Índice de Capítulo

    O cheiro de pão torrado encheu o ar mesmo antes de eu enxergar qualquer coisa. Uma brisa quente escapava da frigideira  enquanto se misturava ao aroma de queijo derretido para trazer de volta memórias que eu já não sabia se eram reais ou fruto da minha imaginação. A cozinha brilhava com cores vivas. As paredes claras refletiam a luz do sol das janelas abertas em cada detalhe, vibrante como se alguém tivesse polido a realidade até doer os olhos.

    Minha mãe estava ocupada com algo no fogão, usando um avental com manchas de gordura há muito tempo não lavadas. Kate balançava as pernas sobre a cadeira enquanto mastigava um pedaço de torta. As duas conversavam e eu não conseguia ouvi-las. Eu via seus lábios se moverem acompanhados de gestos animados e os olhares cúmplices trocados entre uma mordida e outra, mas tudo acontecia em um mundo abafado, longe de mim.

    Tomei um gole do suco que, além de doce, era ácido e fresco. Ao engolir, algo denso e pesado, mais do que apenas fruta espremida, desceu pela minha garganta. Eu tentei falar, mas nenhuma palavra saiu. Tudo o que pude fazer foi permanecer em silêncio.

    Kate olhou para mim com aquele sorriso que costumava fazer toda a minha dor desaparecer. Só que agora algo diferente estava por trás daquele ângulo; algo me observava através de seus olhos avaliando cada batida do meu coração. Minha mãe se virou lentamente, segurando outro prato. Eu deveria me sentir em paz naquele lugar, mas, quanto mais tentava acreditar nisso, mais desconfortável eu me sentia. 

    Tudo estava bom demais para ser real. Bom demais para durar.

    O vidro refletia um brilho estranho de cor vermelha, que não provinha da luz do sol. Com um instinto que desafiava qualquer explicação lógica, segui o brilho com os olhos e descobri uma silhueta imóvel no canto da cozinha, iluminada por trás. Era alta, magra e imóvel. O seu rosto escondia-se nas sombras, apenas dois olhos vermelhos sobressaiam na escuridão incandescente como lâminas.

    Ele me encarava. Não tinha boca nem expressão, apenas um olhar que me fitava de maneira implacável. Conseguia sentir meu coração batendo cada vez mais forte e irregularmente contra as costelas. Embora não houvesse nenhuma ameaça direta, apenas presença, eu me sentia desconfortável. E, no entanto, aquela simples existência me destruía por dentro.

    Quem mais conseguia ver aquilo, além de mim? Minha mãe e Kate também conseguiam? Ou seriam apenas projeções destinadas a me distrair?

    O calor da cozinha se tornou insuportável, e o cheiro do pão derretendo sobre a chapa agora me enjoava.

    — Quem… é você? 

    Minha mãe virou o rosto devagar, sem emoção alguma, e disse:

    — Está tudo bem, querido. Coma antes que esfrie.

    As mãos dela ainda seguravam o prato, mas os dedos estavam rígidos, apertados em torno da porcelana. Não consegui desviar dos olhos vermelhos que continuavam fixos em mim.

    — Você não devia falar com ele.

    — Com quem eu… tô falando?

    A sombra deu um passo, mesmo sem haver contato, ouvi o chão ranger. Então, escutei uma voz grave, arrastada e tão baixa que me fez tremer.

    — Comigo.

    Todo o meu corpo saltou em desordem aos pulmões engolindo ar asperamente, tal qual se o oxigênio se tornara um veneno. Tudo se dissolveu em fragmentos, rasgado por uma escuridão abrupta. Ao abrir os olhos, não encontrei o calor da luz matinal, senão o metal frio de uma sala restrita. Minhas pernas e braços estavam tensos e trêmulos sob as correntes que os prendiam à parede, dolorosamente puxando a pele a cada movimento brusco.

    Gotas de suor gelado escorriam pela minha testa, mesmo sem brisa alguma. O ritmo dos meus batimentos cardíacos estava acelerado e desordenado. Respirava como um animal enjaulado, prestes a sufocar com o próprio desespero. As algemas latejavam contra meus punhos mais pela sensação de impotência que carregavam do que pelo peso.

    Quis acreditar que aquilo não passava de um resquício do sonho, mas a dor no corpo me dizia que eu estava no mundo real. Havia um gosto adverso invadindo meus sentidos até quase me deixar tonto. Como uma infiltração nas paredes internas da mente, o medo se espalhava, procurando espaço para me dominar por completo.

    Segurei a respiração pelo tempo que pude dentro de um caos que se espalhava. Estava com a sensação de que a ansiedade me arrancava o chão, cavando no estômago um vazio que se expandia sem trégua. Meus músculos estremeciam numa resistência inútil ante o inevitável controle que se me escapava. Os olhos vermelhos permaneciam gravados no fundo da minha retina para lembrar que nada ali estava sob meu domínio.

    — Foi você, não foi? — Minha voz saiu rouca. — No meu sonho… bagunçando tudo.

    Esperei que ele reagisse, que me desse alguma resposta. Nada. O silêncio se prolongou o suficiente para que meu corpo inteiro começasse a tremer de raiva, quando então a porta se abriu ruidosamente.

    A claridade cortou a penumbra do ambiente, revelando Nancy. O olhar dela percorreu primeiro as algemas, depois o meu rosto. Um misto de cansaço e firmeza transpareceu na forma como ela fechou a porta.

    — Nossa, Krynt. Te pegou feio dessa vez, né? Raven não tá aqui, então mandaram eu dar uma olhada.

    Pisquei forte, tentando recobrar alguma dignidade entre os tremores que ainda me corroíam.

    — Eu tô inteiro… só com a mente quebrada. 

    — Hah, inteiro? Olha pra você. Passou três dias jogado aqui dentro, suando, tremendo, falando sozinho. Isso não é estar inteiro, nem um pouco.

    Suas palavras feriram a camada de teimosia com a qual eu ainda me mantinha erguido por dentro. Gostaria de negar, não fosse o gosto ácido na boca e o peso no corpo por demais evidentes.

    — Ele não me larga. 

    — Sabe o que eu acho? — Ajeitou o sobretudo no ombro. — Se essa coisa aí quisesse acabar contigo, já tinha feito. O fato de você ainda tá respirando me diz que ele gosta do jogo.

    — Isso não melhora nada. — falei, baixando a cabeça. — Ser deixado pra sofrer não é liberdade. Eu só me sinto usado, tipo palco de circo.

    Ela deu um sopro pelo nariz, curvou o corpo na minha direção e apoiou as mãos nos joelhos.

    — É, eu entendo isso. Cresci vendo meu velho brincar desse jeito com todo mundo em casa. Nunca encostava a mão, mas mexia com a cabeça da gente até quebrar. E sabe o que aprendi? Nem sempre a luta é contra quem bate. Às vezes é contra quem fica te matando por dentro.

    — Seu pai? — Levantei os olhos para ela. 

    Nancy deu um meio sorriso sem graça e arqueou as costas.

    — Uhum. O miserável sempre achava um jeito de me lembrar que eu não servia pra nada. Quando saí de casa, arrumei esse emprego, achei que tava livre… mas a voz dele ficou. Ainda volta, de vez em quando. — Ela se endireitou, voltando pro seu tom habitual. — Você acha que é diferente? Esse Mephisto só achou o gancho que te prende.

    Aquela comparação me atingiu mais fundo do que eu queria admitir.

    — Então cê tá dizendo que nunca passa? Que essa voz fica rondando pra sempre?

    — Passa? Não. Mas você aprende a fazer barulho suficiente pra não ouvir tanto. Hoje eu calo a voz dele cada vez que ocupo minha cabeça com cadáveres chegando. — Deu um leve encolher de ombros. — Talvez seja a única vitória que a gente consegue.

    — Engraçado que você fala disso como se fosse rotina. Como se fosse só mais uma coisa qualquer. 

    Ao perceber que acabara de abrir uma porta que não queria, Nancy bufou, passou a mão no cabelo e desviou o olhar.

    — Eh… deixa essa porcaria pra lá. A gente não tá aqui pra falar da minha vida. O que importa é você, garoto.

    Com os dedos um pouco mais demorados do que o necessário no bolso da calça, procurando por algo pequeno, Nancy tirou uma chave. Iluminada pela luz fria da sala, a chave refletiu um brilho rápido e cortante.

    — Três dias trancado, sem saber se ia acordar sendo eu ou sendo ele… Você tem ideia do que é isso? 

    — Tenho ideia suficiente.

    Com a chave, ela aproximou-se da primeira fechadura e girou o punho aos pequenos trancos até que um estalo ecoou. Escorregando pela minha pele, o metal pesado se abriu e despencou no chão em um ruído que ressoou pelas paredes nuas.

    — Mas ficar remoendo não vai te devolver nada. — Sua mão afastou o ferro do caminho. — O que te mantém vivo agora é andar até a enfermaria, não filosofar sobre o que perdeu.

    Encaixou a chave na segunda trava quando se inclinou. O calor de sua respiração tocou meu braço; os meus cabelos desgrenhados roçaram o ombro dela. Depois de raspar contra o metal, a chave encontrou o encaixe certo. A trava girou com um movimento firme do punho. Outro clique e mais um peso morto caiu sobre o concreto.

    Finalmente livres, levantei os braços e massageei os pulsos marcados pelas algemas. Minha pele estava marcada por sulcos vermelhos dos dias em que estive preso.

    — A maneira como cê fala parece até fácil separar uma coisa da outra.

    Por baixo da sobrancelha arqueada, Nancy olhou para mim. O cansaço em seus olhos trazia mais verdade do que qualquer palavra.

    — Fácil, é? Hahah! — Soltou um riso curto, quase um escárnio. — Se tem uma palavra que não existe aqui, é essa.

    Ela se levantou e me puxou pelo braço até ficar de pé.

    — Ninguém aqui sobrevive porque é fácil. Sobrevive porque não têm opção mesmo.

    Mesmo com as pernas ainda pesadas, me apoiei nela e deixei o corpo acompanhar o ritmo do puxão. Andei ao seu lado até sairmos da sala. Diante de nós abriu-se o corredor gastado e descascado pelo atrito de botas de macas arrastadas às pressas. Vazamentos no teto e fiações expostas se cruzavam como cicatrizes abertas. 

    O toque de Nancy em meu braço era firme, longe de ser gentil, mas necessário para me manter de pé. A expressão dela voltara ao estado de neutralidade que usava como armadura. Desaparecera o riso irônico de segundos atrás.

    O corredor estreitou-se até desaguar em uma porta dupla de metal. Com o ombro, Nancy empurrou uma das folhas para abrir a passagem. As dobradiças enferrujadas chiavam de tanto uso combinado à falta de manutenção. 

    Era possível sentir o cheiro de desinfetante barato adulterado com suor velho, a mesma fragrância que nunca abandona um local de cura forçada.

    — Senta aí.

    A maca rangeu quando me acomodei. Nancy já estava de luvas e puxava uma bandeja com um estetoscópio arranhado, uma lanterna pequena e tubos para coleta. Felizmente, nada daquela máquina estranha usada no meu primeiro exame.

    — Respira fundo. — Aproximou o estetoscópio do meu peito e inclinou a cabeça para captar os ruídos internos. — Hmm… Seus pulmões estão limpos. Isso é bom.

    Em seguida, segurou meu pulso e posicionou os dedos na artéria. Fez a contagem dos batimentos em silêncio, acompanhando o movimento dos lábios. Seu cenho se franziu repentinamente, ainda que não dissesse uma palavra. Pegou uma pequena lanterna com a mão livre e direcionou a luz aos meus olhos, erguendo meu queixo.

    — Reflexo tá lento… mas tá lá. 

    — Isso quer dizer que tô melhorando ou…?

    — Quer dizer que seu corpo tá começando a aceitar ele, mas devagar demais. — Deixou a lanterna no lugar que estava. Pegou uma prancheta e rabiscou anotações rápidas. — É como colocar um motor maior num carro pequeno. Funciona, mas pode fundir a qualquer momento se não for dosado.

    Ela puxou da caixa uma seringa nova, ainda selada no plástico transparente. Com os dentes, rasgou a embalagem em seguida, descartando-a após retirar a agulha, que manteve entre os dedos com a segurança de que se segura uma ferramenta de confiança. Girou o tubo de coleta até ouvir o clique seco da conexão e conferiu duas vezes antes de se aproximar.

    — Relaxa o braço, quero ver como seu sangue tá reagindo. 

    Deixei o braço cair sobre a maca. Seus dedos enluvados pressionaram a dobra do meu cotovelo até encontrarem a artéria desejada. Inclinou a agulha em um ângulo exato, com o polegar firmando a pele, e a ponta cintilava sob a luz forte da lâmpada..

    A aplicação não foi nem rápida ou lenta demais. A pressão interna cedeu com um breve ardor na região do meu ombro.

    O tubo começou a se encher numa corrente contínua de líquido vermelho-escuro espiralando pelas paredes de vidro. 

    — Tá fluindo bem. Da outra vez, o sangue engrossou rápido, parecia querer travar a passagem. Agora não. Tá correndo normal.

    Apenas depois de encher o volume necessário foi que ela retirou a agulha rapidamente, aplicou algodão e fixou com fita adesiva prontamente. 

    — Isso é sinal de adaptação, mas não se anima demais, não. Ainda tá lenta e pode te derrubar a qualquer hora.

    Girando o frasco devagar, Nancy avaliou a coloração do sangue contra a luz branca em busca de pistas sobre sua consistência. O olhar aguçado dela era mais eficaz do que qualquer máquina utilizada da última vez.

    — Tá vendo isso? — Ergueu o tubo na minha direção. — No começo, seu corpo reagia empurrando o Mephisto pra fora. Era a maneira do seu sistema dizer que tinha um invasor ali dentro. Só que agora tá começando a aceitar a presença dele.

    Deixou o tubo de lado e retirou as luvas. 

    — Só que aceitação não é vitória, Krynt. Como te falei. — Ajeitou o material com um estalo nos dedos. — Essa adaptação significa que sua imunidade tá aprendendo a conviver com ele, não a controlar. Se seu corpo parar de negociar, o Mephisto toma o controle e você deixa de estar aqui.

    — Tá me dizendo que sou uma zona de guerra ambulante. — Cruzei os braços. — É isso que tô entendendo.

    — Não é tão simples. O risco maior é seu corpo ceder primeiro. Fígado, rins, coração… eles aguentam um tempo, mas não pra sempre. Se colapsarem antes da adaptação completa, o Mephisto vence por abandono. Por isso que eu e Mikael insistimos nesses exames. É pra saber se você vai durar mais um mês, ou se vai cair amanhã no meio de uma missão.

    — Hah, gosto da franqueza, doutora. Dá até confiança.

    — Confiança? — Deixou escapar um sopro pelo nariz. — Tá bom. Por enquanto, você tá vivo, e isso já é mais do que eu poderia garantir da última vez.

    Fiquei um tempo olhando para o teto, para a lâmpada cujo brilho se refletia no branco do esmalte da maca, o que fez com que a memória do sonho trouxesse um peso à minha garganta.

    — Tive… um sonho estranho. Eu tava em casa, na cozinha, com minha mãe e minha irmã. Tudo parecia errado, desconfortável demais…

    Nancy inclinou a cabeça com atenção no que eu dizia.

    — Aí… no canto da cozinha… tinha algo. E os olhos… tinham o mesmo brilho da cor dos olhos do Mikael.

    Por uma fração de segundo seu rosto franziu ao sentir uma hesitação, substituída por uma curiosidade um tanto estranha.

    — Humm… Não é meu campo, mas… se fosse pra arriscar umas ideias malucas, talvez seja… uma manifestação parcial da ligação entre vocês. Uma… projeção do Mephisto tentando testar limites. Ou seja um fragmento do passado da sua mãe, misturado com a energia residual de Mikael. Ou ainda… seu corpo tentando reproduzir sinais de alerta visuais que você conhece sem perceber.

    — Pera, quê?

    — É só uma suposição. Bizarramente improvável, mas dentro do impossível que a gente enfrenta. Não dá pra afirmar nada concreto. Acredito que Emilly consiga, mas ela não tá aqui.

    Me calei com um nó na garganta. Quanto mais ela falava, mais estranho se tornava o meu entendimento. A curiosidade que eu sentia deu lugar ao cansaço, e percebi que perguntar mais seria inútil.

    — Tá, deixa pra lá. — Empurrei a ideia de lado, não precisava de mais hipóteses bizarras para enlouquecer.

    Nancy voltou à bandeja, reorganizando instrumentos.

    — Por aqui nós já terminamos. Vai vestir outro uniforme, porque Nicholas e os outros tão te esperando na garagem.

    — Hã? C-como assim? 

    Um frio subiu pela minha espinha. Esperar por outros? Agora? 

    — Calma, não é o fim do mundo, mas olha o gato do refeitório, dormindo em cima da mangueira de oxigênio. Um salto e teria caos total.

    — Aqui nem gato…

    — Sem enrolação. — Ela segurou meu braço, me puxou da maca para fora da sala. — Olha, sabia que o fígado humano rende uma fortuna se extraído e preservado corretamente? Ossos também. Rins, pulmões, medula… uns bancos do mercado negro pagariam bem. Mas o coração é o que eles mais valorizam. 

    Tentei me soltar de sua pegada, mas foi em vão. Meu braço estava preso em seu aperto como se fosse um laço de ferro.

    — A córnea de uma pessoa jovem, intacta, vale quase tanto quanto um órgão interno grande. Um pulmão adulto pode ser vendido por muito mais se mantido vivo durante o transporte. Sangue tipo O é quase ouro líquido.

    Com a ansiedade cada vez maior, a estranheza do que ela falava me distraía. Minha mente tentava associar informações sobre fígado, pele e coluna, e eu me esquecia do medo do que me aguardava na garagem.

    — Ah, e nunca subestime a força de um fígado tratado com anticoagulante natural. Ele ainda consegue sobreviver dias fora do corpo sem degradação. — Passamos pela porta do elevador. Ela não esperou e empurrou-me para dentro.

    — Tá me levando à força agora… 

    — Se apressa, Nicholas não gosta de atrasos. — disse, enquanto a porta do elevador se fechava. — A ciência moderna pagaria uma fortuna por órgãos intactos de alguém adaptando a biologia de um Mephisto.

    E se fechou.

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