Capítulo 17 - Cidade da Colina II
O carro estava parado à beira da rua como um velho cão de guarda, imóvel, atento, absorto no frio da manhã e nos últimos resquícios do nevoeiro que se dissipavam sob o céu pálido de Dakota do Sul. Encostada no capô, Raven mantinha os braços cruzados e o corpo levemente inclinado para a frente, equilibrando um peso fantasma. O vento mexia sutilmente os fios soltos de seu cabelo escuro, e ela o ignorava, com os olhos fixos nas nuvens, onde buscava alguma coordenada perdida no tempo.
Ela não estava exatamente pensando, mas se lembrando de algo que preferia esquecer.
— Como é que a gente aprende a seguir em frente… com certas coisas? — murmurou, mais para si do que para o mundo.
A pergunta não tinha resposta. Restava apenas o próprio eco. Antes mesmo de ganharem força, suas palavras se desfaziam no ar, por obra do universo, que as evitava.
Um avião riscou o céu logo acima, deixando um fio de fumaça branca no azul esmaecido. Raven o seguiu com os olhos, acompanhando o movimento limpo, constante e inalcançável. Aquela trajetória previsível a fazia doer. Um destino certo, uma linha reta. Tão diferente das curvas abruptas da vida que carregava nos ombros.
— Ele disse que ia voltar. Prometeu que ia voltar. E eu… acreditei.
Fechou os olhos por um instante em uma tentativa de conter uma memória que ameaçava se derramar pelas bordas. No entanto, já era tarde. As imagens vinham uma atrás da outra e se sucediam: o brilho quente de uma casa antes do incêndio, risadas abafadas em noites seguras, mãos dadas no escuro, e depois… a fumaça, o cheiro de sangue, os gritos que não foram ouvidos a tempo.
— Se aquela noite não tivesse acontecido… — disse, com um fio de raiva contido no peito. — Talvez eu estivesse em outro lugar agora, com outra versão de mim.
Ela respirou fundo no ar denso como o de um dia de verão. Aos vinte e um anos, Raven tinha a alma de alguém mais velho. Seus olhos denunciavam isso — o cansaço não era o único sentimento, havia também um tipo de desconfiança silenciosamente presente. Era um cuidado em permitir-se sentir.
As mãos dela, cruzadas até então, se abriram. Os dedos passaram pela lateral do capô, frios, distraídos.
— Eu lembro do céu naquela época… — disse, num sussurro quebrado. — Ele era mais azul.
Seus pensamentos vagavam pelo passado. Cada fragmento era um pedaço de uma vida destruída, que poderia ter sido tão diferente.
Somente aqueles que experimentaram o peso do destino poderiam compreender a determinação e a força de aço vistas em seus olhos, ora contraídos pela intensidade das lembranças.
De qualquer forma, ela apertou os olhos por um momento por se sentir tentada a afastar as lembranças indesejadas, buscando controlar a ansiedade que ameaçava dominá-la.
— Não dá pra ficar parada.
Raven se desprendeu do capô e pôs-se de pé novamente. Seu olhar percorreu o cenário ao seu redor, explorando as possibilidades.
— Um café, talvez? — perguntou-se, como se buscasse uma resposta de si mesma. — Hill City Coffe….
Ela contemplou o letreiro do lugar, ponderando se deveria ou não ceder à tentação de um breve momento de distração.
De olhos fechados, tudo ao seu redor parou, oscilando por um instante, como se o tempo tivesse prendido o fôlego. O ar esfriou e as sombras ao seu redor se esticaram lentamente, embora não houvesse luz forte o suficiente para justificar o movimento. No início, foi sutil: uma ondulação sob os pés dela, tão imperceptível que se poderia pensar que era a própria realidade quiçá tremendo.
Raven ergueu a mão direita. De seus dedos, escorreram fios escuros, como fumaça densa entre rachaduras. Não eram apenas sombras, mas energia negativa condensada, densa e viva. Uma névoa negra tremeluzia ao redor de seu corpo, subindo pelas mangas do casaco e envolvendo-a como um véu maleável.
Seus olhos se abriram com um brilho violáceo e, ao fazer um pequeno gesto, a energia negativa circulava como uma pequena tempestade contida, assobiando suavemente, até que uma forma começou a emergir: primeiro, asas; depois, uma cabeça inclinada; em seguida, garras finas como agulhas e olhos vermelhos, incandescentes.
Um corvo. Seu corpo, porém, não era o de um pássaro comum – sua plumagem era feita da própria substância que dava forma às trevas, e suas penas eram fragmentos da energia negativa que ela extraía do mundo ao redor.
Raven estendeu o braço, e o corvo pousou com leveza sobre ele. Ela inclinou o rosto levemente em direção à criatura, quase como se trocassem um pensamento íntimo.
— Reconhecimento total. Prioridade em sinais de distorção, presença sobrenatural e alterações de campo. Vai.
A ave emitiu um som, um croc característico, e levantou voo. Subiu rapidamente, como um estilhaço de escuridão cortando o ar de um céu claro, para depois mergulhar suavemente em direção ao Hill City Coffee.
Dentro da mente de Raven, o mundo ganhava uma nova forma.
Ela enxergava de maneira diferente dos humanos. A visão do corvo era uma combinação de leitura térmica, vibrações de pressão e detecção de partículas suspensas no ar. As informações vinham em camadas sob a forma de mapas espectrográficos, que eram interpretados fluidamente. Para ela, isso surgia como contornos em tons invertidos, pulsos de calor residual ondulando por superfícies e ondas energéticas registrando o que o olho nu jamais perceberia.
A porta do estabelecimento ainda balançava levemente, embora nenhum vento a movesse. O corvo atravessou a abertura e desacelerou suavemente, planando acima do chão.
As primeiras leituras detectaram a presença de calor retido nos encostos de duas cadeiras afastadas da mesa, com marcas térmicas ainda frescas — curvas humanas. Isso indicava que alguém estivera sentado ali por, aproximadamente, cinquenta minutos. A densidade térmica remanescente mantinha-se oscilante, o que confirmava o tempo de dissipação esperado para um corpo humano comum em repouso.
“Estavam sentados juntos.”, concluiu.
O corvo pousou no corrimão da escada lateral e inclinou-se para observar o balcão. O mapeamento das reverberações no ambiente ativou uma leitura em frequências ultrabaixas, que produziu um ping inaudível ao ouvido humano. O som viajava pelo espaço e retornava com pequenas perturbações.
Um copo caído. Líquido seco escorrido. Porém, a mancha não se comportava como café. A leitura espectral detectou a presença de um composto orgânico com hemoglobina degradada.
“Sangue.”, pensou Raven, e a imagem reconstruiu-se diante de seus olhos: um borrão de impacto na borda da bancada, um corte na borda do vidro, e gotas disformes seguindo até a porta dos fundos.
O corvo bateu suavemente as asas e alçou voo, sobrevoando o caminho de saída. Durante a travessia da pequena cozinha, a ave projetou seu campo de leitura e captou variações microscópicas nas vibrações do piso, registrando pegadas evaporadas, embora deixassem marcas estruturais pela compressão da madeira. Três passos apressados, um escorregão, então o desequilíbrio. Quem estava ali não saiu ileso.
O corvo identificou um campo anômalo se dissipando do lado de fora do prédio. Era o tipo de distúrbio que somente um ser com um centro de energia instável deixaria para trás.
Não era humano, ou talvez fosse.
Raven engoliu em seco, mesmo que ninguém pudesse vê-la. Seus olhos tremiam com a sobrecarga de dados, não obstante ela mantivesse a conexão, com os joelhos firmes e a expressão neutra. Do lado de fora, parecia concentrada. Por dentro, no entanto, sua mente funcionava como um centro de análise.
O corvo subiu ao céu e descreveu um semicírculo antes de retornar em espiral lenta, concluindo o reconhecimento de um último escaneamento do telhado com marcas de fuligem concentradas e resíduos carbonizados onde não havia fogo. A assinatura energética era evidente. Mephisto. Ele deve ter estado ali, de algum lugar alto, observando. Talvez esperando por algo.
A ave retornou como viera.
Raven estendeu o braço e o corvo pousou. Num fluxo lento e escuro, dissolveu-se sobre sua pele, desaparecendo em fios de sombra que se recolheram sob sua palma.
Ainda sentia os resquícios da conexão sensorial ainda pulsando sob a pele.
Tirou do bolso o celular reserva e acendeu a tela.
— Duas e trinta e dois. Se forem mesmo os agentes, não temos tempo pra desperdiçar.
Guardou o aparelho e empurrou o corpo para frente, afastando-se do capô.
Começou a andar.
— Se fosse um ataque direto, teriam caído ali mesmo. — refletiu em voz baixa, como se organizasse os pensamentos enquanto andava.
Seus olhos varriam o entorno como se traduzissem uma linguagem muda que só ela compreendia.
A princípio, a calçada lhe pareceu comum, suja de poeira e folhas secas, mas bastou um olhar atento para perceber que um padrão estranho se escondia sob a sujeira. Havia um risco contínuo, fino e levemente curvado, que passava rente ao meio-fio. Ela se abaixou, tocou o risco com dois dedos enluvados e notou a diferença na textura.
— Isso aqui foi feito com uma coronha ou cabo de faca. — murmurou, conectando os pontos.
Observou o entorno e notou que, por trás de uma caixa de energia encostada à parede, um pano estava preso a um prego torto. Era pequeno, cinza-escuro, camuflado pela parede suja, cujas bordas apresentavam cortes verticais finos.
Ela puxou com cuidado e observou a costura.
— Técnica de extravio tático. Se cortada em três pontos assim… é sinal de risco e desvio. Significa que seguiram e evitaram confronto.
Obedecendo ao alinhamento entre a marca no chão e a faixa deixada para trás, ela atravessou a rua estreita e parou em frente a uma parede grafitada. À esquerda, uma lixeira velha e enferrujada bloqueava parcialmente uma entrada entre dois prédios. Era muito estreita para veículos, mas larga o suficiente para uma passagem.
Raven puxou a lixeira alguns centímetros. Debaixo dela, na base do cimento, uma pedrinha disposta de forma angular indicava uma linha. Direção sul.
— Eles traçaram a rota de fuga. Estavam cientes de que estavam sendo observados. Deixaram pontos cegos pra distrair quem tentasse seguir.
Ela entrou no beco. O corredor era apertado, com paredes laterais cobertas de infiltração e chão escorregadio pelo excesso de umidade. Isso, porém, não era o que a preocupava. Seus olhos estavam atentos às redondezas por entre fios soltos, pedaços de tecido presos em farpas e leves impressões na poeira que cobria os tijolos.
O cheiro mudou primeiro.
Não foi imediato, mas foi-se instalando à medida que Raven avançava para o interior daquele corredor apertado. A umidade, o mofo e a ferrugem deram lugar a um cheiro denso, adocicado demais para ser apenas sujeira acumulada. Era carne que estivera aberta durante tempo suficiente ao ponto de atrair moscas, mas que era suficientemente recente de modo a ainda exalar um calor residual.
Ela freou os passos e inclinou o corpo pra frente, olhos estreitados. Um brilho vermelho refletiu na poça de água escura à frente.
Seguindo o reflexo até a origem, ela avistou o círculo.
Era rudimentar, ao mesmo tempo muito bem feito. O sangue traçava o contorno desigual de uma figura circular, assimétrica e desenhada diretamente no passeio sujo. No centro, dois corpos nus, um homem e uma mulher, jaziam lado a lado, com os seus membros abertos, os olhos fixos no nada. Os cortes eram longos e profundos. O peito fora aberto verticalmente, as costelas separadas. O estômago estava vazio.
Raven agachou-se, apoiando o braço direito no joelho dobrado. O sangue seco nas bordas e ainda minguado no centro indicava a hora da morte: recente, talvez nas últimas duas horas.
Reparou nas marcas no chão. Dentro do círculo, delgadas linhas de sangue corriam em diferentes sentidos, formando ângulos precisos entre elas. Três vértices marcados com garras ou arestas afiadas em pontos específicos: as cabeças, os tóraxs e as barrigas inferiores dos corpos.
— Triangulação sacrificial. Vínculo energético de ancoragem…
Os corpos estavam dispostos de costas, com os membros abertos num alinhamento análogo a um eixo de simetria. E isso não era tudo. O que lhe chamou a atenção foi a rigorosidade dos cortes. O corte torácico não tinha sido feito por uma lâmina comum – o deslizamento da abertura, rente ao exterior e depois rasgando até à grade costal, apontava para uma lâmina curva, possivelmente serrilhada, o suficiente para vencer a resistência sem rasgar o tecido em ziguezague. Era uma dissecação propositada, em vez de um ataque desordenado.
— Isso aqui é uma matriz de invocação ou transferência…?
A região abdominal era oca, de contornos internos ligeiramente ressecados devido ao tempo de exposição. Os intestinos, o fígado e o estômago tinham sido completamente extraídos e não existia qualquer vestígio de laceração secundária. Isto sugeria um único acesso – direto, sem reticências. Raven olhou para os seus rostos. Ambos tinham expressões retesadas, mas não de espanto. Isso incomodava-a.
Nenhum deles tinha gritado?
Deslizou os dedos sobre as clavículas do homem. A pele em volta estava tingida de uma ligeira cor arroxeada, evidenciando um livor cadavérico precoce. Uma coisa se destacava: a ausência de hematomas externos. Nenhuma fratura, nem sequer abrasões periféricas – de onde se deduzia uma possível contenção química ou energética antes do sacrifício.
— Foram submetidos a um estado dissociativo — arriscou, afastando o cabelo colado à testa da mulher. — Então suprimiram a dor completamente.
Ela deslizou a mão pelo limite do círculo desenhado no chão, o sangue ainda úmido em alguns pontos. As linhas que partiam do centro eram finas, mas contínuas. Foram vertidas, não derramadas. Um dos canais principais saía do centro da figura feminina e encontrava uma bifurcação milimétrica com o flanco do homem.
— A junção entre os dois formam uma transmissão unificada de carga vital. — raciocinou. — Ou pelo menos é o que tentaram simular. Mas essa separação na terceira vértice… isso quebra a corrente. Intencional? Ou erro de execução?
Se deteve ali, com os olhos fixos na linha desalinhada, enquanto a mente reorganizava a cena. O erro na geometria ritualística podia ter sido uma tentativa de replicar algo que não dominavam. Ou um sinal de que o responsável estava testando um modelo novo. Isso não era um ritual aprendido, era um experimento em tempo real.
Voltou a sua atenção exclusivamente para o corpo da mulher. As costelas estavam expostas, todavia a parte inferior do abdómen conservava alguma derme. Afastou um pouco mais o braço, virando-o ligeiramente, deslizando os dedos ao longo da cintura. A textura da pele estava endurecida, não seca. A elasticidade ainda era restante. Um sinal de que a vítima não estava morta há tanto tempo quanto Raven esperava.
Desceu o olhar entre as pernas. O sangue ali não seguia o mesmo traçado ritualístico dos outros pontos. Formava um acúmulo mais denso na base da pélvis, escorrendo em direção à parte de trás das coxas. As margens vaginais apresentavam pequenas fissuras, algumas já enegrecidas pelo processo de necrose incipiente.
— O quê?
Com os olhos estreitados e o maxilar apertado, continuou a análise. As lesões internas não estavam relacionadas a nenhum corte convencional. Tinham características assimétricas, sem uma profundidade uniforme – provavelmente causadas por pressão contínua. Forçada. O estiramento dos músculos adutores e o hematoma visível no púbis complementavam o quadro.
Raven permaneceu em silêncio por um tempo. O peito subia devagar, pesado, com a sensação de que cada batida do coração ameaçava empurrar algo amargo garganta acima. Um ruído metálico retiniu de longe, possivelmente uma corrente balançando com o vento.
Ela não reagiu.
— Que horrível.
Era nojento. Não apenas pela crueldade, algo que ela já conhecia de outras missões. Aquilo que a enojava era o uso da estética ritualística para mascarar a brutalidade primitiva. Estavam tentando transformar um estupro em liturgia. E isso, para Raven, era a parte mais doentia.
Pousou a mão com cuidado sobre o quadril da mulher e deslizou a palma pela lateral da coxa. Parou de repente. A textura mudou. Um relevo áspero sob a pele morta.
Ela aproximou o rosto, franzindo a testa. Tatuagem… não, não era tinta. Era uma marca queimada – cauterização localizada, feita com instrumento de contato. O desenho saltava evidente: braços angulados, torcidos num sentido anti-horário.
— Isso é…?
Uma suástica nazista.
Raven congelou por um segundo. Seu hesitar tinha mais a ver com uma parte enterrada e inativa dentro dela do que com a dúvida em si. Um ínfimo lapso de repulsa incontrolável percorreu sua espinha.
Suas pálpebras cerraram devagar, os lábios crispados. Se levantou lentamente, encostando o ombro na parede. A umidade fria mordeu a pele exposta no pescoço. Respirou fundo. O cheiro de sangue, carne queimada e umidade pútrida empurrou um embrulho contra o estômago.
E se manteve no local.
Ficar ali, sentir e cheirar tudo, significava cravar a cena na mente. De recusar o distanciamento confortável. Era isso que a impedia de esquecer. E, se esquecesse, acabaria igual àqueles que apenas reagem depois que o horror os alcança pela porta da frente.
O olhar voltou à suástica.
Talvez alguém que estivesse ajudando. Ou pior: alguém que quisesse invocar algo maior.
Afastou-se da parede, sacudiu o ombro e ajeitou o sobretudo. Por dentro, a tensão se acomodava em lugares profundos do corpo. Não era medo e tampouco era raiva. Sentia uma lucidez incômoda, a certeza de que, no fim das contas, o verdadeiro inimigo talvez não fosse o monstro que caçavam.
Era quem o alimentava.
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