Capítulo 105 - Aposta no traidor
Algumas horas antes do que se passaria com Darcy, a base da força-tarefa fervilhava perante uma tensão que não se dissipava com o som constante de passos, portas abertas e teclados pressionados. Arthur estava enclausurado na sala de reuniões sob o efeito de uma rede de ligações perturbadora formada por fotografias, relatórios e anotações. O seu objetivo ao estar ali não era adivinhar, mas sim identificar o traidor. As informações divulgadas nas últimas horas tinham sido responsáveis por colocar em risco vidas, desestabilizar operações e manchar a credibilidade da organização. Já não havia margem para erro.
A imagem da organização era tão importante quanto qualquer operação no terreno, e bem sabia disso. Uma força-tarefa que atuava em todo país sobreviveu devido não só à eficácia de suas missões, mas também à narrativa que apresentava ao governo que a financiava e legitimava. Qualquer violação de segurança dava aos Estados Unidos contrários à existência da U.E.C. a oportunidade de reforçar seus argumentos sobre soberania, ao acusarem a organização de ser uma máquina intervencionista sob o pretexto da segurança nacional. A divulgação de dados estratégicos era um ato potencialmente significativo em termos geopolíticos, capaz de influenciar votos, fechar portas à cooperação e até mesmo cortar o fluxo de recursos.
A decisão de Arthur sobre a suspensão de todas as atividades na base naquele dia era bastante precipitada. Embora alguns a considerassem drástica, ele a enxergou como uma manobra para conter os danos e preservar a integridade das informações restantes. Uma organização militar, quando exposta, corre o risco tanto de enfrentar riscos operacionais quanto colapsar um contrato tácito com seus agentes de que a estrutura lhes oferece segurança. A violação desse pacto minerava a confiança interna e a legitimidade da organização aos olhos dos aliados e órgãos de supervisão.
Naquele dia, a U.E.C. estava sob enorme pressão. Por um lado, a suspensão das operações indicava uma resposta rápida e determinada; por outro, também revelava fraqueza. Essa medida poderia ser vista sob dois prismas: como uma necessidade para evitar mais danos ou como um sinal de fraqueza que poderia ser explorado por inimigos externos. Mesmo ciente disso, Arthur sabia que o custo de manter as operações diante de um traidor ativo seria exponencialmente maior.
As teorias de contraespionagem difundidas entre os oficiais de alta patente eram praticamente unânimes ao afirmarem que uma organização apenas pode ser considerada operacionalmente soberana se controlar tanto o fluxo de informações como a narrativa que a envolve. O vazamento de informação, no entanto, violou essa soberania simbólica. A U.E.C. dependia a partir de então de uma resposta estratégica, cujo primeiro passo era identificar a pessoa que violara o acordo de confidencialidade.
A questão de quem não interessava a Arthur. O traidor era, para ele, uma variável a ser isolada e neutralizada antes que pudesse causar mais danos ao sistema. Quanto mais analisava as interseções entre horários, movimentos e comunicações, mais percebia que a solução estava nos detalhes que até então tinham passado despercebidos, e não nas pistas óbvias.
Enquanto os analistas, agentes de campo, pesquisadores e outros funcionários se adaptavam à interrupção inesperada, a base comportava-se praticamente como um organismo vivo, alternando entre períodos de intensa atividade e silêncio absoluto. Na verdade, não se tratava de um silêncio total, mas sim de uma retenção coletiva de fôlego enquanto todos aguardavam para atravessar um corredor sombrio e perigoso até que Arthur desse o resultado esperado.
Na sala de reuniões, o líder de pé apoiava uma das mãos na mesa com a outra segurando uma pilha de papéis amassados. Na outra extremidade da sala, um funcionário da logística se esquivava do contato visual ao manusear a tampa de uma caneta com os dedos.
— Eu vou falar uma vez só, se tiver alguma coisa que precise sair da sua boca, esse é o momento.
O funcionário engoliu seco.
— Chefe, eu já falei tudo que…
O som estrondoso ecoou quando as folhas foram lançadas na mesa por Arthur.
— Tá me chamando de idiota? Você acha que eu suspenderia a porra da base inteira se isso fosse conversa fiada? — Deu a volta pela mesa, aproximando-se até ficar a poucos centímetros do rosto do homem. — Eu já vi gente mais dura que você confessar com menos pressão do que eu tô prestes a colocar aqui.
— E-eu não tenho nada a ver isso. — respondeu, a voz tremendo.
O puxou o colarinho da camisa do homem para a frente, fazendo com que a cadeira rangesse sob o seu peso.
— Você mexeu em rotas, alterou horários, colocou gente no escuro. Essas informações não vazam do nada. Eu quero o nome de quem te pediu pra fazer isso. Agora.
— N… não sei, só repassei os arquivos que pediram…
— Você acha que eu não percebo quando alguém tá escondendo coisa? — Deu um puxão mais forte, derrubando a caneta da sua mão. — Eu conheço esse jogo, já quebrei muito pescoço por menos.
A respiração do homem tornou-se rápida à medida que o seu rosto ganhava um tom vermelho.
— S-só recebi a ordem por mensagem…!
Arthur finalmente soltou o colarinho, mas o olhar não perdeu a intensidade. Com as mãos trêmulas, o funcionário abriu a pasta sobre a mesa e começou a retirar os documentos. Sem desviar o olhar, Arthur sabia que estava perto, mas a raiva que fervilhava em suas veias dizia que ainda não era suficiente.
Virou outra página e parou. Não tentou esconder, nem se mexeu; ficou ali, olhando para o nome como se este tivesse saltado da página e o tivesse apunhalado no peito. Arthur reparou. O seu estado não era difícil de notar pelo modo como respirava, o suor frio que lhe escorria pela testa e o ligeiro recuo do seu olhar.
— Lê pra mim. — disse,com um tom de voz grave e rastejante
O funcionário engoliu em seco e moveu os lábios num esforço para falar, que acabou por não dar em nada. A sua garganta estava bloqueada com uma sensação de ter engolido concreto. Arthur bateu com o punho na mesa e o som ecoou pela sala tal como um tiro.
— Lê, caralho!
Com um profundo suspiro, o homem disse algo que soou como um murmúrio indefinido. Já a poucos centímetros de distância, Arthur olhou para baixo e reconheceu o nome Owen Keller.
— Esse nome… — Puxou o documento, segurando-o com força. — Você tá se cagando só de ver. Não precisa me dizer por quê, já sei que tem coisa aí.
Caminhou até à cadeira, colocou as mãos nos ombros dela e apertou com força suficiente para fazer os músculos dele se renderem.
— A U.E.C. tá sangrando com ratos no nosso convés, e se você não tá ajudando a achar… tá ajudando a esconder.
Este fechou os olhos, respirou fundo, mas não disse nada. Arthur empurrou a cadeira para frente, que o fez quase cair. Arthur caminhou até a porta e parou com a mão na maçaneta.
— Sai da minha frente. Some da minha vista antes que eu mude de ideia e resolva abrir você pra ver se encontro o que tá me escondendo.
A trava foi fechada com um estampido surdo, abafando o barulho distante da base. Andou de volta à mesa e pôs a palma da mão sobre a superfície. Arthur sentiu o calor residual da ação combinado à tensão tangencial no ar.
O fracasso repetido dos interrogatórios teve um efeito mais corrosivo sobre ele do que qualquer insulto público. O problema não era apenas não conseguir respostas, mas a erosão gradual de sua própria autoridade. A liderança se define menos pelo que se comanda e mais pela capacidade de entregar resultados quando não há chances permitidas para erros.
Quanto mais portas se fechavam sem uma confissão, mais Arthur via a sombra da dúvida pairar sobre sua reputação dentro da U.E.C., e isso era mais perigoso do que qualquer ameaça externa.
Nesse contexto, a percepção de fraqueza se disseminou como veneno por toda a estrutura por ser um risco imediato em um cenário em que as alianças tendem a ser frágeis e a reputação moldava as cadeias de comando. A traição interna destruíam as operações, comprometia a confiança coletiva e fragilizava o discurso da liderança. Essa situação também abria as portas para que outros concorrem pela mesma posição.
Ao caçar um informante, Arthur sabia que estava em jogo muito mais do que isso. Proteger o eixo do poder que mantinha a organização funcionando era o que ele estava tentando fazer. Mais do que tempo perdido, cada minuto sem respostas representava um desperdício de capital político. A urgência, naquele momento, ia além da sobrevivência física das operações para abranger a manutenção de sua própria legitimidade como líder; no campo em que atuava, isso era tão importante quanto a própria vida.
Raven entrou na sala empurrando a porta com o ombro com uma a pasta de couro presa na mão esquerda.
— Cortei quem não tinha ligação direta com o setor de restauração de dados… — disse, pousando a pasta sobre a mesa. Enquanto abria o fecho metálico, levantou o olhar de relance para Arthur, um leve arqueamento de sobrancelha denunciando que vinha mais do que simples informação. — … e sobrou isso.
Espalhou algumas folhas pelo tampo, alinhando-as.
— A propósito, o Operativo de Logística que passou por mim agora pouco estava parecendo que tinha visto um fantasma. Aposto que você usou um dos seus métodos para fazê-lo falar.
Arthur folheou lentamente, como se esperasse que o nome que buscava estivesse escondido numa entrelinha, mas o primeiro que se destacou foi sublinhado com tinta azul: Owen Keller. Era o mesmo que ouvira.
— Você tem certeza de que quer apostar nisso? — perguntou, sem tirar os olhos do papel.
— Não é uma aposta. — Puxou uma cadeira para o lado dele. — Owen estava mexido depois que Laura morreu, mais do que o normal. Ele tentou acesso ao setor de segurança poucas horas depois de receber a notícia. Quando não conseguiu entrar pela via normal, foi pelo caminho mais arriscado da sessão especial de restauração de dados.
Tendo fechado a pasta, Arthur apoiou as mãos sobre ela. A sua expressão sugeria que esperava por uma reconsideração das palavras de Raven.
— Isso não prova que ele vazou nada. Pode ter sido curiosidade, ou até pânico.
— Pânico não explica ter puxado dados que só interessariam ao governo, senhor. A sequência de acessos bate com o intervalo em que as informações sumiram dos nossos servidores e, pouco depois, apareceram em canais que só o pessoal do gabinete presidencial monitora. Coincidência demais para uma pessoa que nunca lidou diretamente com esses dados.
Recostou-se na cadeira com um ligeiro rangido do encosto. Os seus olhos não desviavam da pasta na esperança de que o papel pudesse fornecer uma resposta diferente. Passou o polegar pela borda do documento, com a atenção totalmente voltada para as palavras de Raven.
— Você tem noção do tamanho da merda que tá me jogando? Eu colocar esse cara na linha de fogo não é só sobre limpar o nome da U.E.C. É sobre assinar um contrato com o inferno e assumir que eu vou ver ele arder.
— Eu não traria esse nome se não tivesse certeza. Mas… certeza mesmo, cem por cento? Ninguém tem. Só que o cheiro tá forte demais.
Arthur girou a pasta, colocando-a de frente para Raven.
— E se você tiver errada? Você já pensou nisso?
— Se eu estiver errada, eu vou pro buraco junto. — A resposta veio rápida, mas não insolente, carregada de um peso que indicava que Raven sabia muito bem onde estava se metendo. — Mas eu não tô errada.
Ao observar cada uma das suas microexpressões, Arthur manteve o silêncio por alguns segundos. Embora não fosse por raiva, ele cerrou os dedos em torno da pasta na posição de quem sabe que uma ação tem de ser inevitavelmente tomada.
— Keller, então.
Raven deu um sorriso satisfeito.
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