Capítulo 104 - Ajudar alguém significava saber quando parar?
Antes que seu cérebro pudesse compreender totalmente o que via, Curtis sacou rapidamente sua pistola. D’Angelo agarrou o coldre no quadril esquerdo. Jordan deu dois passos para trás. Enquanto isso, Zara tirou um canivete do bolso lateral, e Lenny ficou em estado de choque, com as pupilas dilatadas e a mandíbula travada.
— Que caralho é isso? — disse Jordan. — Quem diabos deixou essa vadia entrar aqui?
Darcy nada fez, somente examinou-os um a um, analisando os seus rostos.
— Só quero falar com o Franklin.
A frase caiu como um tijolo no centro da roda. Zara apontou o canivete em sua direção à altura da cabeça.
— Tá de sacanagem? Isso é federal? Cê tá brincando com a morte entrando assim sem permissão.
— Eu entrei, e se quisesse prender alguém, já tinha feito.
Lenny mordeu o lábio inferior e olhou rapidamente para trás, esperando ver Franklin se aproximar, mas ele ainda continuava na sala, provavelmente observando tudo por meio de uma câmera escondida.
— Agora a gente recebe visita oficial? Achei que era o lado sujo da revolução. — Curtis mantinha o dedo do gatilho, pronto para disparar. — Fala logo o que quer.
— Já falei o que quero.
— Como é que cê entrou aqui? — perguntou Zara, olhando pros cantos, como se de repente tivesse percebido que o quartel tava cheio de buracos.
Darcy deu um passo à frente. O cheiro de concreto mofado se misturava ao calor do momento.
— Um tal de Wade me passou a localização. — Desviou o olhar direto para Curtis. — Uma criança do pescoço vermelho me guiou até a entrada.
O homem estreitou os olhos.
— Wade?
Todos prenderam a respiração no mesmo instante. Os olhos se encontraram. Antes que alguém pudesse explodir, Franklin interveio.
— Baixa isso. — disse ele a Curtis.
Ele hesitou, mas baixou a arma. Franklin se aproximou dela para examinar seu rosto, ombros e punhos, até que seu olhar pousou na manga da camisa.
— Tá com sangue aí. — comentou.
Sem dizer uma palavra, Darcy tirou dois objetos do bolso do calça: uma pistola compacta com o número de série riscado e uma corrente com um pesado pendente de aço, onde ainda estava preso um pedaço de carne e os jogou no chão.
Quem primeiro compreendeu o que estava acontecendo foi Zara. Ela deu dois passos lentos em direção à corrente e se agachou próxima aos dois itens.
— Isso aqui… é do Wade.
A respiração de Jordan era ofegante. Lenny olhava para a arma no chão de um modo que dava a entender que esta estava prestes a cuspir fogo. A esta altura, D’Angelo encostou-se à parede com um impropério entre os dentes.
— Tu matou ele? — Jordan perguntou.
Darcy manteve o olhar firme e não proferiu uma só palavra.
— Essa vagabunda tem sangue nas mãos e ainda quer bater papo, que que a gente tá esper…
No meio do caminho, Franklin deteve Lenny ao agarrá-lo pelo ombro e, com a outra mão, fez um gesto para que todos recuassem.
Começaram a afastar-se um a um, embora não desviassem os olhos dela. D’Angelo foi o último a dar as costas; no entanto, antes de sair, disse, com um sorriso de canto:
— Se der problema, já sabe… a gente volta, te prende, tira tua farda, faz tu gemer no canto da sala antes de explodir tua cabeça.
Franklin empurrou a porta com o ombro, entrou na sala e acenou para que Darcy o seguisse. Ele se jogou na cadeira de sua mesa, abriu a gaveta e trouxe uma garrafa de uísque pela metade. Somente cheirou a garrafa, não bebeu. Deixou-a ali, aberta. Ela se sentou à sua frente, com as pernas cruzadas e em postura ereta.
— Sabe o que é foda? A gente cresce na mesma quebrada, come o mesmo arroz grudado do centro, apanha dos mesmos polícia, vê as mesmas tiazinhas morrer de diabetes porque nunca tinha insulina no posto… e aí tu aparece aqui achando que tua vida vale mais só porque saiu limpa da lama.
— Ninguém saiu limpo, eu só escolhi não vender o que sobrou da minha alma por uma arma, Frank, mesmo com os ossos moídos. Eu ainda sou a mesma da casa em Anacostia, ainda volto lá, ainda limpo vômito de criança que passou fome porque o governo cortou verba da cozinha. Você acha que só porque eu vesti farda eu traí alguém, que virei inimiga?
Franklin deu uma risada que não chegou nos olhos. Coçou o queixo e respirou fundo.
— Tu virou parte de um esquema e por isso fala que ajuda a quebrada, mas agora cê tá sentada do lado dos que decidem quem vive. Olha, eu não escolhi a vida fácil, só cansei de ver todo mundo morrer tentando fazer tudo certo. Aqui, pelo menos, eu sei quem manda.
— E quem decide isso?
— Eu, nós, todo mundo que não quer mais comer resto de rico e ser caçado por drone igual cachorro.
— Você acha que seu grupo tá protegendo alguém só por botar uma arma na mão de uma criança de treze anos e jogar ele num tiroteio? Isso só alimenta o ciclo que a gente tentou fugir.
Franklin encostou na cadeira, jogou a cabeça pra trás e fechou os olhos por um segundo. O maxilar travado. Os dedos tamborilando de leve na borda da mesa.
— Tu fala bonito, Darcy. Sempre falou. Sempre foi a menina inteligente, que tinha esperança no bolso, dizia que dava pra ser diferente, só precisava estudar, só precisava aguentar. Mas me diz… quantos aguentaram? Quantos chegaram onde tu chegou? Cê acha mesmo que dá pra todo mundo?
— Não dá pra todo mundo, eu sei disso. — Se aproximou, encostando as duas mãos na mesa. — Mas dá pra alguém, e eu não posso aceitar que você, justo você, se conforme em ser só mais um nome que eles usam pra justificar toque de recolher. Você era uma pessoa admirável, mas tá deixando esse ódio virar bússola, e nem percebe que tão te usando igual usaram o resto.
O bufo que Franklin soltou em seguida estava mais para um suspiro do que para uma zombação. As palavras dela o magoaram. Magoaram porque vieram de dentro e o atingiram em cheio.
— E cê acha que eu me vendi pra me tornar um monstro?
— Eu acho que você está ferido. Igual eu fiquei. Igual como todo mundo ficou. Mas enquanto eu tentei costurar, você arrancou os pontos e virou essa cicatriz viva. Se enterrou nessa guerra como se morrer lutando fosse o único jeito de viver.
Ele calou-se por um longo tempo. Levantou-se, dirigiu-se para o canto da sala, tirou um maço de cigarros da gaveta e acendeu um. Deu mais uma tragada no cigarro, observando a ponta laranja brilhar na escuridão e se destacar como a única fonte de luz genuína na área.
— Lembra quando eu te ensinei a fumar? Tava chovendo naquele dia até. A luz tinha acabado no abrigo, a gente tava preso no porão com as outras crianças dormindo em volta e cê tava surtando de ansiedade porque tinha acabado de voltar da audiência com o juiz da vara juvenil.
Com um olhar de desdém dissimulado, Darcy o fitou, mas seus olhos revelavam algo diferente.
— Achei que tinha esquecido disso.
— Esquecer o quê? — Riu-se. — Tu tossindo na primeira tragada e depois jurando que nunca mais ia botar essa merda na boca. Dois dias depois tava me pedindo um cigarro no telhado do galpão.
— Eu odeio que tenha razão sobre isso até hoje. — Mordeu o lábio inferior e desviou o olhar pro chão. — Toda vez que acendo um cigarro, sua voz aparece na minha cabeça. É automático. Mesmo que o mundo esteja numa zona, cê ainda pode acender o próximo.
Franklin deu um sorriso fraco, trincado de lembrança.
— Cê tava quebrada aquele dia chorando escondida, falando que ninguém se importava se sumisse. Eu só queria te dar um respiro onde ninguém te cobrava ser forte.
— Pois é, só que você some por muitos anos, aparece liderando uma facção e acha que ainda pode me dar conselhos sobre dor.
Sem resposta. Ficou apenas olhando para as brasas em meio à trilha de fumaça e para o tempo perdido.
— Eu não achei que ia durar tanto, só fui ficando… Cada dia que passava era tipo uma aposta que eu perdia mais fundo. Quando vi, já era tarde pra pedir desculpa.
— Você pensa que é tarde, mas não é. Tarde é ver nossos parentes da comunidade falando que têm mais medo dos Sentinels do que da polícia.
— Eu sei disso. — Coçou o rosto, irritado consigo mesmo. — Porra, acordo todo dia esperando ouvir que mataram mais um dos nossos porque tão usando a nossa bandeira. E o pior é que não consigo mais controlar tudo. Começou comigo, mas virou monstro. Agora eu sou só o cara que segura a coleira pra não sair mordendo mais ainda.
Ao esfregar os olhos cansados, Darcy sentiu os efeitos de uma noite sem dormir e o peso daquela conversa. Era como retirar um curativo e perceber que a ferida continuava a sangrar.
— Eu não vim aqui pra te punir ou dar sermão, Franklin. Eu vim porque, naquela época, você era o único que entendia quando eu dizia que dava pra fazer diferente. O único que olhava pro buraco que a gente vivia e ainda via alguma saída.
Ele puxou uma tragada lenta do cigarro e soltou a fumaça.
— Acreditar cansa. — Deixou o cigarro cair e esmagou a brasa com a bota, mas a fumaça insistiu em subir, como se até ela se recusasse a morrer.
E levantou-se da cadeira, dando um passo em direção a ele. O seu olhar fixou-se no dele diretamente.
— Só por hoje, larga tudo isso e vem comigo. Me escuta. A gente pode mudar isso, mas não sozinhos, não assim, não matando mais gente.
— Fala como se fosse fácil, nega. Só que eu não tô aqui só pelo sangue, na verdade, tô porque aqui, pelo menos, eu mando no meu próprio destino. Já vi o que acontece quando a gente espera que outro cuide da nossa vida.
Ela respirou fundo, segurando a raiva na garganta.
— E eu já vi o que acontece quando a gente acha que tá controlando tudo. No fim, você só troca de coleira. Hoje você manda, amanhã alguém mais forte chega e te arranca daqui.
Com um sorriso irônico, desconfortável, Franklin desviou o olhar e pegou outro cigarro.
— Engraçado… lembra quem me ensinou a fumar? — Ela continuou. — Disse que acalmava, que ajudava a segurar a cabeça no lugar quando tudo tava desmoronando. Agora toda vez que eu acendo um, lembro de você, e sabe qual a diferença? Você largou porque quis, e eu fiquei porque precisei.
— Eu te ensinei porque queria te manter viva, não pra te ver se afogar nisso.
Antes de expirar lentamente o fumo para o ar, ele inalou profundamente, retendo-o nos pulmões.
— Sei que tu quer me salvar, mas eu já aceitei que não tem salvação pra mim desse jeito que tu imagina.
Darcy sentiu o estômago apertar. A mão dela fechou-se com força até os nós dos dedos ficarem brancos.
— Não fala como se já tivesse o fim escrito. Eu te conheci antes dessa merda toda, sei que ainda tem parte de você que não tá morta.
Entre risos brandos de desdém, Franklin encostou-se à parede a olhar para ela como uma testemunha de um momento que já tinha presenciado inúmeras vezes antes.
— Essa parte ainda importa? Darcy, tu não entende… aqui fora a gente não sobrevive com boa intenção e fé no amanhã. Aqui fora a gente sobrevive porque ou engole o mundo ou ele te mastiga vivo. Eu escolhi engolir.
— E eu escolhi não te ver virar o mesmo tipo de bicho que a gente jurou derrubar. — Deu um passo mais perto, a voz tremendo entre raiva e desespero. — Olha pra mim, caramba. Eu tô aqui, sozinha, na tua frente, arriscando minha vida pra te lembrar que tem outro jeito.
— Outro jeito… é bonito de falar, mas não paga o enterro do Wade, não põe comida na mesa dos moleque que tão comigo, não mantém a minha cabeça presa no pescoço quando outros grupos mandam o próximo recado. — Sorriu de canto e apagou o cigarro na própria camisa. — Tu sempre foi boa de fala, até quase me convenceu, só que não troco a minha guerra pela tua esperança. Não mais.
Essa última frase foi dita no tom mais frio e arrogante possível e teve o efeito de um soco que tirasse o fôlego e deixasse marcas visíveis. O coração afundou à medida que Darcy sentia cada batida ecoar a certeza de que não restava nada a dizer para derrubar a barreira que Franklin construíra à sua volta.
Controlou o impulso de responder e ficou preso na garganta. Era claro que qualquer palavra só aumentaria a distância entre eles. Desviou o olhar porque encará-lo e perceber que ele já não se via mais no reflexo dela doía mais do que queria admitir.
Assim que abriu a porta e entrou no corredor, um vento mais fresco bateu em seu rosto. Compassadamente, começou a andar. Podia ouvir, a cada passo, conversas distantes e risadas difusas, o que a fazia sentir como se estivesse passando por um lugar que não lhe pertencia mais. A fumaça de cigarro impregnava suas roupas e se misturava ao calor da conversa. Ela não sabia se queria se livrar dele ou mantê-lo como uma lembrança do que acabara de perder.
As mesmas perguntas que lhe ocorriam desde que soube que o Franklin estava além de qualquer ajuda continuavam a preocupá-la enquanto caminhava pelo corredor: até onde deveria ir? Ajudar alguém significava saber quando parar?
Gostaria de acreditar que apenas o amor e a lealdade poderiam resgatar alguém do desespero, mas o mesmo deixara claro que não via as coisas da mesma forma que ela, nem queria as mesmas coisas. O que ele afirmou quebrou algo dentro dela que nem o passar do tempo conseguiu endurecer.
Ao empurrar a porta de saída e deixar que a luz dos postes de iluminação lhe atingisse os olhos, deu por si sem mais palavras ou argumentos para a próxima vez porque, afinal, essa próxima vez talvez não existisse.
Atravessou o pátio da base, passando por fileiras de carros e motos estacionadas. O seu corpo seguia em frente, enquanto a sua mente permanecia naquela sala, sob o olhar e a voz cruéis daquela pessoa.
Chegada ao carro, ficou parada por um momento com a mão na maçaneta da porta, tomando longas e profundas inspirações para se manter forte. Dentro daquele silêncio pesado, o mundo fechava-se à sua volta com uma intensidade opressiva que tornava o ar mais denso e hostil, dificultando a sua respiração. Se ficasse ali por mais alguns segundos, sabia que perderia a pouca força que ainda lhe restava.
Ao abrir a porta, entrou e a fechou ruidosamente. Foi o suficiente para isolá-la do movimento lá fora e fazer com que sua aceleração respiratória aumentasse no espaço apertado do carro. Com os dedos trêmulos, tentou encontrar a chave. Errou a fechadura por diversas vezes, tendo a sensação de que até mesmo gestos simples se tornaram tarefas impossíveis. Viu-se à beira de uma longa e inevitável queda com o peito apertado, a garganta fechada e a visão embaçada por lágrimas contidas até o último momento.
Assim que apoiou a testa no volante, o peso que carregava durante a conversa tornou-se de repente insuportável e sentiu as mãos a apertarem-se com força, enquanto soluços fugazes escapavam. No meio do seu choro incontrolável, pensou nas últimas palavras de Franklin. Reviu cada inflexão da voz na esperança de encontrar um erro que provasse que ele ainda se importava.
Quanto mais as repetia, mais compreendia que não passavam de uma parede fria. E se ele estivesse certo em não querer ser salvo? Essa ideia a deixou ainda mais perdida, porque como se pode aceitar que alguém de quem ama escolha se afundar?
Ao entrecortar a respiração e os tremores por todo o corpo, questionou-se sobre quantas vezes tinha visto a mesma coisa acontecer com outras pessoas e como tinha prometido a si mesma que, se fosse Franklin, nunca deixaria as coisas chegarem a esse ponto. Mas eis que agora se encontrava ali, sentada num carro parado, saboreando um gosto salgado na boca juntamente com uma enervante sensação de fracasso no peito.
O celular vibrou no banco do passageiro. O nome de Arthur apareceu na tela. Antes de atender, Darcy respirou fundo, inspirando lentamente e segurando o ar pelo tempo que pôde. Em seguida, esfregou as mãos no rosto e afastou o cabelo da testa. As lágrimas estavam lá, mas recuaram diante da disciplina.
— Arthur.
— Consegui. Descobri quem vazou as informações da agência. É pior do que a gente pensava.
Ela se ajeitou no banco e endireitou a coluna.
— Quem?
Talvez Arthur esperasse uma reação mais animada da parte dela, por isso, ficou em silêncio por mais tempo do que o habitual.
— Antes de falar… o que aconteceu? Sua voz tá… estranha.
Ao se olhar pelo espelho retrovisor, viu o rosto de outra pessoa atravessar uma trincheira e regressar com as roupas surradas.
— Não é nada.
— Darcy, você tá se segurando. Eu conheço quando você tá se segurando.
Ela esfregou a testa com a base da mão.
— Tô no limite. — Soltou o ar num sopro pesado. — Eu preciso de você.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.