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    A prefeitura de Washington D.C. 

    Com sua imponência que beirava o cômico, a sala de imprensa ressoava como um monumento à burocracia, envolto em mármore branco e veludo vermelho. A luz que filtrava através do vidro conferia à cena um ar solene, como se a própria arquitetura quisesse lembrar a todos que a verdade era moldada naquele espaço consagrado à comunicação oficial antes de ser entregue.

    Cadeiras de metal reluziam sob a iluminação dos lustres de cristal, enfileiradas para acomodar a imprensa, um enxame de jornalistas divididos entre a euforia da notícia e o cinismo adquirido com os anos de cobertura de tragédias transformadas em espetáculo. Tripés com câmeras apontavam suas lentes para o pódio de madeira escura, onde microfones se amontoavam como urubus disputando carniça.

    A tragédia em Hill City dera aos jornalistas exatamente o que precisavam: uma catástrofe com rostos, números e o cheiro pungente da incompetência. O erro humano sempre vendia bem, especialmente quando acompanhado da promessa vazia de justiça.

    Às 16h50, as portas duplas abriram.

    Arthur Hall entrou com a postura de um homem que sabia estar prestes a ser despedaçado, embora não pudesse se dar ao luxo de demonstrar hesitação. Seu terno estava impecável, e sua expressão transmitia a firmeza de quem dominava a situação, não obstante o peso de uma cidade sangrante em cada fibra de seu ser.

    Ele subiu ao pódio, ajustou o microfone e varreu a sala com um olhar que oscilava entre autoridade e inquietação. No fundo, sabia que nada do que dissesse seria suficiente. A imprensa já tinha sua narrativa pronta; ele era apenas um detalhe a ser moldado dentro dela.

    A primeira pergunta veio de um repórter do The New York Times, um homem de cabelos pretos e olhos castanhos.

    — Sr. Hall, a destruição de Hill City chocou o país. Vídeos mostram uma cidade reduzida a escombros, cadáveres espalhados pelas ruas. Como o senhor justifica a aniquilação total de uma área urbana numa operação que, em teoria, visava proteger seus habitantes?

    Ele inclinou-se ligeiramente para frente, apoiando-se no púlpito com as duas mãos. A voz saiu firme, controlada, carregada de um peso cuidadosamente calibrado.

    — O que aconteceu em Hill City foi uma tragédia, mas uma tragédia necessária. A nossa força-tarefa interveio diante de uma ameaça que não podia ser contida por meios convencionais. A destruição da cidade não foi uma decisão leviana. Foi a única forma de impedir que a contaminação se espalhasse além das fronteiras.

    Antes que pudesse continuar, uma repórter da CNN se adiantou, os dedos crispados ao redor do microfone, o olhar incisivo.

    Necessária, Sr. Hall? Estamos falando da erradicação de uma cidade inteira! Centenas de civis morreram. Isso não se assemelha a contenção, mas a um massacre deliberado. Como o senhor pode justificar isso sob qualquer perspectiva ética?

    O homem respirou fundo, os ombros subindo e descendo lentamente. Pela primeira vez desde o início da coletiva, a frieza institucional cedeu espaço para algo mais cortante.

    — Acho que você não entendeu, então vou esclarecer. A agência não existe para confortar consciências ou oferecer discursos palatáveis. Nós lidamos com ameaças que vocês nem conseguem conceber. O que estava em Hill City poderia ter apagado não apenas aquela cidade, mas o país inteiro. Tomamos a única decisão possível para minimizar as perdas em um cenário onde não havia boas opções.

    O ambiente ficou denso, carregado de uma expectativa sufocante. Um jovem repórter da NBC, talvez alimentado por um senso de justiça ou pelo desejo de um furo exclusivo, avançou sem hesitação.

    — Sr. Hall, há congressistas questionando a autonomia da unidade. Argumentam que a agência opera sem supervisão real, como um estado paralelo dentro do governo. Qual é a sua resposta às acusações de que vocês agem acima da lei?

    Com as mãos cerradas ao redor do púlpito, os nós dos dedos se embranqueceram por um breve instante. Seu olhar encontrou o do repórter, penetrante e avaliador.

    — Essas insinuações são irresponsáveis e perigosas. Muito cuidado com suas palavras, rapaz. A unidade responde diretamente ao governo federal, sob monitoramento contínuo do Departamento de Defesa e do Conselho de Segurança Nacional. Afirmar que operamos fora da lei é espalhar desinformação, e eu esperava mais de um jornalista sério.

    As câmeras focaram em seu rosto, capturando cada nuance de sua expressão. Elas não perdiam nada. O suor acumulado na linha do cabelo, o leve aperto dos dedos no púlpito, a oscilação do olhar entre um repórter e outro — tudo era capturado, pronto para ser dissecado por analistas políticos e manchetes sensacionalistas. 

    Ele não piscou. Não recuou.

    — Não acha que sua agência perdeu completamente o controle da situação?

    Antes que Hall pudesse responder, outros repórteres da NBC o interrompeu: 

    — O senhor se considera responsável por essas mortes?

    — Como o senhor pode olhar para o público americano e pedir confiança depois disso?

    — O senhor não teme que sua agência esteja se transformando em uma ferramenta de terror, em vez de proteção?

    Arthur piscou devagar.

    As câmeras estavam ali. Sempre estavam.

    Gravando. Arquivando. Testemunhando.

    O que fosse dito agora não pertenceria mais a ele, mas ao domínio público. E o domínio público não era um lugar de verdades simples.

    Um jovem jornalista da Vice perguntou do fundo da sala:

    — Qual é a posição da moralidade em tudo isso? Cidades inteiras e inúmeras vidas estão sendo sacrificadas por uma guerra que parece não ter fim. A prioridade é a proteção do povo americano ou é apenas a preservação do poder às custas de tudo e de todos?

    As perguntas vinham de todos os lados, rápidas e afiadas, como facas. Arthur sentiu o sangue ferver sob sua pele, um calor sufocante subindo pelo pescoço. As mãos tremiam, mas não de medo. Era pura raiva, uma raiva que ele mal conseguia conter.

    A sala de conferências estava quente e abafada. O calor das luzes intensas se misturava ao cheiro sintético de equipamentos eletrônicos superaquecidos, que criavam um ambiente opressor, quase asfixiante. 

    As câmeras estavam fixadas nele, e as lentes refletiam fragmentos de seu rosto suado e marcado pelo cansaço. Então veio a gota d’água.

    A jornalista da CNN soltou sua pergunta:

    — Você vê sua agência como uma protetora, mas o mundo está começando a vê-la como algo muito diferente. Um clube de assassinos, que não medem esforços para eliminar qualquer coisa que considerem uma ameaça, mesmo que isso signifique destruir a própria nação que jurou proteger. O que você tem a dizer a essas pessoas que agora o veem como um monstro?

    O silêncio subsequente foi absoluto.

    Arthur fechou os olhos por um breve segundo e inalou profundamente. O ar entrou em seus pulmões carregado de um amargor intenso, mais ainda por causa do ambiente, que parecia estar contaminado pela podridão daquela sala. Ao abri-los novamente, seu olhar já não denotava mais diplomacia. 

    Apenas fúria destilada, pura e incandescente.

    — Monstro?

    A palavra pingou de seus lábios como ácido. O leve tremor das mãos dos jornalistas segurando seus bloquinhos e celulares entregava o que eles tentavam disfarçar – medo. Um que se infiltrava silencioso, como um gás venenoso.

    — Vocês não sabem nada sobre monstros. Sentam suas bundas gordas nessas cadeiras, respirando ar-condicionado, debatendo moralidade como se fosse uma equação simples. Como se os horrores que combatemos fossem conceitos abstratos para serem discutidos em mesas redondas.

    Olhou para a multidão à sua frente como um predador medindo sua presa. Ele controlava conscientemente cada respiração para não deixar que sua raiva se transformasse em algo mais físico.

    — Logos vocês que publicam notícias sobre crianças dilaceradas, famílias inteiras massacradas, e ainda têm coragem de fingir indignação. Como se não lucrassem em cima disso. Como se não transformassem tragédias em entretenimento, em manchetes sensacionalistas, em cliques.

    A jornalista que fez a pergunta apertou os lábios, o rosto pálido sob a maquiagem meticulosamente aplicada.

    Arthur riu. Um som curto, seco, sem humor.

    — Falam de assassinato, como se tivéssemos escolha. Cada criatura que caçamos, cada porra de aberração que eliminamos… vocês dariam tudo para que elas nunca chegassem às suas casas, nunca tocassem suas famílias. Mas sabem por que isso nunca aconteceu? Porque nós existimos. Nós estamos lá quando ninguém mais está.

    Ele apontou um dedo para os jornalistas, controlando milimetricamente todo o seu corpo, agindo como se estivesse segurando uma coleira sobre sua própria fúria.

    — Mas então, de repente, somos nós os vilões? Os monstros? A única coisa que impede esse mundo de virar um maldito campo de matança? Vocês realmente acham que esses seres seguem algum código de conduta? Acham que podemos prendê-los? Reformá-los? Fazer um documentário e esperar que sintam remorso?

    Arthur passou a língua pelos dentes, apertando os punhos.

    — Me diz uma coisa, princesa. — Ele voltou seu olhar para a jornalista da CNN que havia feito a pergunta inicial. — Quando foi a última vez que você perdeu uma noite de sono porque algo realmente estava te perseguindo? Quando foi que você correu porque a única alternativa era morrer rasgada?

    O rosto dela permanecia impassível, mas ele viu o pequeno engolir seco, o leve apertar dos dedos contra a prancheta.

    — Você quer mesmo saber por que nós fazemos o que fazemos? Então por que não tira a bunda dessa cadeira e vem comigo para o campo? Vamos ver quanto tempo você aguenta sem borrar as calcinhas.

    Ele bateu as mãos na mesa de madeira à sua frente, o impacto ecoando pela sala.

    — Eu já vi o que acontece com quem hesita. Eu vi soldados tendo a pele arrancada do corpo enquanto ainda estavam conscientes. Eu vi crianças sendo partidas ao meio por coisas que vocês nem querem saber que existem.

    Este riu novamente. 

    — Mas vocês não querem saber. Vocês só querem continuar vivendo nas suas ilusões de que o mundo é justo, que ele pode ser controlado com leis, regras, tratados. Vocês querem acreditar que tudo pode ser resolvido com uma porra de matéria bem escrita.

    Arthur se afastou da mesa, os olhos ainda cravados na jornalista.

    — Julguem-me. Vão em frente. Mas saibam que enquanto vocês perdem tempo apontando dedos e escrevendo manchetes inflamadas, essas coisas estão esperando. E quando elas vierem, porque elas sempre vêm, não vai importar quem estava certo ou errado. Só vai importar quem ainda estiver respirando no final.

    Ele se inclinou levemente para frente.

    — Só espero que, quando um daqueles filhos da puta rasgar a garganta de um de vocês, eu esteja por perto pra assistir.

    O peso de suas palavras pairava sobre a sala como um cadáver suspenso, uma verdade crua demais para ser ignorada. Alguns jornalistas desviaram o olhar, outros engoliram em seco.

    — Eu não preciso da aprovação de vocês. A gente não precisa! — continuou, batendo a mão no peito, a voz agora subindo, cheia de uma ira que não se preocupava mais em ser contida. — Nossa responsabilidade é proteger este país, independentemente do que vocês pensem. 

    Hall respirou fundo, os olhos ardendo com uma mistura de ódio e desespero. 

    — Eu não vou parar. Nós não vamos parar! 

    Arthur respirou fundo, endireitou-se e, sem esperar réplica, virou-se e saiu, deixando atrás de si uma sala repleta de repórteres atônitos, sem palavras para reagir. Ele deixou o salão, as portas fechando-se com um estrondo definitivo, instilando no ambiente uma atmosfera de desespero e ansiedade. 

    A mídia, os críticos e o público — todos ficaram em silêncio, não pela verdade revelada, mas pelo poder de sua convicção e de sua fúria.

    Quando alcançou o nível da rua, seus agentes já estavam posicionados ao redor do carro preto estacionado ao meio-fio, as portas abertas esperando por ele. 

    John Marcus, Operativo de Logística, estava ao lado do veículo, a expressão fechada e os olhos duros de quem acompanhara a cena e compreendia o fardo que Arthur carregava.

    — Chefe, está na hora de ir.

    Arthur assentiu, sem palavras, entrando no carro com um movimento brusco. John ocupou o assento ao lado dele, e os outros membros da equipe se espalharam pelos dois veículos de escolta. 

    O veículo começou a se mover pelas ruas de Washington, os vidros escurecidos isolando o interior do mundo exterior. O homem olhou pela janela, mas sua mente estava longe, perdida nas cenas da coletiva de imprensa que ainda reverberavam em seus pensamentos. Ele sentia um misto de cansaço e raiva que se espalhava por seu corpo como veneno.

    — Foi bem lá fora, senhor. Tentaram te encurralar, mas você manteve o controle.

    Arthur soltou uma risada amarga, um som áspero que mais parecia um grunhido de exaustão e desprezo.

    — Controle? — Ele balançou a cabeça, incrédulo. — Aquilo foi um linchamento público. Eles não querem a verdade, John. Nunca quiseram. Só querem alguém para jogar no fogo.

    John desviou o olhar, franzindo a testa. Sabia que não havia nada que pudesse dizer para aliviar o que Arthur sentia. O melhor era deixar o chefe desabafar.

    — Essas pessoas… falam como se soubessem o que acontece lá fora, como se tivessem alguma noção do inferno que enfrentamos todos os dias. Mas não têm, John. Não fazem a menor ideia.

    Arthur virou a cabeça, olhando para fora da janela, observando as ruas passarem em borrões.

    — Mas não fazem a menor ideia. Não têm a porra da mínima noção das decisões que precisamos tomar. Cada escolha, cada desgraçada de uma vida que pesa sobre nós quando estamos lutando contra os Mephistos. — A raiva crescia em sua voz, junto com a frustração. — Eles querem segurança, mas não querem pagar o preço. Querem que tudo seja feito sem dor, sem sacrifícios.

    Ele fez uma pausa, esfregando os olhos com os dedos, cansado.

    — É uma piada de mau gosto.

    John, ainda quieto, lançou um olhar de canto para Arthur. Estava acostumado com os momentos em que o chefe perdia a paciência, mas havia algo de mais sombrio naquele desabafo. Não era só o estresse da conferência. Era o acúmulo de meses, talvez anos, de frustração.

    — E o mais engraçado de tudo isso é que eles acham que podem controlar a porra toda. Que as respostas são simples. Mas, no fundo, o que querem é um espetáculo. Uma manchete fácil pra vender jornal e distrair o povo da realidade. — Bateu com força na janela. — Foda-se se vidas foram salvas. O que importa é achar o culpado.

    John soltou um suspiro, tentando quebrar a tensão.

    — Políticos sendo políticos, né?

    Arthur balançou a cabeça, um sorriso torto no rosto.

    — Esse é o problema, John. Não são só os políticos. É todo esse maldito sistema. Todos estão procurando alguém pra culpar. E agora… Agora sou eu o filho da puta da vez.

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