Capítulo 18 - Cidade da Colina III
Hill City não era um lugar difícil de transitar. Pequena, praticamente pitoresca — pelo menos no papel. Atravessá-la a pé deveria ser simples até a última entrada da Newton Fork Road, pois do cruzamento da Main Street com a Elm Avenue até lá levava-se vinte minutos, trinta se o cansaço te fizesse sentar no chão da calçada. Mas algo naquele fim de tarde tornava tudo mais… denso.
Cruzei a rua despreocupadamente. Não ouvi passos, motores ou qualquer sinal de movimento urbano. Os carros estacionados nas diagonais demarcadas pelo asfalto sujo pareceram esquecidos. A agência postal, a mercearia local e até mesmo o museu ferroviário estavam trancados. Não se ouviam vozes, nem fumaça de comida saindo das casas.
Os galhos nus das árvores permitiam a passagem da luz dourada do sol, que riscava as fachadas com tons amarelados. Ao caminhar pela Newton Avenue, notei que algumas casas ainda mantinham enfeites da última primavera presos nas varandas — desbotados, mas intactos. O tempo ali não parara; apenas ignorava a presença humana.
Meus passos arrastaram poeira fina pelo caminho, sob o calor brando do fim da tarde, apoiado nos ombros como um lembrete de que eu ainda estava desperto. Algo destoava daquele ambiente. A ordem das coisas estava tecnicamente preservada, mas a ausência de pessoas dava ao lugar uma densidade diferente, fazendo com que a cidade, por si só, testasse minha percepção dos lugares conhecidos.
Comecei a me perguntar se a U.E.C. não teria já levantado relatórios sobre comportamentos urbanos em áreas afetadas por alterações energéticas prolongadas. A situação ali fugia de qualquer parâmetro que eu conhecesse. Fiquei com a sensação de estar entrando em um cenário previamente ensaiado, no qual todas as pistas foram escondidas antes da minha chegada.
No fim do quarteirão, algo prendeu minha atenção na curva da Pine Drive. Não se tratava de um vulto em movimento, nem de um som fora do lugar, mas da simples presença de alguém parado, imóvel, tão fundido com a paisagem quanto ela mesma. A luz do final da tarde tocava a calçada em tons dourados sobre longas sombras, e aquela figura se encaixava no cenário como um detalhe esquecido da cidade sem propósito aparente.
Fiquei parado por alguns segundos, olhando de longe. Não consegui distinguir o rosto ou o que vestia, uma vez que uma cerca mal pintada cobria parte do corpo, que se perdia entre a luz inclinada e a cor envelhecida das casas ao redor.
Inspirei devagar. Estava sem medo, embora também não confiava naquele silêncio. Ainda não sabia quem era a pessoa ali, nem o que ela fazia naquele ponto exato de uma cidade tão quieta. Pensei nas perguntas que teria que fazer. Não podia soar impositivo. Nem ansioso. Precisava ser claro e direto, e ao mesmo tempo transmitir uma calma que eu mesmo tentava preservar.
“Pergunte sobre o básico primeiro.”, pensei. “Nome, se é morador, se notou algo fora do comum. Não mencione a U.E.C. de cara, isso assusta alguns. Começa simples, casual. Só depois mostra o distintivo.”
Conferi rapidamente se ele estava legível, limpo. Estava. Ensaiei mentalmente um tom de voz mais neutro, menos oficial, e dei três passos para frente. A cada metro vencido, minha atenção se multiplicava — olhei os pés da figura, depois as mãos, os ombros. Nenhum gesto. Nenhuma reação ao som dos meus passos.
Me aproximei até o limite razoável sem parecer invasivo, mantendo distância suficiente para não cruzar uma linha invisível que eu mesmo estabelecera. Endireitei a postura e disse:
— Oi… com licença. — falei, com a voz controlada, educada, mas atenta. — Sou funcionário da U.E.C., tô fazendo uma verificação de rotina aqui na área…
Levantei o distintivo numa altura visível, sem forçar. Tentei manter os olhos no rosto da pessoa, mas ainda estava escuro demais naquela faixa de sombra para ver qualquer expressão.
— Você notou alguma coisa estranha por aqui hoje? Alguma movimentação incomum? Tá tudo em ordem por aqui?
Esperei.
Nenhuma resposta veio. Restou apenas a figura parada à beira da calçada, aparentemente me ouvindo, mas sem intenção de interagir.
Minhas mãos se fecharam em punhos leves, com o polegar roçando a lateral do emblema como uma válvula de descarga nervosa. Eu não sabia se estava lidando com um morador pacato ou uma ameaça.
Cada detalhe desse indivíduo era uma esquisitice à parte, desde suas atitudes peculiares até sua aparência que parecia ter sido esculpida pelo próprio mistério; havia uma estranheza quase sobrenatural em sua maneira de existir, como se estivesse acima das regras que governam o cotidiano comum.
Os olhos dele, sombras profundas em meio a um rosto pálido e inexpressivo, pareciam conter segredos que o mundo jamais ousaria desvendar.
— Tá bom…
Um calafrio percorreu minha espinha quando finalmente me dei conta de que estava olhando para muito mais do que um simples indivíduo. Era como se ele fosse a personificação de uma esfera oculta da realidade, uma dimensão que poucos ousam explorar.
Assim, dei a partida para outro lugar da cidade.
Pelo que entendi, essa cidade estava diante da colisão de duas realidades diferentes.
Senti uma mistura de curiosidade e apreensão enquanto estava no desconhecido.
Esse não foi um dia típico – em vez disso, foi uma revelação, uma visão das camadas da vida que estavam ocultas.
Apenas Hill City, estática, com suas ruas de concreto gasto e casas de madeira com pintura envelhecida.
Foi então que as palavras de Mikael voltaram:
— Digamos que você e o Mephisto não são tão diferentes quanto gostaria. Pode acabar… sentindo ele por perto, antes dos outros perceberem.
Fiquei imóvel na próxima esquina, ao lado de uma caixa de correio entortada pelo tempo.
— Tá, vamos testar isso.
Fechei os olhos.
Pensei em fazer como Mikael sugerira, então fiquei ali, parado, para tentar sentir. Não com os ouvidos e nem com os olhos. Com algo diferente. Um instinto que eu mal compreendia. Respirei fundo, deixando o ar entrar devagar pelas narinas. Concentrei-me no desconforto, calor estranho no estômago e na contração involuntária do peito.
No início, nada aconteceu.
Mas então… algo mudou.
Veio como uma leve pressão atrás dos olhos, depois um zumbido baixo, como um fio de energia atravessando o corpo em espiral. As bordas do meu pensamento começaram a se abrir para uma presença diferente. Era uma direção, uma espécie de impulso que me atraía, como a sensação de estar sendo observado.
Senti algo vindo mais ao sul. Não muito longe do local onde estou. Talvez a duas ou três quadras dali. Um ponto de energia vibrando de maneira diferente do resto da cidade. Distorcido e contaminado.
Não consegui explicar como sabia disso, simplesmente sabia.
Abri os olhos. O céu estava mais alaranjado agora. Enfiei as mãos nos bolsos e voltei a andar, agora com um objetivo que não era racional, mas que eu não podia ignorar.
Mesmo desconfiado, segui o sinal.
O corpo ia à frente da razão. Toda vez que eu dava um passo, eu carregava uma dúvida, que me impedia de enxergar as coisas claramente. No entanto, existia uma força dentro de mim que me levava a agir de uma determinada maneira. Eu ainda não tinha certeza se confiava nela. No entanto, sentia que recuar agora seria um erro maior do que seguir em frente.
Cortei por uma rua lateral, passando entre dois trailers estacionados há tempo demais. As casas aqui estavam afastadas umas das outras, cada qual com seus quintais de gramado desigual e cercas mal cuidadas. As janelas fechadas. As calçadas, cobertas por folhas amareladas e galhos secos. Ninguém nas varandas. Nenhum carro ligado.
Continuei caminhando. As placas enferrujadas da Grand Avenue levaram meus passos para o sul. Ao fundo, vi o arco de entrada do parque de Hill City se desenhar entre as copas das árvores. Os portões estavam abertos. A pintura lascada do letreiro Memorial Park mal escondia os anos que carregava.
A sensação no peito aumentou ali.
Não era dor, apenas um peso. Ele se acumulava no fundo do estômago, se tornando denso. Tentei respirar calma e profundamente, embora o ar estivesse um pouco áspero, carregado de indefinido. Uma inquietação inexplicável.
Entrei.
O chão de terra batida afundava sob minhas botas, misturado a raízes esparsas pelo caminho. Ao redor, os bancos de madeira estavam vazios, alguns inclinados e com tábuas soltas. As árvores do parque projetavam longas sombras, mas o sol pálido ainda se via no céu, filtrado pelas nuvens.
Foi quando vi o balanço se movendo.
Ao me aproximar da clareira no centro do parque, avistei um garoto. Sozinho, ele balançava-se devagar, com as mãos segurando correntes finas de metal. Impulsionado pelas pernas pequenas, o corpo ia se movendo. O ranger da estrutura quebrava a imobilidade ao redor.
Meu corpo parou sem pensar. O sinal dentro de mim ficou mais forte.
— Aquilo?
Não era uma ameaça, muito menos um conforto. Eu me sentia como se estivesse entrando em um lugar onde a realidade se dobrava sutilmente — e a criatura dentro de mim percebia.
Franzi a testa.
— Ei!
O som da minha voz se espalhou no ar. O garoto virou o rosto na minha direção. Os olhos estavam abertos, atentos. Não respondeu. Ficou parado por dois segundos… depois levantou-se de um salto e disparou pelo campo aberto em direção às árvores.
— Ei, espera aí! — exclamei, já indo atrás dele. — Só quero conversar!
Mas ele não olhou para trás.
O desejo de alcançá-lo se transformou em movimento, enquanto eu começava a perseguição frenética.
As passadas nos conduziram através de um cenário onde árvores se entrelaçavam, criando sombras emaranhadas.
A criança desviou da rua para uma passagem entre duas casas.
O instinto aguçado me fez girar à esquerda, desviando habilmente de uma fruta que ele arremessara em minha direção.
— Sério? — murmurei, um sorriso leve dançando nos cantos dos meus lábios diante da sua audácia.
Mas a fruta, uma manobra de distração, me fez desviar o olhar do garoto, que agora estava na rua, dobrando à direita.
Sem perder tempo, dei um passo para trás e retomei a perseguição, contornando a casa com uma precisão calculada.
Como um orquestrador maestro, sabia que este era apenas o início do plano que já estava há muito escrito.
— Pegue–
No entanto, o que se desdobrou diante de mim era um turbilhão de eventos que desafiava a própria natureza das minhas expectativas.
A sensação gélida de um metal contra a minha palma revelou um segredo sombrio: ele carregava consigo uma arma.
Mas antes que minha mente pudesse compreender a verdade, uma dor lancinante rasgou o meu corpo.
Uma lâmina afiada e impiedosa havia perfurado meu estômago, uma agressão súbita e desumana que despedaçou qualquer vestígio de normalidade.
Ele, atônito com o desfecho trágico, retrocedeu em um movimento desajeitado, abandonando o objeto.
— Ah… porra… — As palavras escaparam dos meus lábios em meio a um gemido rouco quando meu corpo se prostrou de joelhos sobre o solo áspero. — … Por que cê tem isso…?
Minha voz tremeu em consonância com as convulsões do meu corpo, enquanto me debatia com as ondas da agonia que pareciam não ter fim.
— D-desculpe… hã… foi sem querer.
— Hah… é?
Apesar do furor da dor, com as mãos trêmulas, segurei o cabo da lâmina que perfurara meu estômago.
O ato, tão ousado quanto insensato, provocou um grito rasgado da minha garganta e me fez morder meus próprios lábios, como se buscasse suportar a dor física ao sacrificar outra forma de sofrimento.
Um gemido abafado escapou quando, com um esforço hercúleo, puxei a lâmina de volta.
Era uma sensação dilacerante, como se cada centímetro de avanço da lâmina dentro de mim deixasse uma trilha de dor insuportável.
Meu corpo arqueou sob o impacto, e eu pressionei meus lábios juntos outra vez, uma tentativa inútil de conter os sons agonizantes que escapavam.
— Nngh… merda…
— Ah, não… de novo não…
A voz do garoto soava frágil, quase quebrada, carregada de remorso e incredulidade perante o que seus próprios atos haviam desencadeado.
O cabo da faca estava úmido com o meu próprio sangue, uma lembrança cruel da ferida que havia se aberto em mim.
O sangue vermelho-vivo escorria entre os meus dedos, manchando o solo ao meu redor.
Com um esforço titânico, pressionei a minha mão contra a ferida, como se a própria pressão pudesse conter a hemorragia que ameaçava me levar embora.
— … Desculpe… E-eu… uh… preciso ir.
Enquanto se voltava para partir, imediatamente o agarrei pelo braço.
— Espera um instante, não vá embora assim.
O movimento dele congelou, sua figura esboçando uma interrogação silenciosa, uma expressão de surpresa misturada a um rastro de apreensão.
— H-hã?
— Agora cê fica aqui, não quero mais correr.
Minha mão deixou a ferida que, para meu assombro, estava cicatrizada, sem qualquer vestígio da lâmina que momentos antes havia me trespassado.
Era como se a mesma força que havia restaurado meus ossos quebrados no dia anterior também tivesse atuado para reparar o dano interno que o objeto provocara.
A criança diante de mim exibia uma mistura de perplexidade e fascinação, um olhar que denunciava a maravilha de testemunhar algo que desafiava todas as leis do mundo conhecido.
— Melhor assim.
Minha voz refletia uma calma que mascarava a tempestade de emoções que me invadia.
As feições deste eram contorcidas entre o choque e a inquietação.
Era natural que a facilidade com que um ferimento que poderia ter sido fatal fora reparado o deixasse preocupado.
— V-você não… como…
— O quê? — A resposta era enigmática, uma mescla de distância e curiosidade. — Veja bem, poderia ter sido meu fim, e tô puto por isso ainda. Mas a questão é: por que você carrega uma faca? Que tipo de problema cê tem na cabeça?
Ele hesitou por um momento, um olhar trêmulo de alguém que estava prestes a revelar um segredo obscuro.
— Não… — Ele começou a recuar lentamente. — … Não é nada. Eu só… hã… quero me manter afastado.
Percebendo que ele estava escapando, reagi instintivamente, agarrando a gola de sua camisa com força, como se essa ação pudesse prender o destino que ele estava tentando evitar.
— Tudo bem se você não quiser me contar. — O tom de voz estava carregado com uma ameaça controlada. — Posso te arrancar a resposta no murro.
A pressão nas minhas palavras era uma promessa velada de que eu estava disposto a ir aos extremos para descobrir o que ele estava escondendo.
Em situações como essa, quando nada vem fácil, o que sobra é agir sob pressão, acreditando que só assim as verdades emergiriam.
Com seu corpo trêmulo e seus olhos arregalados de medo, finalmente cedeu, sua voz ecoando como um lamento.
— Eu… matei meus pais!
O que ele disse caiu sobre mim como uma bomba, uma confissão chocante que reverberou em minha mente.
Fiquei paralisado, incapaz de formular uma resposta imediata.
A gravidade do que ele havia admitido era avassaladora, uma revelação que abalava as bases da minha compreensão da situação.
— Hein?
A confissão dele era tão chocante que eu mal conseguia articular uma resposta coerente.
— Me desculpa, me desculpa, me desculpa…
As palavras foram repetidas como um mantra, ecoando como um pedido de redenção.
Antes que começasse a explicar, sua voz misturou-se de tristeza e remorso, abrindo um olho lentamente, como se estivesse testando minha reação.
— Apareceu um homem e–
— Como assim, cacete? Que história mal contada é essa?!
A raiva se insinuou à medida que minha incredulidade deu lugar a uma indignação justificada. Era quase impossível assimilar totalmente o que ele havia acabado de revelar.
Em um impulso desesperado, eu estava prestes a ceder à vontade de agredi-lo com os punhos cerrados, mas algo dentro de mim hesitou.
— Espera! — gritou, desesperado.
Seus olhos estavam quase lacrimejantes implorando por misericórdia.
— Por favor, não me machuque! Me deixa explicar! Por favor!
A cena diante de mim era um retrato do desespero humano, um reflexo da fragilidade que todos nós carregamos, mesmo aqueles que cometem atos impensáveis.
O soltei, e ele caiu de volta para o chão.
— Tudo bem, vou ouvir o que você tem a dizer. — confirmei em tom contido, uma concessão a uma conversa necessária. — Mas se estiver mentindo, vou te encher de tapa.
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