Capítulo 106 - Épocas inteiras de escuridão
Com uma bolsa de lona pendurada no ombro, Owen Keller atravessou o portão principal da base. O vento matinal cortejava seu rosto, mas não era a temperatura que fazia com que ele se sentisse daquela forma, e sim a gravidade do exílio a que fora condenado. A pasta de couro que ele carregava há anos, cheia de anotações, documentos e pequenos pedaços de metal que o ajudavam a pensar foi recolhida por outro funcionário horas antes. Nada dentro dela lhe pertencia mais. Restaram-lhe uma muda de roupa, dois livros gastos e um relógio analógico, que ele insistiu em manter mesmo após receber ordens para entregar todos os objetos para catalogação.
Não houve um interrogatório final nem explicações demoradas. A decisão foi simples e irrevogável e consistiu no afastamento permanente. Discretamente encoberta por um ato burocrático, a decisão tinha o peso político de uma purga. A U.E.C. precisava de proteger a sua reputação junto de aliados e rivais. A prisão de Keller significaria exposição pública e levantaria questões sobre as vulnerabilidades internas.
A expulsão manteve a questão no âmbito restrito da política institucional, permitindo manter o controle sobre a narrativa. Neste tipo de estrutura, o poder não se sustentava apenas na capacidade de agir, mas também na capacidade de decidir que histórias seriam contadas e quais seriam esquecidas.
Owen sabia disso. Por anos fez parte do grupo responsável por manter aquela máquina funcionando, cumprindo as regras, protegendo informações e limpando a bagunça dos outros. Agora, ao caminhar pelo estacionamento vazio, ele sentia o peso do que perdera sem ter tido a chance de se defender. A raiva vinha em ondas, mas, em vez de queimar, ela o congelava por dentro. Essa era uma espécie de indignação calada, que se fechava e apodrecia pela raiz.
E lembrou-se da casa em Harpers Ferry, com seus tijolos claros que precisavam ser pintados. A imagem de sua esposa surgiu diante dele aos olhos fixos, tentando enxergar um homem que não desistisse. Seu filho pequeno talvez não entendesse de política ou traição, mas perceberia a sombra de algo irremediável no comportamento do pai.
A necessidade de se justificar misturava-se com a descrença de que isso mudaria alguma coisa. Na política interna da U.E.C., a culpa não era necessariamente o resultado de provas irrefutáveis, mas sim de conveniência estratégica. A sua queda serviu como moeda de apaziguamento destinada a manter a confiança do corpo diplomático e a estabilizar a situação, sacrificando um nome.
Em suma, tornou-se um ponto final conveniente.
Entregou o crachá no portão sem olhar para o rosto do segurança. A fria catraca de metal fechou-se atrás dele pela última vez. O transporte que o levaria até à estação já o esperava. A viagem até Harpers Ferry seria longa, mas demoraria ainda mais tempo que isso para se livrar da sensação de que tudo o que tocara nos últimos anos estivesse manchado. Nem pela verdade, pois a política sempre determinou quem poderia continuar e quem deveria ser eliminado.
Seguiu pelo corredor estreito que separava o portão externo da rua. Subiu os degraus do veículo de transporte a passos largos sensíveis à aspereza do corrimão. Afundou-se no assento ao lado da janela de olhos postos na geometria cinzenta dos edifícios da cidade de Eugene, que se desfazia à medida que o veículo ganhava distância.
Os anos que passou viajando por estradas inseguras e cruzando fronteiras mal definidas o acostumaram a trabalhar com contratos que raramente apareciam nos registros oficiais. Às vezes, ele vestia o uniforme engomado de uma força de segurança privada em portos esquecidos; outras vezes, transportava armas para expedições em territórios disputados. Quando a U.E.C. apareceu em sua vida, trouxe mais do que um salário regular e ofereceu a disciplina de um uniforme, uma hierarquia clara e a sensação, ainda que frágil, de servir a um propósito maior.
Inicialmente, ele acreditava sinceramente na promessa de proteger um pacto político capaz de manter unido um país que se desintegrava devido a rivalidades antigas. Ele trabalhava com dedicação obstinada, acreditando que o distintivo que usava simbolizava mérito conquistado, até ser retirado e esquecido no fundo de uma gaveta num dia qualquer.
A paisagem foi gradualmente mudando para áreas rurais pontuadas pelo balanço rítmico das ruas estreitas de Harpers Ferry, onde vastos campos se estendiam até onde a vista alcançava. O veículo atravessou bairros em que o asfalto rachado permitia que pequenas ilhas de ervas daninhas florescessem no meio da estrada. Passou pela Shenandoah Street de onde se via a placa de um barbeiro que piscava intermitentemente e, mais adiante, a loja de instrumentos musicais empoeirada do Roland enchia as montras de guitarras como se fossem relíquias esquecidas.
O ônibus fez uma curva na Washington Street e prosseguiu até a última parada próximo à praça antiga. Ao descer, Owen pôde sentir a mudança repentina no ar, carregando o cheiro de pão fresco. À sua frente, a rua se estendia em direção à sua casa, passando pela ponte de ferro que cruzava o rio Potomac. Embora pudesse ter continuado em frente, algo o impediu. Seu olhar foi atraído pela fachada estreita da Bluebell & Ivy, uma pequena floricultura situada entre um café e uma livraria de livros usados.
A vitrine era decorada com lírios brancos de pétalas longas e hortênsias azuis, lembrando um céu de chuva. Entre os arranjos mais distantes, ramos de gérberas laranjas traziam calor ao canto empoeirado. Escapava pela porta entreaberta o som abafado de um rádio antigo com uma melodia lenta de saxofone.
Owen ficou imóvel em frente à entrada por um momento considerando que entrar poderia mudar o curso do dia e talvez aliviar o fardo que o acompanhava desde que deixou de acreditar em insígnias e promessas.
Respirou fundo, levantou o queixo e empurrou a porta devagar ao mesmo tempo que deixava o ar interior envolvê-lo pelo aroma úmido e adocicado composto por uma mistura de terra molhada e folhas cortadas.
Uma mulher de pele morena clara e cabelos grisalhos presos em um coque solto trabalhava atrás do balcão irradiando um ar de calma sugestivo de muitos anos de experiência. Suas rugas suaves adornavam o rosto como um registro de sorrisos há muito passados e invernos que já se foram. Ela usava um avental de algodão floral, com manchas de pólen um pouco por toda a peça, e suas mãos apresentavam pequenas manchas marrons nas pontas dos dedos. Ainda assim, seus movimentos eram ágeis enquanto amarrava um caule de rosa com um fio fino.
Ela levantou o olhar e o avaliou por trás dos óculos de armação fina. Um leve sorriso desenhou-se em seus lábios ao reconhecer algo em seus olhos — dor, cansaço e uma necessidade que já havia visto passar pela porta muitas vezes.
— Bom dia, meu filho. Tá procurando alguma coisa pra data especial?
Owen deu um passo à frente, ajeitando os ombros.
— Quero um buquê de lírios brancos. É pra minha esposa, Claire.
— Claire… bonito nome. — Pousou a tesoura sobre o balcão. — Aposto que ela gosta de flores elegantes. Lírios são bons pra dizer o que a gente tem dificuldade de falar.
Ele desviou o olhar para uma prateleira onde havia pequenos ramos de lavanda pendurados.
— É… Acho que seja isso.
A senhora andava entre baldes de água e cestos de flores, escolhendo um a um os lírios mais viçosos ao som do saxofone no rádio entremeado pelo barulho das pétalas roçando em suas mãos.
— Vai querer que eu amarre com fita branca ou prefere algo mais vivo?
— Branca.
Com um aceno de cabeça, ela começou a compor o buquê. Com um cuidado que transformava aquele ato simples em algo cerimonioso, foi posicionando cada flor.
— Quando meu marido era vivo, ele também comprava flores mesmo nos dias normais. Dizia que assim eu nunca esqueceria de sorrir. — comentou, amarrando a fita.
— E funcionou?
— Até hoje.
— Seu marido devia ser um homem bom.
A mulher sorriu de canto, sem tirar os olhos do laço que amarrava.
— Ele era. Nunca precisava de um motivo grande pra fazer algo bonito, e acho que é isso que deixa a falta dele mais leve. — Levantou o buquê, avaliando o resultado. — Pronto.
Owen pegou o arranjo e fechou os dedos em volta do caule. A doce senhora ainda ajeitava os caules, puxando a fita branca até que ficasse bem justa.
— Tem gente que acha bobagem gastar com coisa que morre em poucos dias.
— É, mas, no fim, tudo morre, filho. O que importa é o que a gente faz antes disso.
— Acho que… nunca tive muito disso. De comprar algo só pra fazer alguém sorrir.
A mulher deu uma leve risada.
— Não é tarde, não. O mundo já dá motivo demais pra chorar. Se puder colocar um pouquinho de cor no dia de alguém… vale a pena.
Ele olhou pro buquê outra vez, os dedos roçando na fita branca.
— Quanto deu?
— Cinquenta dólares, mas vou fingir que é trinta.
Arqueou a sobrancelha e deixou escapar um meio sorriso.
— Acho que é justo.
Enfiou a mão no bolso de trás e tirou a carteira de couro gasta nas bordas. As notas estavam dobradas uma em cima da outra, de maneira desorganizada, amarrotadas. Ele passou o polegar por cima delas, contou devagar e colocou o dinheiro sobre o balcão.
— Obrigado.
— Não me agradeça. — Empurrou o valor para gaveta. — Só não esquece… flores não são sobre o tempo que duram. São sobre o momento que criam.
Com o buquê seguro entre as mãos, a fita branca ligeiramente solta na ponta ao sabor do vento que passava pelas ruas, Owen deixou a loja. O aroma das pétalas combinava-se ao cheiro de pão recém-assado que vinha de uma padaria ao lado, e essa mistura de cheiros lhe trouxe um conforto inexplicável.
Ela caminhava com a mente dividida entre o peso da lembrança e a leveza daquele instante. Passou por um cruzamento em que o semáforo piscava amarelo e a luz refletiu no celofane do buquê, que brilhou por um instante efêmero e frágil. Um grupo de crianças corria pela calçada, rindo alto, e ele desviou reflexivamente, evitando que as flores fossem tocadas de maneira descuidada pelos cotovelos.
Passos apressados, o motor de um carro arrancando, uma conversa abafada de dois homens na esquina formavam um fundo sonoro distante, enquanto sua atenção permanecia presa ao branco impecável das fitas e ao vermelho intenso das pétalas. Conforme avançava, as ruas ficavam mais vazias e as vitrines menos iluminadas, até que restou apenas o ressoar de seus próprios passos e o farfalhar suave das flores roçando no papel.
Quando virou a última esquina, avistou à distância a fachada da casa que o tempo transformara em algo indefinido entre cinza e azul. Apertou o buquê um pouco mais com a sensação de que a fragilidade das flores poderia servir de âncora para manter algo vivo dentro de si.
Ao chegar ao portão, ele respirava fundo para encher os pulmões de ar e não deixar que a coragem evaporasse. Empurrou a madeira gasta e ouviu o rangido ecoar pelo quintal. A porta da frente estava fechada. Com o estômago embrulhado pela briga na U.E.C., ele subiu os dois degraus.
Aquela expulsão não saía de sua cabeça, mas junto vinha a teimosa ideia de que precisava fazer algo melhor do que simplesmente remoer o ocorrido.
Bateu a porta.
Do outro lado ele ouvia vozes. A deleite estranha de ouvir Claire foi imediata, mas com uma ponta de dor. Ela falava com Noah num tom que deixava claro que estava impondo ordem:
— Para de mexer nessas caixas e vai pro quarto!
O som de passos fracos se afastando pelo corredor confundia-se com o leve estalar da madeira no piso. Após um breve silêncio, durante o qual a casa inteira pareceu prender a respiração, a maçaneta começou a girar devagar.
Com a abertura da porta, um instante que suspendeu o mundo ao redor se revelou a Claire. Os seus olhos se prenderam à figura à sua frente e o ar parou de fluir naturalmente. O rosto dela se transformou em uma sucessão de nuances por ele reconhecidas como raras ao se deparar com um traço de incredulidade, surpresa muda, a pontada reconfortante de um reencontro marcado por uma alegria que hesitava em se afirmar, receando se ferir ao nascer.
— Você… voltou?
Owen estava no limiar, apoiado fora de posição junto ao buquê que destoava de tudo o que Claire lembrava dele. Aquelas flores, delicadas e vibrantes, causavam um contraste marcante em suas mãos calejadas, mas, mesmo assim, uma estranha coerência se fazia presente naquele gesto.
Ele avançou um passo, estendendo o buquê com um movimento incerto.
— Uhm… Imaginei que seria menos sufocante aparecer com isso do que continuar me afundando sozinho.
Entregando as flores, Owen percebia que o retorno não se resumia à distância física. O sorriso dela começou tímido, rompendo devagar uma barreira que o mesmo temeu não atravessar novamente por anos.
— Você não costuma trazer flores.
— Hoje me pareceu o dia certo para rasgar umas regras.
O riso baixo que ouviu era o mesmo que ele conhecia muito bem, pois sempre vinha quando o coração dela encontrava-se mais leve. Sem dizer nada, estendeu a mão e tocou suavemente os dedos dele antes de segurar o buquê. O contato foi rápido, porém o calor deixou uma marca nos dois.
Com o buquê nas mãos, Claire o olhou por alguns segundos, refletindo sobre o significado daquele momento.
— Elas são lindas, mas… Owen, tá tudo bem?
Ele respirou fundo.
— Digamos que… decidiram que não sirvo mais pra nada por lá. Me chutaram.
O sorriso que ela tinha antes desapareceu, e os seus olhos ficaram mais estreitos com uma confusão de indignação e preocupação.
— São uns idiotas. Sempre foi você quem manteve aquele lugar de pé quando tudo começava a desmoronar.
— Pois é… mas agora vão ter que aprender sozinhos. Hoje… eu só precisava estar aqui.
Por sua vez, Claire inclinou levemente a cabeça para tentar enxergar além das palavras dele. Embora não dissesse, Owen sabia que ela percebia mais do que demonstrava. Sem dizer nada por alguns segundos, ela deu um passo para o lado, abrindo passagem.
— Bem-vindo de volta, meu amor.
Assim que atravessou a soleira, o perfume fresco das flores na jarra de vidro fosco, pousada sobre a pequena mesa de canto, entremeou-se ao aroma adocicado do café que vinha da cozinha. O arranjo composto por lírios brancos e ramos de lavanda tinha mais a intenção de marcar presença do que de impressionar, como um gesto íntimo que dispensava formalidade.
— Tá cheirando bem aqui. — comentou, largando o casaco no encosto da cadeira.
— Fiz o melhor café com o que tinha, e você chegou na hora certa.
Claire deixou o buquê ao lado da jarra, onde também estava um porta-retratos de madeira escura expunha uma foto em que Owen e Claire posavam diante de um letreiro enferrujado de Route 66, e o sol queimava a estrada infinita atrás deles.
— Inclusive, você provavelmente comprou essas flores daquela senhorinha no Bluebell & Ivy, não foi?
— Aquela moça da floricultura foi gentil demais por me cobrar um preço tão barato.
Ao seguir pelo corredor, era possível ver, na parede à esquerda, um mosaico irregular de memórias que incluía uma foto do casal sorrindo no topo do mirante de Horseshoe Bend bem como outra em um dia de neve em Chicago, nos quais eles apareciam com gorros de lã, encostados um no outro.
— Ah, e passei na vendinha do Martinez. — Owen comentou. — Será que ainda deveríamos fazer um churrasco no domingo?
— Faz isso você, só quero aparecer pra comer.
— Tá, mas se não tiver salada decente, vai reclamar…
Ela deu uma risada breve, se virando de volta pra cozinha.
— Óbvio.
Uma imagem mostrava Claire segurando um mapa amarrotado no meio de um posto de gasolina perdido em algum ponto do Texas; outra mostrava Owen, ainda de barba rala, levantando um peixe recém-pescado no Lago Tahoe.
Destacando-se entre elas ficavam uma moldura maior do dia da formatura na Universidade de Georgetown, da qual Claire se formara em Ciências Políticas e Owen, em Criminologia com ênfase em Estudos de Fenômenos Anômalos. Os dois vestiam becas pretas alinhadas e seguravam os diplomas nas mãos. Atrás deles, o céu do fim da tarde filtrava um dourado profundo sobre as cúpulas históricas do campus.
— Esses dias meu irmão Eric entrou em contato comigo. — disse, enquanto mexia na cafeteira. — Ligou pra mim dizendo que tá pensando em vender o barco dele.
— Finalmente, aquele barco só servia pra beber cerveja e reclamar da vida. E nem pra isso prestava direito.
— Acho que ele cansou de pagar por um pedaço de ferrugem flutuante. Disse que o motor tá quase morrendo e que só funciona quando quer.
— Sempre fo…
De repente, o compasso das unhas batendo no chão ganhou ritmo crescentemente impaciente. A curva revelou uma explosão de energia com a aparição do husky, de pelagem densamente branca nas laterais da cabeça e do corpo, com manchas cinzentas distribuídas de maneira única sobre o dorso. Ele tinha olhos de um azul tão vivo que lembravam fragmentos de gelo sob o sol de inverno que o fitavam com uma intensidade tão humana.
O cão avançou com passadas largas de orelhas erguidas e cauda balançando de um lado para o outro. Escapou-lhe do peito um ronco de satisfação precedido por um ganido breve de saudade acumulada. Owen se abaixou sem pensar muito, convidando o animal a invadir seu espaço, e foi empurrado por ele, que espalhou o cheiro familiar de terra úmida do seu pêlo limpo.
— Aí está o meu velho Thor!
Afundou a mão no pêlo espesso ao sentir a maciez das camadas internas e o leve calor que subia da pele. Com a cabeça inclinada, o animal esperava o afago atrás das orelhas, fechando os olhos para se entregar àquele reencontro. A cauda, incansável, batia no vão do ar em ritmo constante, durante o tempo em que Owen se desconectava do mundo externo até se prender apenas ao som da respiração do cão que jamais o julgaria.
— Oh, é mesmo! Noah! — chamou Claire. — Vem cá, filho, olha quem chegou.
Pouco depois, Owen ouviu passos leves no corredor, que ganhou vida com a aproximação de Claire. Logo atrás, veio Noah como uma maré de calor da infância inundando tudo o que encontrava pela frente.
Seu cabelo estava desalinhado, o pijama amassado no corpo miúdo e um carrinho quebrado balançava em sua mão. Seus olhos, grandes e despertos, traziam a pureza cristalina da visão sem filtros e, naquele instante, o mundo inteiro era o pai.
— Papai!
O husky se afastou quando viu a criança a correr na direção deles. Owen o esperou de braços abertos, e foi um impacto firme, com as mãozinhas se fechando no tecido da jaqueta e o rosto de Noah afundado no peito.
Naquele abraço, Keller sentiu um peso leve e, ao mesmo tempo, imenso, nada parecido com um fardo, mas que lembrava a responsabilidade que vinha junto. Depois de acumular tanta dureza nos últimos dias, a pressão interna finalmente cedeu.
Ele o levantou no ar e o girou até ouvir a risada explodir.
— Tá mais pesado, rapaz! O que sua mãe anda botando na sua comida? — perguntou, fingindo esforço para sustentá-lo.
A criança riu-se mais ainda quando o pai o “derrubou” sobre o sofá.
Keller se jogou ao lado dele de mão estendida para bagunçar o cabelo do menino. Noah contra-atacou com o carrinho na tentativa de acertar o braço do pai, mas acabou preso em um abraço que o envolveu por completo. Nenhum dos dois tinha pressa em se soltar, visto que, por mais simples que fosse, aquele contato tinha o valor de um juramento de que, por mais que o mundo lá fora tentasse moldar ou corromper, aquele vínculo jamais se partiria.
— Sabe de uma coisa? — Owen o encarou de perto. — Você será uma criança mais inteligente que eu, e com certeza vai se dar muito bem!
Perto deles, Claire observava a cena sabendo que era melhor não interromper. Quando Owen levantou o olhar, houve um instante de cumplicidade não verbal entre os dois.
Aquele instante transcendia o dia de amanhã e o passado esporádico que se infiltrava pelas frestas da alma. O momento versava sobre a presença real, viva e concreta. Eram três vidas coexistindo na mesma frequência, e o tempo, que em outros contextos era impiedoso, ali se tornava maleável, permitindo que isso acontecesse.
Então, Claire respirou fundo e deixou que a cena se imprimisse nela, convencida de que momentos assim, quando bem guardados, tinham o poder de iluminar épocas inteiras de escuridão.
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