Índice de Capítulo

    — … Ryan?

    O soco de Ryan o atingiu lateralmente no rosto acompanhado de um estalo forte. Sua visão foi tomada por um clarão branco com um zumbido insuportável nos ouvidos por um momento. O zumbido se misturou ao som do alarme do carro de fundo. Seu corpo projetou-se para trás até que seus pés dessem um rasante no asfalto molhado, antes de tropeçar e cair em uma poça de óleo sujo e água da chuva. O gosto de sangue se confundiu com o cheiro nauseabundo do lixo.

    Lágrimas de sangue quente escorriam pela testa de Mikael até a curva da pálpebra, obscurecendo sua visão. Para recuperar o fôlego entre os golpes, ele tentava regular a respiração, que subia e descia de maneira descompassada. Porém, Ryan continuava sem piedade.

    Agarrou-o pela camisa e o levantou apenas para jogá-lo de volta ao chão.

    — Diga alguma coisa, porra! — Ele puxou-o para cima novamente. Os seus olhos verdes ardiam com um ódio incontrolável que distorcia o seu rosto. — Me dá uma maldita explicação!

    Em meio à dor e ao estresse, Mikael tentou encontrar palavras. De seus lábios, porém, escapou apenas um suspiro trêmulo de alguém que mal conseguia tomar fôlego.

    Ryan não esperou.

    Outro soco. O loiro só percebeu que havia sido jogado contra a porta de um bar fechado depois de sentir o impacto; os vidros quebrados se estilhaçaram sob seu corpo. Caiu de joelhos sobre os cacos de vidro cravados em sua pele por entre as tiras de sua camisa rasgada.

    As luzes da rua piscavam na poça de sangue formada ao redor de sua boca.

    — Você me abandonou!

    Mikael cuspiu parte do sangue acumulado em sua língua. Tentou olhar para o próprio rosto por entre a névoa vermelha e cinzenta.

    — Eu… 

    Quando ele tentou novamente, Ryan o puxou para trás para impedi-lo de falar. Com o punho fechado em torno da gola de sua camisa manchada de sangue, o arrastou pelo asfalto para, em seguida, jogá-lo contra uma caixa de madeira empilhada ao lado da lixeira. As tábuas velhas racharam e quebraram devido ao seu peso e lascas se espalharam pelo chão.

    — Você não sabe o que aconteceu… Cof!— Tossiu forte.

    — Então me diz. Me diz por que diabos eu não devia te matar aqui e agora.

    Um silêncio tomou conta do lugar, trazido pelo vento frio que varria as ruas desertas. O alarme do carro finalmente parou, restando apenas o som ofegante de suas respirações aliado ao barulho constante da água da chuva escorrendo das marquises das lojas fechadas.

    Ao se levantar dificultosamente, Mikael sentiu cada ponto dolorido do corpo. A raiva de Ryan, assim como os golpes, era um peso físico sobre ele.

    Um cruzado no lado do rosto veio na forma de outro soco. Essa pancada foi o bastante para mandá-lo contra um poste de luz cujo ferro frio ricocheteou em sua cabeça. Luzes começaram a piscar em sua visão na forma de flashes fotográficos.

    Entre esses flashes, surgiu a imagem da versão anterior de Ryan, que outrora fora a sua âncora num mar de caos. Essas memórias sobrepunham-se ao momento presente que, devido ao turbilhão de dor, se encontrava distorcido. Com um pé na sarjeta cheia de água, procurou apoio em vão quando os seus músculos responderam tarde demais ao comando de se estabilizarem, e escorregou.

    Com os dedos cravados em seu ombro, Ryan o segurou e empurrou contra o poste. A energia emanada por aquele homem era tão intensa quanto uma descarga elétrica de fúria no ar.

    — Fala, caralho! Depois de tudo, tu ainda quer bancar o filho da puta frio?

    — Eu… não queria…

    — Não queria o quê, porra?! — Puxou pra perto, os olhos queimando de mágoa. — Não queria me largar lá? Não queria me deixar sangrando até apagar?

    — Eu achei que você já tava morto…

    — Ah, que conveniente pra você, né? — Largou o colarinho e Mikael despencou de joelho. — Tu só virou as costas e me deixou apodrecer lá, como se fosse nada.

    Todas as gotas de chuva perfuravam sua pele exposta como agulhas de gelo. Sob seus pés se estendia um espelho negro de asfalto e, nele, refletiam-se letreiros de néon em tons de roxo e vermelho sangue, manchando o rosto do homem à sua frente. O tempo não o havia mudado, mas o transformara. Os ossos dele estavam mais largos, as cicatrizes eram mais profundas e seus olhos não brilhavam fervorosamente mais, senão com a frieza de uma lâmina enterrada.

    Desejando dizer algo, Mikael percebeu que sua língua estava pesada como chumbo grudada no céu da boca. Já não havia tempo. A silhueta à sua frente desceu o punho esquerdo como um martelo.

    Com um movimento para trás a sombra do soco cortou o ar, por centímetros do seu queixo. Seus dedos se fecharam em torno da borda de uma lata de lixo virada, que cedeu com um rangido quando o metal se dobrou ainda mais.

    — Foge de novo, Mikael. Como daquela vez no beco dos fundos, quando você virou as costas e sumiu.

    O sangue escorria da sobrancelha aberta, misturando-se à água da chuva, escorrendo em filetes rubros até os lábios. 

    — Eu não fugi. Era você ou eu. E eu escolhi.

    O outro riu, um som seco, partido, que não saía da garganta, e sim do abismo onde rancor e traição fermentavam há anos.

    — Escolheu? — O passo seguinte foi mais um avanço do que um movimento, o corpo fechando a distância antes que o loiro pudesse reagir. — Então explica por que eu acordei num hospital com três costelas quebradas e a polícia me tratando como lixo?

    O punho direito progrediu como uma flecha, atravessando o espaço entre eles. Mikael virou o rosto, porém não de forma rápida o bastante. O impacto repercutiu em sua têmpora, inundando a visão periférica com luzes intensas. Os joelhos dele se enfraqueceram, as botas deslizaram pelo asfalto molhado, mas antes de despencar, uma bota cravou-se ao seu abdômen.

    Um jato de ar rouco escapou dos pulmões. O corpo bateu contra uma banca de jornais, com o madeiramento deteriorado cedendo com um leve balanço, e páginas úmidas de manchetes esquecidas grudando em seu rosto e vestimenta, como um manto de vergonha. 

    — Você me deixou lá! 

    Mãos cerraram seu colarinho e o arrancaram do chão com toda a força. O rosto de Ryan estava tão perto que Mikael via os vasos sanguíneos estourados nos olhos, o tremor nos lábios, uma fúria que não era apenas raiva, mas também dor.

    — Não tinha escolha! 

    — Mentira! Você teve uma. E escolheu salvar a própria pele.

    A chuva batia contra os rostos dos dois homens, escorrendo em fios frios que misturavam suor e sangue. O hálito quente de Ryan, impregnado de nicotina e raiva, se espalhava entre os respingos de água.

    — Você sempre foi assim, não é, seu filho da puta? Um vira-lata maldito, só esperando a chance de fugir com o rabo entre as pernas.

    Os músculos tensionados de Mikael protestavam contra a posição forçada, mas ele permaneceu imóvel, sentindo o peito subir e descer em respirações pesadas. 

    — Eu me ferrei por sua causa! Enquanto isso, onde você estava? Sumido! Se escondendo feito o rato que você sempre foi!

    O aperto aumentava conforme as palavras eram ditas, o pulso firme e violento, segurando-o como se quisesse esmagá-lo ali mesmo. O que realmente fez sua mandíbula travar, porém, foi a fúria crua nos olhos de Ryan. Não era só rancor, nem só ressentimento. Era um desejo real de acertar as contas.

    — Eu fui um idiota de confiar em você. Desde o começo, naquela merda de facção, eu devia ter visto. — O puxou para frente e o jogou de volta contra a banca destroçada, fazendo a madeira velha ranger. — Você sempre teve esse olhar de traidor, sempre esperando o momento certo para correr quando as coisas azedassem.

    Os dedos de Mikael deslizaram sutilmente pela cintura, encontrando algo oculto sob o casaco empapado.

    — Cale a boca.

    Foi um aviso, uma ameaça baixa e contida, mas Ryan apenas riu, um som rouco e cruel, misturado ao trovão distante.

    — O que foi? A verdade dói? — Ele aproximou o rosto ainda mais, próximo o suficiente para Mikael sentir o cheiro forte de álcool misturado à fumaça impregnada na jaqueta de couro. — Você é um lixo sem lealdade nenhuma. Um merda. E eu devia ter te matado naquela noite.

    O tempo parou.

    O mundo se moveu em câmera lenta quando Mikael puxou uma pistola. O peso da arma se acomodou em sua mão como um velho conhecido, uma lembrança metálica do passado que tentara enterrar, mas que voltava a rugir dentro dele, faminto. Aquele objeto frio e letal nunca o havia abandonado de fato. Ele sempre esteve ali, esperando o momento certo para ressurgir.

    O dedo pressionou o gatilho antes mesmo de sua mente processar a decisão.

    O estampido cortou a noite.

    O clarão iluminou os rostos dos dois por um breve segundo.

    O silêncio após o segundo disparo foi mais intenso do que o barulho do disparo em si. Havia uma sensação de que o mundo estava prendendo a respiração, como se a noite estivesse testemunhando o desenrolar de algo inevitável.

    Ao ver a pistola em sua mão, sentiu como se o universo inteiro se contraísse em um único momento, preso entre o passado e o presente. O metal frio se moldou à sua mão como uma extensão do seu corpo, uma lembrança de conflitos passados que nunca o abandonaram. A arma ia além de um simples objeto, era a materialização de sua essência, uma verdade que ele tentou ocultar sob camadas de racionalização e falsa redenção.

    A chuva persistia em cair, porém já não era apenas água. O odor do sangue se misturava à umidade do ar, cobrindo o pavimento sujo com um vermelho intenso que se desfazia em pequenas manchas escuras. O corpo de Ryan estava caído no chão, o peito respirando com dificuldade, os olhos abertos, ainda repletos de uma ira que se recusava a morrer.

    Não havia arrependimento, pois o arrependimento demandaria que ainda houvesse algo inalterado em sua alma que pudesse se comover. Não havia dúvida, pois todas as questões morais foram apagadas no mesmo fogo que devorou sua humanidade há anos. Restava apenas o vácuo frio de um homem que atravessou todas as linhas vermelhas e, quase decepcionado, percebeu que não existiam monstros do outro lado, apenas ele mesmo.

    Ryan estava estendido no chão, a vida escapando pelos buracos que seus projéteis tinham cavado, enquanto Mikael o observava imbuído de uma ira que não era proveniente da culpa, mas da brutalidade revelada naquele instante.

    Ele não estava irritado por ter puxado o gatilho. Estava furioso porque Ryan lhe pressionara a fazer isso e agora teria de enfrentar sua própria natureza sem desculpas.

    A chuva amenizava a dor, mas não a realidade de que eles nunca foram amigos. Eles sobreviveram em um universo onde o amor era visto como uma vulnerabilidade e a lealdade, um sonho para os ingênuos. O que Ryan definia como traição era simplesmente a regra fundamental das ruas: prevalece o mais forte, o mais veloz, o mais impiedoso. E se os papéis estivessem trocados? E se Mikael estivesse sangrando no asfalto?

    Ryan teria feito diferente?

    Claro que não.

    Essa era a piada mais maldosa de todas. A acusação de traição era pura falsidade, visto que ambos estavam cientes das normas do jogo desde o início. A raiva de Mikael não era por Ryan estar enganado, mas por ele estar completamente certo, e essa verdade feria mais do que qualquer tiro.

    Os olhos dele ardiam como brasas sob o néon, vermelhos não apenas pelo reflexo das luzes, mas também pela ira de se ver preso em sua própria trajetória. Todas as palavras ditas por Ryan refletiam quem ele realmente era.

    Um sobrevivente. Um assassino. Um homem que escolheu isso.

    Ele faria tudo novamente, se pudesse.

    A chuva aumentava de intensidade, diluindo o sangue, mas não a culpa, já que não existia culpa alguma para diluir. Ele tinha apenas a convicção de que não poderia haver redenção nem perdão almejado. Sempre lhe foram oferecidas duas alternativas: matar ou morrer. Ele, como sempre fez, optou por viver.

    E se isso fazia dele um monstro? Que o mundo ardesse. Ele já carregara cadeias suficientes. Hoje, escolhera o fogo.

    Os olhos de Mikael brilharam, um vermelho-sangue intenso, como brasa em meio à escuridão.

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