Capítulo 60 - Do Pior ao Melhor
16h20.
O cheiro residual de suor e desinfetante enjoativo predominava no ar quando empurrei a porta rangente do banheiro no primeiro andar.
Ao alcançar a pia, senti a aspereza da minha camiseta roçando a pele. Ergui a barra da camiseta, puxando-a até a altura do pescoço. O espelho me devolveu uma visão familiar: uma linha irregular, de um vermelho rosado ainda vivo, serpenteava pelo meu torso esquerdo. A cicatriz começava na parte superior do ombro, descendo como uma serpente até as costelas.
A minha mão tremeu, como se por um instante quisesse fechar aquele corte, apagar o rastro, fazê-lo desaparecer.
Balancei a cabeça, forçando-me a afastar a lembrança.
— Sem chance.
A vontade de urinar, uma necessidade insistente até então, desapareceu em um instante. Soltei a borda da camisa e me retirei do banheiro.
O corredor longo e esbranquiçado se estendia à frente, iluminados por lâmpadas fluorescentes brilhantes. O ar tinha cheiro de produtos de limpeza, com um leve toque de café sendo preparado em algum lugar próximo.
Meus sapatos faziam um ritmo constante no piso polido enquanto eu seguia as placas azuis com letras brancas que me direcionavam ao escritório da enfermeira.
Chegando ao final do corredor, virei à direita e encontrei uma porta de metal simples sem etiqueta. Parei por um momento, com um lampejo de nervosismo me percorrendo. Bati meus dedos algumas vezes na superfície fria de metal antes que uma voz abafada dissesse:
— Entre.
Abri a porta com um leve empurrão e pisquei enquanto meus olhos se ajustavam à luz suave do interior.
A sala era pequena, mas convidativa. Uma mesa redonda ocupava o centro, cercada por algumas cadeiras de tecido. Um sofá verde desbotado estava no canto. Em uma das paredes, havia estantes repletas de livros grossos de medicina, manuais de primeiros socorros e livros de psicologia.
Atrás da escrivaninha estava sentada uma mulher de cabelos negros presos em um rabo-de-cavalo. Seu rosto, expressivo e um tanto fechado, suavizou-se com um sorriso gentil quando ela olhou para mim. Usava um jaleco branco e seus olhos verdes transmitiam uma sensação de calma com um toque de cansaço.
— Boa tarde. — disse ela. — O que posso fazer por você?
— Meu nome é Krynt. — respondi, minha voz rouca com um tremor nervoso. — Vim ver como Lewis está se saindo.
Seus olhos, antes focados na prancheta em suas mãos, se arregalaram para encontrar os meus. Um rápido relance de reconhecimento suavizou a máscara clínica que ela usava.
— Ah, sim, Krynt. Lewis está no quarto 204. Ele ainda está em coma, mas os médicos têm esperança de uma recuperação rápida.
A notícia, embora dada com um tom esperançoso, pouco fez para aliviar o peso opressivo que havia se instalado em meu peito.
— Obrigado. — Consegui dizer, a palavra sendo um sussurro estrangulado que escapou de minha garganta seca. — Posso ver ele?
— Claro. Mas, por favor, seja breve. Ele precisa descansar para se recuperar.
Assenti com a cabeça. Ela virou-se para o corredor e eu a segui.
Paramos em frente ao número 204. Uma porta de metal simples, desprovida de qualquer marca que a diferenciasse das demais.
Minha mão pairou sobre a maçaneta, hesitando por um instante.
— Aqui estamos. — disse ela. — Desculpe-me.
Um último olhar dela passou por mim antes de desaparecer pelo corredor, os passos ecoando até sumirem na distância.
Respirei fundo, tentando segurar o peso que parecia pressionar meus ombros. Girei a maçaneta, abrindo a porta com cuidado.
Lewis estava deitado na cama. Um tubo de plástico serpenteava de seu nariz, seu assobio rítmico era o único sinal de vida em meio à sua forma imóvel. Cercado por máquinas cujos bipes rítmicos formavam uma cacofonia constante e inquietante, ele exalava um calor que contrastava com a eficiência fria do ambiente.
— Cê tava por um triz quando te encontrei. — falei, me aproximando da cama devagar. — É bizarro te ver assim.
Passei a mão pela nuca, sentindo o suor frio escorrer enquanto olhava ao redor, tentando evitar o óbvio.
— Sei que cê não é o tipo que fica parado por muito tempo. Vai acordar logo, né? Tem que acordar. Ainda tem muita coisa pra gente fazer.
Arrastei o banco para perto da cama. Sentei-me, tentando não fazer muito barulho, como se isso pudesse ajudá-lo de algum jeito.
— A real é que a gente mal se conhece. — As palavras saíram meio engasgadas, meu olhar desviando para o canto da sala. — Mas, porra… você se tornou alguém importante.
Deixei os olhos voltarem para ele, percorrendo cada detalhe. Era estranho ver Lewis tão… frágil. Aquele cara que parecia indestrutível agora estava ali, dependendo de máquinas pra continuar respirando.
— Essa vida… essa merda toda de luta. Missões, guerra… não é pra mim. — Ri de nervoso, me sentindo estúpido por dizer aquilo em voz alta. — Sempre fui mais o tipo que gosta de ficar de boa, lendo mangá, assistindo anime, tomando um refri gelado. Mas você… Você me fez perceber que talvez tenha mais coisa aí. Que talvez eu possa fazer algo além de levar uma vida de merda.
Fiquei em silêncio por um instante, tentando afastar aquela sensação de impotência que me consumia. A verdade era simples e cruel: eu não podia fazer nada por ele.
— Então, por favor, acorda logo, tá? — Minhas mãos estavam cerradas sobre os joelhos, o aperto tão forte que os nós dos dedos ficaram brancos. — Preciso te mostrar que até um merda como eu pode ser útil nessa luta.
Um sorriso amargo curvou meus lábios. Era patético, eu sabia. Mas era a única coisa que eu conseguia oferecer naquele momento.
— Quem sabe, depois disso tudo… a gente pode sentar, ler uns mangás, discutir quem ganharia numa luta, só pra variar.
O raio de sol que atravessava as cortinas era como um holofote encontrando sua estrela. Ela pousou no rosto de Lewis, destacando a leve subida e descida de seu peito.
— Sim, cê não acreditaria. A primeira vez que nos conhecemos, eu te detestava. — Soltei uma risada curta, enquanto me inclinava para frente, com os cotovelos apoiados nas coxas. — Você é tudo o que eu não sou. Sempre com aquele passo largo, o brilho arrogante nos olhos, e experiência o suficiente pra fazer qualquer um se sentir um lixo.
E era verdade. Quando ele apareceu pela primeira vez, foi como um furacão. Todo confiante, como se soubesse exatamente o que estava fazendo, enquanto eu me arrastava tentando sobreviver. Aquilo me irritava profundamente. Seu jeito desafiador de encarar o mundo me dizia: “Para de arranjar desculpas, dá para fazer mais”.
Mas havia algo nele que me cativava, mesmo quando eu não queria admitir. A energia era contagiante, um entusiasmo que, mesmo em um mundo como o nosso, fazia você pensar: “Ok, talvez ainda haja uma chance”.
— Não vou mentir, você é uma dor de cabeça. Daquele tipo que dá vontade de socar, mas que, ao mesmo tempo, faz você perceber que tá vivo. Como se, só de estar ali, você lembrasse que ainda dá pra lutar. Que ainda tem uma porra de motivo pra isso tudo.
Fiquei quieto por um momento, só ouvindo o zumbido constante das máquinas. Era um som irritante, mas também reconfortante. Os bipes regulares diziam que ele ainda estava ali, respirando, mesmo que fosse por um fio.
— Me faz lembrar do Edward. Ele também era assim. Um pé no saco, sempre me empurrando pra frente, me arrastando pra fora dos meus próprios pensamentos. Talvez seja por isso que eu me importo tanto contigo. — Engoli seco, a garganta apertando com as palavras.
O silêncio voltou a dominar a sala, só quebrado pelo som das máquinas e o leve subir e descer do peito dele.
— Tô em dívida contigo. E eu juro que vou fazer as coisas certas.
Dei um pequeno sorriso, tentando afastar a seriedade do momento.
— Mas primeiro, cê precisa acordar e me aturar mais um pouco. Acredite em mim, isso vai ser o pior castigo que você já levou.
Fiquei ali mais um tempo, observando-o, esperando que talvez ele pudesse ouvir e entender.
O som da porta se abrindo ecoou atrás de mim. Olhei de canto, esperando outro médico com informações atualizadas, mas o que vi foi Raven entrando no quarto.
— Ouvi da Nancy que você estava aqui. — disse ela, fechando a porta. — Reparou em alguma mudança no Lewis?
— Ainda não, mas ele está respirando. Isso é um bom sinal, certo?
Sua expressão tremulou com algo ilegível, como preocupação ou provavelmente um pouco de distanciamento profissional. Isso passou tão rapidamente quanto apareceu, dando lugar a um estado calmo e controlado.
— Sim. — confirmou, se aproximando da cama. — Um sinal muito bom.
Seu olhar se deteve na faixa que envolvia seu peito.
— A respiração dele está boa, mas a verdadeira preocupação é o ferimento em si. O dano em sua cavidade torácica é extenso. — Ela gentilmente passou o dedo indicador nas áreas afetadas. — Um pulmão colapsado, costelas fraturadas… É um milagre que ele esteja aguentando.
Uma ponta de gelo desceu por minha espinha.
— Aguentando?
— É. As infecções são um grande risco em lesões como essa. Os próximos dias serão críticos.
Ela encontrou meu olhar de maneira sóbria.
— Os Médicos de Campo estão fazendo tudo o que podem. Também estou dando apoio, monitorando constantemente seus sinais vitais. Mas, em última análise, cabe a ele lutar.
Suas palavras caíram sobre mim como um cobertor de chumbo. Agarrado à existência por um fio, Lewis, um redemoinho de caos e vida, estava reduzido a esse estado frágil.
Não me contive e escapei uma risada boba, uma tentativa pobre de aliviar a atmosfera opressiva.
— Esse cara é insano.
O olhar de Raven estava fixo na forma enfaixada de Lewis, os olhos apertados em um misto de preocupação e culpa. Ela não precisava dizer nada, eu já conhecia aquela expressão. Mas, para minha surpresa, havia algo diferente desta vez.
Ela se mexeu um pouco, incerta, e então finalmente falou, a voz suave e hesitante, quase irreconhecível:
— Há algo que preciso te dizer — começou, sem tirar os olhos de Lewis, como se falar fosse mais fácil sem ter que me encarar. — Lá em Hill City… eu… eu passei dos limites. Minhas palavras foram duras, impensadas. Eu só… Eu estava com medo, desesperada para ter algum controle sobre a situação.
Ela fechou os olhos por um momento, inspirando fundo, e pude ver a tensão acumulada em cada músculo de seu corpo, o esforço para desenterrar algo que parecia guardar a sete chaves.
— Eu julguei mal. E por isso… eu realmente sinto muito.
Aquelas palavras pairaram no ar entre nós, transformando o silêncio em algo denso e carregado. Nunca se via Raven admitir falhas, era alguém que mantinha o controle obcecadamente. Ver essa franqueza inesperada em sua admissão dos erros era como ver um lado dela que eu mal conhecia.
Raven mordeu os lábios, e percebi que ainda tinha algo a dizer, algo que parecia difícil demais de verbalizar.
— Perdemos tanto. Cada encontro com essas… coisas. Cada luta parecia tirar um pedaço de nós, era como se estivéssemos enterrando nossa esperança, nossa própria humanidade, um prego de cada vez.
Semicerrando os olhos, sua expressão denotava uma profunda agonia. Sua mão direita tremia levemente, como se ela se agarrasse a essa emoção para controlá-la apenas respirando fundo.
— O que eu temo, mais que qualquer outra coisa, é perder de novo. Perder Lewis… perder Mandy… perder tudo pelo qual estamos lutando há tanto tempo.
Ela desviou o olhar, claramente incomodada com as próprias palavras.
— Quando alguém se vai, Krynt… é como se um pedaço de nós fosse junto.
Pela primeira vez, eu vi a verdadeira Raven: uma mulher cansada, exausta de lutar contra sombras que se mostravam imbatíveis, mas que continuava de pé, sustentada apenas pela responsabilidade que carregava.
Um silêncio surpreso se estendeu entre nós, pontuado apenas pelo zumbido rítmico das máquinas.
Um calor estranho, mas bem-vindo, floresceu em meu peito. Foi um gesto pequeno, mas, diante de tanta incerteza, pareceu monumental.
Pensei comigo mesmo que essas palavras talvez tivessem preenchido um vazio que eu nem sabia que tinha. O medo de perder tudo e ver o mundo desmoronar era uma fera cruel que nos destruía.
Possivelmente suas desculpas não tinham nada a ver com Lewis. Em vez disso, fossem uma admissão tácita do vínculo que havia se desenvolvido entre nós.
Um vínculo baseado não apenas em um objetivo compartilhado, mas também em um respeito relutante pelas vantagens de cada um e uma nova compreensão das vulnerabilidades que tentamos desesperadamente esconder.
— Relaxa. Todos nós temos dias de merda. Não precisa se desculpar tanto assim.
Ela me olhou, e por um breve segundo, vi sua expressão se transformar. A rigidez em seus ombros relaxou levemente, como se parte do peso que carregava tivesse sido aliviado, enquanto seus olhos brilhavam, refletindo algo diferente.
A máscara recobrou a compostura rapidamente, tomando o lugar daquela breve fragilidade. Mas a máscara não voltou intacta; vi o traço de uma linha nova em sua testa, um franzir que parecia mais um indício de tudo o que ela escondia tão bem.
— Eu… bom, obrigada.
Raven se ajeitou, desviando o olhar e cruzando os braços, mas a distância entre nós parecia ter diminuído um pouco.
— Há algo que preciso que você faça.
— Qualquer coisa.
— Quando você sair daqui, preciso que encontre Mandy. Por causa do que aconteceu, ela deve estar no terraço, porque lá é o refúgio dela quando as coisas ficam… — Ela pausou, procurando a palavra certa, finalmente se conformando com: — Complicadas.
Um suspiro profundo escapou de seus lábios, o som pesado com um fardo que eu não conseguia entender.
— Infelizmente não posso estar ao seu lado agora. — continuou, com a voz tingida de pesar. — Você parece ter um talento especial para encontrar problemas, para o bem ou para o mal. Talvez você possa estar lá para ela de uma forma que eu não posso agora.
Ela me olhou de canto.
— Pode fazer isso por mim?
— Vou tentar fazer o possível.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.