tênis velhos mal aguentavam o calor do concreto. Seus braços eram largos por causa do trabalho braçal com caixas, móveis quebrados, crianças dormindo no colo, sacos de doação e fogão sem acendedor.
Darcy se lembrava de ter visto aquela tatuagem desbotada no antebraço dele sendo feita num verão de vinte anos atrás.
A barba crescia despretensiosamente, apesar de os olhos escuros ainda guardarem o mesmo olhar debochado próprio de quem nunca aprendeu a abaixar a cabeça, mesmo quando deveria.
— Acha mesmo que eu ia esquecer de onde vim, ou só está tentando me fazer sentir culpa porque desapareço de vez em quando?
— Nah. — Abriu os braços e riu-se com os dentes tortos de sempre. — Não precisa de ajuda pra sentir culpa. Tu já traz ela grudada nas costas desde que era pequena. Só tô te dando motivo novo pra carregar.
Eles se abraçaram na força inigualável de quem sobreviveu junto. Um abraço indiferente a desculpas e explicações. Apenas reafirmava o chão sob os pés.
Darcy afastou um pouco, ajeitando o cabelo no ombro.
— Como estão as coisas, Malik? Anda segurando esse lugar ainda?
— A gente segura o que dá, né. Tem dia que falta arroz. Tem dia que sobra gente pedindo. A conta nunca bate. Mas tá indo.
Se virou de leve, apontando com o queixo pro ventilador antigo que rangia mais do que girava.
— Eu tô aqui. Maria tá ali em cima com os meninos. O velho rádio ainda pega estação quando chove. Isso aqui não desmorona porque a gente teima. E, claro… — Deu uma olhada rápida para ela, esboçando um ligeiro sorriso. —, porque aquela ajuda que cê manda tem feito diferença. Tu pode fingir que não, mas eu sei que é tua assinatura ali nos depósitos. Aquela grana pagou o conserto da caixa d’água, a comida do mês passado e até o uniforme novo dos pirralhos.
Darcy abaixou o olhar, com um nó no estômago. Ele não sentia orgulho ou vergonha, apenas constatou que, mesmo de longe, ainda podia contribuir. Mesmo sem conseguir estar presente como desejava.
— Tu podia não fazer nada, Darcy. Já tem tua vida, teus problemas. Mas ainda tá aqui no meio, mesmo quando ninguém vê. E isso, porra, isso vale muito. Esse lugar só tá de pé também por tua causa. Só que o que cê tá fazendo por aqui? Achei que já tinha virado parte do lado de lá.
Darcy cruzou os braços e se encostou no batente da porta. Ela o olhou por um instante, tentando encontrar uma resposta que soasse certa, mas percebeu que talvez já a tivesse encontrado. Depois de suspirar pelo nariz e coçar o canto da sobrancelha, desviou os olhos por um segundo para o rádio chiando. O som da guitarra chorava baixinho ao fundo, entrecortado pela interferência.
— Tava com saudade. — respondeu, com vergonha da própria sinceridade. — E… sei lá. Tem coisa que a gente acha que dá pra enterrar quando vai embora, mas não dá. Fica aqui dentro, cutucando.
Malik apertou os olhos, quase sorrindo, mas não sorriu.
— Você acha que o sistema vai deixar tu mudar alguma coisa aí de dentro?
— Não acho, mas tô tentando. E isso aqui… esse lugar… me lembra o motivo.
Ele deu dois passos, parando perto de uma das colunas descascadas que sustentavam o telhado torto.
— Teve uma mina esses dias, grávida e mais dois filhos pequenos. Apareceu aqui com a cara inchada, dormindo no carro faz uma semana. A gente botou ela num colchão lá atrás, deu umas roupas dos meninos da Maria. Amanhã ela ainda vai estar aqui. E a gente ainda vai tá tentando explicar que as doações acabaram no mês passado.
Darcy apertou os lábios. As palavras de Malik batiam em lugares onde ela ainda era carne viva.
— Merda. Isso nunca muda, né?
— Nunca muda porque ninguém quer que mude. Quem manda nesse jogo não tá nem aí pra quem tá no chão. E você sabe disso, então por que tá gastando teu corpo pra tentar empurrar essa pedra morro acima?
Antes de responder, ela andou alguns passos pelo cômodo em que se encontrava e passou a mão pela beirada da mesa, cheia de marcas de cigarro.
— Porque se eu largar, sobra só gente como ela. — Olhou pra Malik. — Eu fico lá no meio daquela lama, vendo cara de político que nunca pisou na rua decidir quem come e quem não. Se eu não gritar, eles nem lembram que esse lugar existe.
Malik deu uma risada seca, balançando a cabeça.
— Aqueles filha da puta moram em outro planeta. Tão cagando se a gente come arroz ou se mastiga vento.
— Sim. — Darcy puxou a cadeira e sentou, apoiando os cotovelos no joelho. — Mas eu conheço os buracos e sei onde enfiar a unha para arrancar coisa. Tem hora que é um contrato, outra hora é uma reportagem que eu empurro pra sair, outra é um egocêntrico que eu chamo na sala e quebro no argumento até ele ceder uma verba. Eu jogo esse jogo porque, se eu sair, não sobra ninguém com coragem de olhar pra cara deles e dizer não.
Malik ficou quieto por uns segundos, passando a mão pela barba, os olhos escuros grudados nela.
— Então é isso? Tu virou essa coisa aí que não para de andar mesmo com a perna fodida? Porque eu te conheço, Darcy. Tu não era assim. Antes tu tinha raiva. Agora cê só parece… cansada.
Não tinha como negar. Estava cansada de um jeito que não saía com sono nem com cigarro. Era um cansaço que morava no osso, mas não ia entregar isso pra ele.
— Cansada eu tô desde os dezessete, Malik. Nada novo nisso.
Ele riu baixo, abanando a cabeça.
— Desde os dezessete tu só queria matar quem batia nos moleques lá fora. É engraçado como a gente envelhece.
— A diferença é que agora eu tenho poder pra acabar com eles. — disse, endireitando o corpo na cadeira.
Malik encarou ela por um tempo, dedo batendo de leve na tampa de garrafa.
— Você falando bonito assim dá até raiva, Darcy. — Ele largou a tampa na mesa e puxou uma cadeira e se sentou de pernas abertas, com o braço pendurado no encosto. — Mas e aí… já que veio lembrar quem é, vai querer ver o pessoal todo?
Darcy ajeitou o casaco e varreu as redondezas com os olhos, ouvindo o barulho de uma criança correndo lá atrás e uma TV velha transmitindo um desenho animado em volume baixo. Embora aquilo apertasse seu coração, seu rosto permaneceu calmo.
— Quero sim. Aliás… Franklin está aqui?
Questionou de forma natural, mas o ar mudou. Malik parou de mexer na tampa e ficou olhando para ela. O olhar dele não parecia surpreso, estava mais para o de quem quer evitar dar uma notícia ruim.
— Franklin? — Ele repetiu, dando uma risada seca. — Puta merda, Darcy. Faz quanto tempo que tu não aparece?
Esta estreitou os olhos. A tensão que carregava na nuca subiu rápido.
— Que foi? Fala logo, Malik.
O homem coçou a barba, desviou o olhar para o ventilador e depois a encarou de volta.
— Frank não pisa aqui faz uns três meses. Desde que arrumou aquele Charger com as rodas cromadas, sumiu no mapa. Só vejo ele quando alguém comenta que o carro tava parado na frente de algum bar lá na 83rd, ou na porra do beco atrás da loja de penhores do Rick.
Darcy sentiu o coração dar um tranco. Franklin era moleque esperto, mas sempre teve essa fome de viver rápido, quebrar as regras, sair da lama atropelando todo mundo. Ela mordeu a parte de dentro da boca, tentando não deixar a raiva subir.
— Ele tá mexendo com quem, Malik?
Ele tirou o celular do bolso da bermuda e inclinou a tela para que visse. Era um print do Instagram. A foto mostrava Franklin, magro, de pele acobreada e dentes dourados, vestido com uma camisa estampada com o monograma da Louis Vuitton de falsificação primorosa. O mesmo estava em uma calçada mal iluminada à frente de um mercado fechado, com o piso sujo e a porta de aço pichada. Na mão direita, um maço de cédulas dobradas, preso por um elástico azul; na mão esquerda, os dedos estavam curvados em um gesto de arma apontada para o lado. Na legenda, estava escrito City life, no breaks.
Atrás dele havia dois homens encapuzados com máscaras de esqui pretas, que pareciam não estar ali apenas para aparecer na foto. Um deles segurava uma garrafa de plástico transparente, que provavelmente continha lean ou álcool barato. O outro estava encostado em um Dodge Charger 6.2 sem placa, com pintura preta fosca, rebaixado e as lanternas traseiras acesas.
Darcy olhou a imagem por mais um segundo antes de devolver o olhar para Malik.
— Tem uns caras novos no bairro, gente que não cresceu aqui. Tão trazendo pó e pílula direto da costa, distribuindo pra molecada que acha bonito tirar foto com pilha de nota no Instagram. Franklin viu nisso um jeito fácil de fazer dinheiro. Tá rodando com eles. Negócio sujo, Darcy. E esses caras não tão pra brincadeira. Se alguém pisa na bola, vira estrelinha.
A vice fechou a mão devagar sobre a mesa, segurando o impulso de quebrar tudo ali com o punho.
— Esse cara sempre quis voar, mas escolheu as asas erradas.
Malik riu de canto, sem graça nenhuma.
— Ele sempre quis ser igualzinho você. Só que cê saiu pelo caminho difícil, e ele não tem essa paciência.
Ela levantou, sentindo o peso no ombro, a cabeça fervendo com mil pensamentos.
— Me passa onde eu acho ele, Malik.
— Tá achando que vai chegar lá, dar bronca, e o cara vai voltar pra cá todo arrependido? Esquece, Darcy. Esses caras que ele tá andando não tão na mesma liga que nós. São predador. E quando eles colocam a marca no pescoço de alguém, só sai com sangue.
Darcy virou pra ele, o olhar frio, mas queimando por dentro.
— Eu só quero saber onde ele tá.
Ele ficou encarando ela por uns segundos, mastigando as palavras antes de cuspir.
— Última vez que eu ouvi falar dele, tavam rodando na Congress Heights. Tem uma oficina velha lá, fachada de conserto de roda, mas dentro é só esquema. Frank tem corrido pra eles, entregando carro roubado, mexendo com peça quente. Só não vai…
Darcy virou as costas antes que ele terminasse de falar.
Passou direto pelo corredor estreito, onde uma criança rabiscava com giz roxo no chão e outra dormia enrolada num cobertor. A porta da frente estava entreaberta, a luz da rua derramava poeira pelo batente. Ela queria distância, ar nos pulmões, talvez quebrar o vidro do carro com a própria mão.
A mão que impediu sua saída não era leve, nem bruta. Só firme.
— Darcy Lorraine, tá indo pra onde com essa cara?
A voz vinha de trás do ombro esquerdo. Já sabia de quem era antes de virar.
— Maria, por favor.
Seu cabelo era raspado dos lados e trançado no topo, onde os fios dourados desbotados se destacavam. A blusa larga e esmaecida, com o logotipo da casa comunitária, escondia a força dos braços por trás dos quais já passaram panelas e crianças. Tatuagens no antebraço, cicatrizes de que ninguém se atreve a perguntar. Dava conta das tarefas administrativas, fazia a comida, pagava as contas, cuidava das crianças e mantinha a dignidade do lugar — tudo ao mesmo tempo.
Darcy soltou o ar pelo nariz. Os olhos não disfarçavam a pressa.
— Não é hora.
— E desde quando você escolhe a hora certa pra não fazer merda?
— Eu só quero resolver isso.
Maria chegou mais perto e parou bem na sua frente. Sentia-se o cheiro de lavanda e de cigarro de má qualidade. Seu olhar era o mesmo que usava da época em que Darcy fugia da escola e mentia.
— Eu te conheço e conheço também esse jeito de sair sem olhar pra ninguém. Tô vendo no teu rosto. Tá indo atrás dele, né?
— Eu não vou ficar parada enquanto ele se mete com coisa errada.
— E tu acha que correr pro meio de bandido vai resolver o quê? Vai chegar lá toda imponente, com tua roupa bonita, tua raiva bem passada, vai bater na porra toda e eles vão te servir um café e devolver o menino embrulhado?
Darcy passou a mão pelo rosto, os dedos apertando os olhos como se quisesse tirar dali o mundo inteiro.
— Eu sei o que eu tô fazendo.
— Tu acha que sabe. Mas tua cabeça tá onde? Porque tua alma tá em guerra, filha. E quando a alma grita mais alto que o juízo, a morte escuta.
— Maria… — Sua voz soou arrastada, com uma ponta de cansaço escondida entre os dentes. — Cuida da casa.
A mulher se aproximou mais. Os olhos dela estavam vermelhos pela raiva acumulada e amor que não sabia para onde correr.
— Não sou só responsável por essa casa, Darcy, eu fui responsável por ti também. Te dei banho, dei teto, dei meu último feijão pra ti comer quando tua mãe largou tudo pra correr atrás de homem podre.
Darcy fechou os olhos por um segundo, mordeu forte o lábio. O nome da mãe era coisa que ninguém falava perto dela.
— E agora tu vai sair por aí com o peito cheio de razão, achando que pode resolver tudo sozinha? — Maria chegou mais perto, tão perto que o cheiro do creme de cabelo misturado com cigarro doce preencheu o espaço entre as duas. — Tu acha que pode carregar o mundo, mas não carrega nem o próprio orgulho.
Darcy virou o rosto, endurecendo o maxilar.
— Eu não preciso do seu sermão.
— Tu precisa de juízo, Darcy. E humildade. Tá aí cheia de diploma, distintivo no peito, mas não tem coragem de olhar nos olhos de quem segurou tua mão quando mijava na cama ou manchava roupa menstruada.
— Você não sabe o que eu vi, o que eu tive que fazer, o quanto eu me fodi pra chegar onde tô.
— E tu acha que fui eu que te atrasei? Que fui eu que te ferrei?
Darcy riu, nervosa, de forma amarga.
— Eu só tô dizendo que eu consegui, e não foi porque alguém me pegou no colo. Foi porque eu aprendi a me virar sozinha. Sempre fui sozinha. Até aqui.
Maria balançou a cabeça, perplexa.
— Pois é… conseguiu. Mas olha só quem virou no caminho.
Darcy respirou fundo, e, mesmo que seus olhos marejados se recusassem a deixar cair qualquer lágrima, não havia como negar que estava comovida.
— Fica com a casa, cuida das crianças, ensina elas a rezar, sei lá, mas não me diz o que fazer.
Virou de costas antes que a mulher respondesse. Passou pelo portão, atravessou a rua sem olhar pro lado.
Maria ficou parada no mesmo lugar da entrada, sem dizer mais nada. Seu peito se inflava em vão conforme o ar se recusava a obedecer. Sua boca abriu-se como se uma resposta ainda tentasse escapar, mas não encontrou saída. Restou apenas amargura e dor, surgida no fundo e que ora a devorava por dentro.
As meninas da faxina pararam de varrer. Os meninos do pátio sentaram-se nos degraus e, mesmo sem entender direito o peso no ar, sentiram-no.
A casa respirava a ausência de Darcy com o corpo todo. O que ficou não foi só tristeza, foi algo mais duro. A dolorosa constatação de que, às vezes, quem se ama mais profundamente também fere mais intensamente.
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