Índice de Capítulo

    A sala comunitária da U.E.C estava irreconhecível. As paredes cinzentas estavam enfeitadas com luzes de Natal vermelhas e douradas piscando, e havia uma árvore robusta, com quase dois metros de altura, decorada com bolas brilhantes, bonecos de neve pequenos e um topo dourado em forma de estrela, refletindo o ambiente. O cheiro de peru assado, canela e alguma sobremesa açucarada impregnava o ambiente.

    Mikael estava no centro da sala, ajustando um gorro de Papai Noel na cabeça enquanto examinava a mesa farta. Ele exibia um sorriso orgulhoso enquanto admirava o banquete: peru, purê de batatas, torradas francesas e uma torta de maçã. Embora eu soubesse que era uma mentira descarada, Mikael insistia em dizer que tinha feito tudo “do zero”.

    — Muito bem, senhoras e senhores! — Ele ergueu uma taça de vinho com teatralidade exagerada. — Este é o espírito natalino. Boa comida, boa bebida e, claro, bons amigos. Ou, no caso de alguns aqui, colegas toleráveis.

    Darcy revirou os olhos ao ouvir isso, enquanto ajustava uma guirlanda no cabelo. A vice-líder raramente se soltava, mas naquela noite parecia mais descontraída — embora a postura ainda impecável denunciasse que ela estava apenas “tolerando” as festividades.

    — Se continuar falando, ninguém vai conseguir comer antes do próximo Natal, Mikael. — retrucou Raven, que organizava os presentes embaixo da árvore. Ela tinha trocado seu habitual ar intimidador por algo mais leve, talvez pelo suéter vermelho com um desenho de um elfo sorridente que claramente a irritava, mas que, segundo Mandy, “combinava perfeitamente”.

    — Tá, tá bom! — Mikael deu dois passos para trás, como se tivesse sido atingido pela crítica. — Vamos comer, então. Mas alguém avise ao Lewis que ele não pode pegar três pedaços de torta antes de terminar o prato principal.

    Lewis, que já segurava um pedaço de torta de maçã, olhou na direção de Mikael com uma expressão de indignação.

    — Que foi? Não é minha culpa se a torta é o melhor prato aqui. — Ele deu uma mordida exagerada na fatia, mastigando de boca aberta, só para provocar.

    — Você é um animal. — Mandy balançou a cabeça, pegando um prato para si. — E, francamente, eu fico até surpresa de ter sobrado alguma coisa pra gente com você por perto.

    Enquanto todos se sentavam e começavam a comer, observei o grupo com atenção. Cada um, à sua maneira, parecia um pouco diferente. Principalmente Arthur. O homem estava ao fundo, conversando tranquilamente com a vice.

    — Darcy, sabia que você consegue fazer até uma árvore de Natal parecer fora de moda perto de você? — disse, com um sorriso discreto, enquanto observava as luzes refletirem nos olhos dela.

    — Isso foi uma tentativa de flerte ou você está bêbado? Porque, honestamente, não sei qual dos dois é pior.

    Arthur deu uma risada baixa, levantando as mãos em um gesto de rendição.

    — Só estou dizendo a verdade! Mas se preferir, posso parar. Claro, seria um desperdício…

    — Certo. — Ela o encarou por alguns segundos, com uma expressão neutra, antes de dar um passo para trás. — Agora, se me der licença, vou pegar um pedaço de torta antes que Lewis devore tudo.

    Observando-a se afastar com um pequeno sorriso no rosto, Arthur pensou: 

    “Ela é tão… perfeita.”

    Apenas alguns passos à frente, Mikael se aproximou com um prato de torradas.

    — Você realmente acha que está enganando alguém, chefe? Até um cego perceberia.

    — Não sei do que está falando. — respondeu, tomando outro gole de vinho com uma calma exagerada.

    — É, claro que não sabe. — Riu-se, depois andou para atender Raven, que estava reclamando sobre a falta de talheres suficientes na mesa.

    A mesa abrigava pratos que ele mesmo chamava de “tradições reinventadas”. Havia tender com um glacê improvisado, que dizia ser uma receita secreta, rabanadas de pão velho e uma torta de abóbora.

    — Admite aí, Raven. — disse, inclinando-se para pegar uma fatia generosa de torta. — Isso aqui está muito acima das suas expectativas.

    Ela cortava um pedaço pequeno de tender enquanto arqueava uma sobrancelha com a expressão de alguém que não tinha pressa em responder.

    — Bom, considerando que você quase incendiou a cozinha duas horas atrás… sim, superou as expectativas. Pelo menos não precisamos evacuar a base dessa vez. 

    — Você exagera. — Sentou-se na cadeira. — Foi só uma chama… pequena. 

    — Pequena? Mikael, o alarme contra incêndio disparou por cinco minutos. E eu vi você tentando apagar o fogo com a manga do casaco.

    Ele se recostou na cadeira, fingindo indignação.

    — Tá vendo, Krynt? — Cutucou-me com o cotovelo. — Ninguém valoriza o esforço aqui. Eu praticamente carreguei essa ceia nas costas.

    — Não se envolva, Krynt. — Raven cortou, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. — Ele precisa aprender que nem todo desastre pode ser disfarçado com glacê.

    — Ai, nossa, que cruel. — Mikael colocou uma mão no peito, dramatizando como se tivesse sido ferido. — Raven, você é fria, sabia? É Natal. A noite de paz, amor e… apreciação culinária.

    Sem lhe dar atenção, ela levou o garfo à boca e mastigou devagar, prolongando deliberadamente o silêncio.

    — Quer saber? — disse, voltando-se para mim. — Aposto que você gostou, Krynt. Seja sincero, melhor ceia que você já teve, né?

    Olhei para o prato, onde um pedaço de rabanada mal passada repousava ao lado de um tender mais queimado nas bordas do que eu tinha coragem de admitir.

    — Em comparação com as festas de natal com a minha família, é… diferente.

    Raven riu baixo, como se minha tentativa diplomática fosse a confirmação de algo que ela já sabia.

    — Diferente? — Mikael repetiu, estreitando os olhos. — Tá bom, anota aí, Raven. Ano que vem eu contrato um chef profissional pra impressionar esses ingratos.

    — Ou talvez, ano que vem, você deixe alguém com mais bom senso organizar a ceia. 

    — Se você continuar assim, vou acreditar que está com ciúmes do meu talento nato.

    — Se talento fosse nato, você estaria lavando pratos, não tentando inventar moda na cozinha. 

    Lewis, que estava ao lado de Mandy, interrompeu com uma risada alta.

    — Eles vão ficar assim a noite inteira? 

    — Shh. Eu quero ver até onde isso vai.

    A troca de farpas continuou por mais alguns minutos.

    Logo depois de todos aproveitarem as comidas, Raven começou a distribuir pequenos cartões para o amigo oculto, e foi nesse instante que o caos se instaurou.

    — Ok, todo mundo sabe as regras, certo? — Raven olhou ao redor, como uma professora disciplinando alunos inquietos. — Sem revelar quem vocês tiraram, sem trocas de última hora e sem presentear pessoas com coisas inúteis. Isso vale para Mikael e Lewis.

    — Por quê nós?! — perguntaram em uníssono.

    Arthur pigarreou, chamando a atenção de todos.

    — Vamos seguir a ordem. Quem começa?

    — Eu começo! — respondeu Mikael. Ele pegou o seu presente embrulhado como se fosse uma relíquia. — Este aqui vai para uma pessoa misteriosa, alguém que vive cercada de sombras… e de sarcasmo. Uma figura fria, calculista, mas que, surpreendentemente, tem um coraçãozinho qu…

    Raven revirou os olhos e o cortou.

    — Sou eu.

    — Sim, Raven, é você mesma! — disse, a entregando o presente.

    — Isso vai ser ruim, já sei.

    Ela desfez o embrulho com cuidado. Seus olhos escuros se estreitaram ao encarar o objeto.

    — Um secador? Sério?

    — Você nunca seca o cabelo depois do banho, e eu me preocupo. Já pensou em quantas bactérias acumulam num cabelo molhado? Isso é uma medida preventiva.

    — Preocupação ou irritação por eu pingar água pelo corredor? 

    — Um pouco dos dois. 

    Com um suspiro, Raven colocou o secador de lado.

    — Sua vez. Faça melhor.

    Ela se levantou, apanhando um pacote elegantemente embalado por laços requintados. Olhou para ele como se estivesse conferindo cada palavra.

    — Meu presente é para alguém que tem energia demais para o próprio bem. Uma pessoa otimista, tem um coração enorme, doce, linda como uma flor, forte… e, às vezes, o bom senso de uma mosca. 

    — Achei que fosse a Darcy. — disse Arthur. — Mas nem fodendo que ela é delicada como uma flor. 

    Mandy deu um pulo de animação.

    — Então sou eu? 

    — Sim. 

    — Ai, meu Deus!

    Ao pegar o presente, rasgou o papel sem cerimônia, revelando um ursinho de pelúcia incrivelmente fofinho. Mandy abraçou o brinquedo como se fosse um tesouro.

    — Ele é perfeito! Obrigada, tia Raven!

    Mikael, sentado ao lado, inclinou-se com um olhar suspeito.

    — Aposto que tem algo sinistro escondido dentro dele. Tipo… órgãos humanos. É muito a cara dela.

    A garota parou por um momento, olhando para o ursinho como se tentasse detectar alguma anomalia, antes de dar de ombros.

    — Não ligo. Ele é adorável.

    — Não se preocupe, Mandy. Os órgãos só estão na versão premium. — disse Raven.

    A mesa explodiu em risadas, e Mandy levantou-se com seu presente em mãos.

    — Agora é minha vez. Este presente é para alguém que… bom, como posso dizer? É Arthur, nosso chefe!

    Ficamos todos surpresos com a forma como ela se direcionou para Arthur.

    — Caramba, filha. Vai ser assim? Você não vai falar nada de mim?

    — Eu sinceramente pensei em falar várias coisas sobre você, mas tudo o que eu falasse seria humilhação demais, então tome esse presente com muito carinho!

    Arthur pegou o pacote com uma expressão já desconfiada. Abriu lentamente, revelando uma caixa cheia de remédios contra vícios alcoólicos. A mesa ficou em silêncio por um momento, antes de Mikael soltar a primeira risada.

    — Isso é o que eu chamo de um presente útil. — disse, quase engasgando.

    — Ah, claro. Porque meu vício é tão óbvio assim. — Arthur respondeu, balançando a cabeça, mas havia um sorriso no canto dos lábios. — Obrigado, Mandy. Vou usar… talvez.

    Arthur levantou-se, pegando seu presente. Olhou para ele por alguns segundos, como se estivesse escolhendo as palavras.

    — Este aqui vai para alguém que é tão elegante, bela e maravilhosa quanto imprevisível. Uma mulher que comanda uma sala como ninguém, mas que, às vezes, me faz querer arrancar os cabelos. Além disso, gostaria que ela fosse um pouco menos amargurada, bem mais doce e amável. Não me ignorasse quando eu estivesse falando…

    — Entregue logo esse presente pra vice! 

    — Não estrague a surpresa, Lewis.

    Com um sorriso caloroso, Arthur entregou o pacote a Darcy. Ela abriu o pacote, revelando uma caixa de chocolates gourmet. Era um gesto significativo, até que ela ergueu levemente o olhar, com uma expressão quase triste.

    — Arthur, você sabe que eu sou intolerante à lactose, né?

    O líder fechou os olhos por um momento, soltando um suspiro dramático.

    — Mas foi com a melhor das intenções. 

    — Eu acredito. Mas, se quiser, pode comer você mesmo.

    Darcy levantou-se com seu presente nas mãos. Era um embrulho simples, mas bem-feito, com papel azul escuro e uma fita prateada. Ela deu alguns passos para frente, segurando o pacote como se fosse uma entrega importante, e começou a falar com um tom que misturava seriedade e leveza. 

    — Bem, este presente é para alguém que, honestamente, mantém todos nós constantemente em alerta. Um perigo ambulante, um tanto… peculiar, mas, reconheço, incrivelmente eficiente.

    Mikael já sorria, inclinando-se na cadeira como se tivesse certeza de que o presente fosse para ele.

    — Sou eu, com certeza.

    Darcy, porém, balançou a cabeça, lançando um olhar breve, mas cortante.

    — Não. — respondeu, sem qualquer hesitação, antes de voltar-se diretamente para mim. — É pra você, Krynt.

    Engoli em seco. Não era exatamente uma surpresa que eu fosse o escolhido, mas isso não tornava a situação menos desconfortável. Levantei-me lentamente, sentindo os olhares sobre mim como peso adicional nos ombros. Quando cheguei até ela, estendeu o presente e o peguei.

    Abri o pacote com cuidado, desdobrando o papel com uma mistura de curiosidade e desconfiança. O conteúdo era um uniforme novinho da U.E.C., com todos os detalhes funcionais impecáveis. Era prático, resistente, mas, acima de tudo, parecia um aviso.

    — Ah… valeu? 

    — Vai precisar. Confie em mim. É só uma questão de tempo.

    Ela deu um leve tapinha no meu ombro antes de se afastar e voltar ao seu lugar. A mensagem estava clara, mas deixava um gosto agridoce. Era tanto um presente quanto uma aposta — e não sabia bem se estava confiante em cumprir as expectativas.

    Respirei fundo, tentando relaxar. Agora era a minha vez. Peguei o presente que havia escolhido com cuidado e me levantei, buscando os rostos ao meu redor enquanto decidia como começar.

    — Certo, meu presente vai para alguém que fala demais, provoca todo mundo e ainda consegue ser incrivelmente útil e irritante ao mesmo tempo. Essa pessoa, apesar de ser o maior pé no saco da sala, me deu uma segunda chance quando ninguém mais daria. 

    Mikael, novamente, jogou os braços para cima, como se fosse o grande vencedor de um prêmio.

    — Finalmente! — exclamou, levantando-se.

    — Calma aí, é pra ti isso, mas segura a emoção. — falei, entregando o pacote.

    Mikael rasgou o papel como se fosse uma criança, revelando um par de óculos escuros estilosos. Ele imediatamente os colocou.

    — Como sabia que eu gosto de óculos? Eles combinam tanto comigo.

    — Ou talvez eu só ache que seus olhos vermelhos chamam atenção demais. 

    — Inveja, Krynt. Não é pra qualquer um segurar esse nível de charme.

    Rimos muito. O brilho das luzes decorativas, os restos da ceia espalhados pela mesa e os pacotes rasgados do amigo secreto, havia um sentimento que transcendia os objetos: estávamos juntos, e isso era raro.

    O Natal na U.E.C. nunca foi dado como certo. Durante anos, não houve espaço para comemorações. Havia sempre um Mephisto à espreita, uma operação em andamento, uma ameaça que insistia em nos lembrar que o trabalho nunca estava terminado. Mas naquela noite, por alguma peculiaridade do destino – ou talvez por pura teimosia de nossa parte – o caos deu lugar à paz.

    Em um mundo consumido pela escuridão, onde a Alemanha nazista havia triunfado décadas atrás e criaturas sobrenaturais vagavam pelas sombras, noites como aquela eram vitais. Elas nos lembravam que, apesar de tudo, ainda havia humanidade. E, mais do que isso, havia resistência.

    Era fácil se perder na escuridão. Era fácil esquecer que, antes de sermos soldados, agentes ou partes de uma máquina maior, éramos humanos. E a humanidade, com todas as suas falhas e imperfeições, também tinha sua força. Ela tinha a capacidade de criar vínculos em meio ao sofrimento, de transformar uma simples refeição e piadas bobas em algo tão poderoso quanto qualquer arma ou estratégia.

    Talvez tenha sido isso que significou para nós: um lembrete de que, mesmo em um mundo destruído, ainda podemos encontrar pedaços de luz. E se conseguíssemos mantê-los vivos mesmo que por uma noite, isso seria mais do que suficiente para continuarmos.

    […]

    […]

    — Parando para observar, acho que tá faltando alguém. — Mikael comentou.

    Seus olhos estreitaram enquanto olhava ao redor, e todos nós seguimos o exemplo. Não levou muito tempo até que o som de passos apressados e uma voz familiar quebrassem o clima momentâneo.

    — Esquecer da gente no Natal é foda! 

    Nicholas apareceu na entrada, acompanhado por Emilly. Ele usava um suéter verde brilhante de Natal, decorado com um Papai Noel no estilo retrô e óculos redondos. Ela segurava uma bandeja cheia de canecas de chocolate quente, com vapor subindo em espirais convidativas.

    Deslumbrante, Emilly usava um vestido de veludo vermelho de mangas compridas, adornado com delicados detalhes brancos que lembravam flocos de neve. Um par de brincos em formato de sino tilintava a cada passo dela. Ela segurava uma grande caixa embrulhada em papel dourado brilhante, com um laço perfeitamente amarrado na parte superior.

    — É muita desconsideração mesmo.

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