Índice de Capítulo

    À medida que nos dirigíamos para a cozinha, a atmosfera suspensa deu lugar ao senso pragmático. 

    O local situava-se no terceiro andar, próximo à ala oeste do edifício.

    A cozinha era equipada com bancadas centrais abastecidas com ingredientes frescos, panelas e utensílios.

    Ao lado das janelas, mesas e cadeiras convidativas criavam um espaço confortável para que os agentes pudessem comer e conversar durante os intervalos.

    Era um santuário gourmet dentro da organização, de onde emanava o companheirismo unido ao sabor de uma culinária excepcional.

    Sentados à mesa, Lewis e Rave desfrutando de um café da manhã excepcional, composto por bagels1 e panquecas quentinhas.

    — O que estão achando disso tudo? — Mikael perguntou, seus olhos indo de um para o outro.

    — Tá uma delícia!

    Sentada relaxadamente em uma das cadeiras, observei uma jovem radiante e apaixonada.

    Os olhos castanhos profundos dela irradiavam uma sabedoria que transcendia sua idade, provando que sua presença marcante superava sua juventude. Ela tinha a pele clara e o cabelo ondulado, loiro médio, que fluía como uma cascata. Com seu uniforme da força-tarefa, orgulhosamente exibia a insígnia de Agente de Campo Classe Regular, a mesma que Lewis e eu usávamos no peito.

    Com um olhar mais atento, notei uma arma embainhada em sua cintura.

    — Olha só como ele é macio e fofinho! — disse, fazendo um gesto suave de afagar o begel como se fosse um animal de estimação.

    — Haha, que ótimo! 

    Um sorriso amistoso brincava nos lábios de Mikael. 

    Raven estava sentada um pouco afastada, girando a xícara de café entre os dedos. Apesar do ambiente caloroso, ela estava alheia à conversa.

    — Você não vai comer nada? — perguntou, enquanto empurrava o prato com panquecas na direção dela.

    — Não estou com fome. — respondeu, sem desviar o olhar do café.

    — Desde quando você faz dieta?

    Um sorriso inusitado surgiu no canto dos lábios dela. Tudo indicava que, desta vez, era ela quem instigava a atmosfera e subvertia a expectativa geral.

    — Isso não importa muito, mas parece que você acertou no café da manhã como sempre. 

    Me aproximei da mesa para sentir o aroma satisfatório que emanava.

    — Uh! 

    A garota grunhiu de surpresa ao me notar, deixando escapar uma mistura de choque e descontentamento.

    — Caramba, é ele mesmo. — murmurou.

    Raven olhou-me fixamente.

    — Ainda não consigo acreditar que você optou por deixá-lo viver, Mikael. Qual foi a razão? — indagou-o, curiosa.

    — Bem… — Ele hesitou por um momento, uma expressão pensativa atravessando seu rosto, antes que a resposta emergisse. — Pode ser útil daqui para frente.

    — Não acredito que você esteja utilizando ele como uma arma.

    O ceticismo estava impregnado na voz de Raven, enquanto suas sobrancelhas arquearam em crítica.

    — Não é exatamente isso. 

    Sua voz tranquila carregava nuances de explicações que ele sabia que teria que fornecer.

    — De qualquer forma, não parece que Nicholas ou Emilly estarão lá, então seremos apenas nós.

    Lewis manteve uma expressão tensa, seus olhos oscilando entre nós, como se estivesse procurando algo invisível para os demais.

    Um motivo interno o atormentava, mas ele optava por não compartilhar.

    — Erm… Esse cara é… sinistro. Longe de mim fazer uma dupla com ele… — murmurou, sua voz um tanto retraída. Ele parecia relutante em ser ouvido.

    Mandy, ao contrário, ouviu e riu de forma despreocupada, um gesto casual e charmoso.

    — Relaxa, Lewis. Essas são só bobagens da sua cabeça quente. — provocou, com uma diversão perceptível em sua voz.

    Ela afagava as palmas das mãos pelos cabelos rubros dele, numa tentativa carinhosa de acalmá-lo.

    — Não julgue o livro pela capa. — acrescentou. — Quem sabe ele só seja um pouco excêntrico?

    Pelo grau de irritação, seu corpo esquentou e a pele dela ardeu, fazendo com que retirasse rapidamente sua mão.

    — Ai! Tô tentando te ajudar!

    Eu havia pego dois begels, minha primeira mordida revelando o talento culinário de Mikael.

    — Nossa, isso tá muito bom! 

    Raven, no entanto, tinha seus olhos fixos em mim, um olhar que parecia carregar algum significado oculto, algo que eu não conseguia decifrar.

    — Soube também que você está cuidando dele ou algo assim. — disse ela, com um tom casual, mas seus olhos transmitiam uma seriedade subjacente. — Deixa eu te dizer uma coisa.

    Levantou-se da cadeira com graça, aproximando-se de Mikael. Sua postura exibia a familiaridade que ela sentia, mas o olhar perspicaz revelava uma preocupação genuína, mesmo que ela tivesse que olhar para cima devido à diferença de altura.

    — Não podemos ignorar o fato de que nem você nem eu fomos abençoados pela sorte. — Inclinou ligeiramente a cabeça, seus olhos expressando uma mistura de consideração e seriedade. — Você representa uma das maiores ameaças ao mundo, e esse garoto pode muito bem seguir o exemplo.

    Mikael cruzou os braços, com um leve sorriso irônico aparecendo em seus lábios.

    — É engraçado como a sorte se torna uma questão relativa, não é? Quero dizer, considerando tudo o que aconteceu, a sorte pode ter nos abandonado, mas a capacidade de improvisar certamente não.

    Ele suspirou e seu olhar se distanciou por um momento antes de voltar à conversa.

    — Às vezes, é preciso tomar decisões difíceis. Fazer escolhas impopulares para o bem maior. Não posso dizer que sempre escolhi o caminho mais fácil, mas, no fim das contas, as decisões que tomamos moldam nosso destino. — Inclinou-se suavemente ao lado dela e acrescentou em um sussurro no seu ouvido: — Estou apenas tentando dar a esse garoto uma chance de fazer o seu.

    Mikael apertou levemente o ombro dela enquanto falava, reforçando seus posicionamentos e dando um toque pessoal à conversa. Raven, por sua vez, ouvia atentamente, com uma sobrancelha arqueada e um pequeno sorriso indicando que ela estava ponderando cada palavra dele.

    — Então não tem com o qu…

    Foi-lhe mostrado uma chave de uma forma quase mágica, um gesto que parecia desafiar a percepção normal. 

    O homem voltou a sua posição anterior e levou um momento para processar, apalpando seus bolsos e percebendo a falta de algo importante.

    — Eu dirijo. 

    Sua voz carregava um senso de triunfo.

    — Me pegou distraído. — admitiu, um esboço de sorriso se formando em seus lábios num leve senso de derrota.

    Raven se afastou, caminhando em direção à garagem, e o que se seguiu foi uma mistura de risadas contidas por parte de nós três.

    — Que vergonha. — comentei, olhando para os dois.

    — Né? — Ela concordou, ainda rindo.

    — Raven é assustadora. — Lewis disse, cruzando os braços com uma expressão de falso pesar. — Nunca vou entender como ela faz isso… você sabe, ser tão fria e intimidante, tipo… o tempo todo.

    — Deve ser algum gene secreto. — sugeri, colocando as mãos nos bolsos. — Não tem outra explicação.

    Lewis balançou a cabeça, pensativo, mas seu olhar brilhou com algo mais.

    — Mas, sério, tô animadasso pra essa missão. Faz tempo que não sinto aquela adrenalina.

    — Lewis, pelo amor de Deus. — A garota revirou os olhos. — Você matou quantos alvos na última missão? Dois?

    Ele ergueu um dedo.

    — Foram quatro, ok?

    — Ah, é? Porque um deles era um bichinho fraco. Não conta.

    O sorriso dela cresceu enquanto ela batia levemente no ombro dele.

    — Mata nem uma mosca direito, e tá aí todo empolgadinho como se fosse um herói de filme.

    As bochechas de Lewis ficaram vermelhas, mudando sua expressão para algo que entremeava raiva, mas que claramente era uma mistura de constrangimento e teimosia.

    — Na primeira oportunidade, eu juro que vou carbonizar esse seu rostinho, tá me entendendo, Mandy?

    A ameaça veio acompanhada de uma gesticulação exagerada, como se ele realmente pudesse conjurar fogo com as mãos.

    — Nossa, que medo. Pronto, já tô tremendo.

    Esse padrão de provocação e risadas parecia ser um componente central de sua amizade, algo que eu estava começando a entender.

    — Sem quebrar a cara do amiguinho. — disse Mikael. — A Raven deve estar lá nos esperando.


    Após pegar o elevador, chegamos ao último nível subterrâneo. Era estranho pensar que estávamos descendo para um espaço enterrado sob toda aquela arquitetura fria e imponente.

    Ao sairmos, uma série de luzes automáticas se acendeu, revelando um longo e estreito corredor. O teto era baixo em relação ao chão, com cabos expostos que serpenteavam pelas laterais, conectados a sistemas que eu provavelmente nunca entenderia.

    Seguimos pelo corredor até uma porta metálica segura por um painel eletrônico. Raven digitou rapidamente um código e a porta se abriu em um zumbido mecânico, dando acesso à garagem.

    A primeira coisa que chamou a atenção foi a sala ampla e iluminada por lâmpadas fluorescentes, cujo brilho se refletia no piso de concreto lapidado. O revestimento das paredes era de placas de metal cinza, e nelas estavam dispostos fileiras de armários e painéis digitais com a localização de cada um.

    No lado direito, uma seção inteira era destinada a veículos táticos. Estavam alinhados em fileiras perfeitas SUVs blindados, vans de transporte especial e sedãs de alta velocidade.

    O lado esquerdo era reservado para manutenção. As oficinas mecânicas ocupavam grande parte do espaço, com ferramentas organizadas em painéis magnetizados e robôs auxiliares circulando para realizar reparos. As bancadas de trabalho eram decoradas com peças desmontadas, que iam desde motores sofisticados até sistemas experimentais de camuflagem.

    Na parte de trás da garagem, uma série de salas envidraçadas abrigava os escritórios do setor de logística e transporte. Desse local, os operadores monitoravam o movimento dos veículos em tempo real por meio de monitores que exibiam rotas, condições climáticas e informações de segurança.

    Essa área tinha uma segurança ainda mais rigorosa, com guardas armados e câmeras com sensores de movimento.

    Desci ao lado de Raven, que liderava o grupo.

    Um Operativo de Logística, trajando o uniforme preto, aproximou-se de nós. Era um homem magro, mas sua postura e olhar demonstravam que ele levava seu trabalho a sério. Ele portava um tablet e parou ao lado de Raven, inclinando levemente a cabeça, como se pedisse permissão para falar.

    — Senhorita, os veículos estão prontos. Para esta viagem, recomendo algo mais espaçoso e funcional. — Apontou para um SUV brilhante na fileira da frente. — O Mercedes GLS tem espaço de sobra, suspensão ajustável e sistemas de segurança adicionais. Ideal para viagens longas e para o tipo de trabalho que vocês enfrentam.

    Raven parou, os olhos fixos no SUV por um momento.

    — Entendo, mas já decidi.

    Ela virou a cabeça em direção a um Lexus LS 460 L estacionado mais ao fundo. O sedã não era tão chamativo quanto o SUV, mas sua presença discreta e elegante se alinhava perfeitamente à personalidade dela.

    — Vou com este aqui.

    O Operativo hesitou por um segundo, olhando do Lexus para Raven.

    — A distância é considerável. E, com todo o respeito, o SUV seria uma escolha mais prática para o trajeto.

    — Minha decisão não foi prática, foi final. — disse, caminhando em direção ao Lexus, sem sequer olhar para trás.

    Eu troquei um olhar rápido com o Operativo, que apenas suspirou e deu de ombros antes de se afastar de nós.

    Automóveis de luxo, veículos blindados e até mesmo algumas motocicletas ocupavam suas posições. Entre eles, um Rolls Royce reluzia como uma joia no meio do aço bruto. O design arrojado contrastava com SUVs robustos e sedãs aerodinâmicos.

    — Carai, isso custa muito dinheiro. Como é que vocês têm isso? — perguntei, com genuína perplexidade, apontando para o carro.

    Lewis e Mikael seguiram em frente, enquanto Mandy, que estava alguns passos à frente, lançou um sorriso ligeiramente divertido por cima do ombro.

    — Nosso líder comprou. Não se impressione tanto, ainda tem mais surpresas por aqui.

    — Deve valer mais que meu rim. — falei, ainda encarando-o. — Vocês vivem muito bem aqui, né?

    Ela parou e olhou em volta, como se estivesse reunindo as palavras certas.

    — Bom… nem tudo é glamour. Grande parte desse dinheiro vai para coisas que ninguém vê. Reparar os estragos que causamos, ajudar quem ficou no caminho. E… às vezes, para missões que precisam de discrição.

    — Mas com tudo isso… — Fiz um gesto amplo para os veículos e a estrutura ao nosso redor. — Ainda parece um pouco… exagerado.

    Mikael estava parado ao lado do Lexus, encostado na porta do motorista como se não tivesse outra preocupação no mundo. Quando nos viu finalmente nos aproximando, deixou escapar um suspiro exagerado e adotou seu tom costumeiro de provocação:

    — Mandy, dá pra parar de se jogar no Krynt? Não temos tempo pra sua paquera adolescente, sabia?

    — O-o quê?! — gaguejou, as palavras saindo tão rápido que mal fizeram sentido. O rosto dela ficou rubro quanto tomate.

    Eu mal tive tempo de processar o que estava acontecendo. A risada de Mikael veio logo depois, cheia de malícia.

    — Pff! Que foi? Ficou vermelha po…

    Antes que pudesse terminar a frase, Mandy já havia sacado sua lâmina e disparado em direção a Mikael. O aço brilhou na luz fria da garagem, cortando o ar em um arco que parou a poucos centímetros do pescoço dele. Ele nem pestanejou. Continuava encostado no carro, sem tirar o sorriso irritante do rosto.

    — Às vezes você me tira do sério.

    — Bom, o que posso dizer? Tenho esse efeito nas pessoas. Agora entra logo no carro. — Inclinou a cabeça na direção do veículo, completamente despreocupado.

    Ainda fervendo de indignação, Mandy abaixou a lâmina bruscamente. A expressão dela misturava fúria e constrangimento, típica de alguém que acabara de perder um jogo sem entender as regras.

    — Tsc. — resmungou, girando nos calcanhares e indo para o banco de trás.

    Fiquei onde estava, absorvendo a cena. Era fascinante observar aquele tipo de dinâmica entre eles.

    Mikael se virou para mim. Ele apontou para o carro com o polegar.

    — Vamos, Krynt.

    — Tá, tá, já tô indo.

    Entrei no banco da frente, fechando a porta com um clique firme. Mikael logo se ajeitou no banco do motorista, lançando um olhar rápido para o espelho retrovisor para verificar Mandy, que estava afundada no assento, de braços cruzados e expressão emburrada.

    — Todo mundo confortável?— Raven perguntou.

    O motor ronronou suavemente quando ela ligou o carro.

    Próxima parada: Hill City.

    1. pequenos pães em formato de rosquinhas, frequentemente recheados com cream cheese[]
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