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    Nível 15 — Sala de Contenção e Monitoramento, Setor A-12

    A sala se transformava em uma fortaleza de vigilância. O piso de cerâmica reforçada refletia a luz das lâmpadas de LED embutidas no teto, projetando um brilho frio e estéril. Paredes de vidro temperado delineavam a sala, oferecendo visibilidade total das múltiplas telas alinhadas em sequência. 

    Os monitores exibiam diferentes perspectivas da sala de interrogatório abaixo, além de leituras vitais e padrões de fluxo de energia. Uma extensa mesa de metal escovado se impunha ao centro, ladeada por cadeiras ergonômicas ocupadas pelos pesquisadores mais proeminentes.

    Arthur permanecia de pé junto à ponta da mesa, com as mãos pressionadas contra o tampo. O comandante da U.E.C, ao lado da vice-líder, mantinha-se concentrado em um dos monitores principais, que mostrava as repercussões do evento recente ocorrido no piso inferior.

    Benjamin: 88% acima do nível padrão para possessos

    Krynt: 94%, mas estabilizado com dificuldade após o uso do gás cauterizador

    — Não é sustentável. Dois possessos parciais no mesmo espaço? É pedir para o caos recomeçar.

    Raven estava próxima a uma das telas, analisando as leituras.

    — O objetivo era testar os limites de ambos. — respondeu, sem desviar o olhar. — E descobrimos algo essencial: eles não podem coexistir. O aumento exponencial da energia negativa não é um acaso. É uma reação mútua.

    Arthur estreitou os olhos, deslizando o dedo sobre a superfície da mesa enquanto consultava um relatório recém-enviado por Emilly.

    — Reação mútua ou rivalidade? — perguntou, retoricamente. — Você viu o que aconteceu. Krynt mal conseguia manter o controle, e Benjamin… bom, ele já perdeu o controle há muito tempo.

    — Não podemos ignorar o fato de que o Mephisto dentro de Krynt está agindo contra sua própria natureza. Ele não ataca sem motivo. Ele fala como se tivesse algum tipo de… código. E o mais impressionante são as tentativas do Mephisto dentro de Benjamin sobrepujar o de Krynt, que foram repelidas pela presença dele. Tudo indica que os Mephistos têm alguma hierarquia ou rivalidade interna.

    Um dos pesquisadores, um homem de meia-idade com cabelos grisalhos e óculos tortos, interrompeu:

    — Senhor, essa situação é totalmente inesperada. Nos 24 anos desde que começamos a documentar casos de possessão, nunca encontramos uma situação como essa. Normalmente, o tempo de sobrevivência de um indivíduo parcialmente possuído exposto a outro é de menos de três minutos. Eles simplesmente… acabam sucumbindo, até porque a energia negativa não consegue tolerar a presença de outra mais forte.

    Darcy ergueu uma sobrancelha, mas não parecia impressionada.

    — E esses dois?

    O pesquisador ajustou os óculos, nervoso.

    — Eles são exceção, incrivelmente. Em vez disso, a energia de ambos aumentou. Krynt chegou a 72%, Benjamin ultrapassou 60%. A estabilização só foi possível graças ao gás cauterizador, que forçou uma reação direta com as partículas de energia negativa. Mas…

    — Mas o gás não é uma solução permanente. — Arthur completou.

    — Exatamente. Estamos lidando com algo novo, algo que não segue os padrões dos Mephistos comuns.

    Mikael entrou na sala, seguido por Emilly, que segurava um tablet.

    — Quase deu tudo errado, mas por sorte deu tudo certo! — disse Mikael. — Krynt está desacordado, porém estável. Benjamin está sedado. Senhor, se isso continuar…

    — Continuar? — Arthur o interrompeu. — Não haverá continuidade. Krynt ou Benjamin. Um deles precisa ser eliminado.

    Aquilo soou como uma sentença de morte. Emillly, no entanto, levantou a voz, embora levemente hesitante.

    — Espere. — Deslizou o tablet sobre a mesa para Arthur. — Há outro padrão aqui. As leituras indicam que, de alguma forma, eles… se conhecem.

    — Ridículo. 

    — Não estou sugerindo que eles lembram conscientemente. Mas os gráficos mostram uma ressonância nas emissões de energia. Algo que sugere um vínculo.

    Mikael aproveitou a abertura.

    — Se for verdade, separar eles pode ser mais eficaz do que exterminar um. Benjamin pode ser transferido para outra base. Longe o suficiente para impedir qualquer reação.

    Enquanto esfregava a têmpora, Arthur demonstrava exasperação, mas seu olhar fixo no tablet indicava que ele estava considerando.

    — E o que garante que ele não descontrole em outro lugar? 

    — Nada. — Mikael respondeu, dando de ombros. — Mas vale a pena o risco. Krynt está aprendendo a lidar com isso. Benjamin não tem chance sem ajuda, e, sinceramente, senhor, perder Krynt seria um desperdício. Você sabe o porquê.

    O homem permaneceu em silêncio por um longo momento, analisando os dados. Finalmente, ele se virou para Darcy.

    — O que você acha?

    A vice-líder cruzou os braços, pensativa.

    — É uma aposta. Mas é melhor do que matar um deles sem entender completamente o que estamos lidando. A próxima vez que o ciclo retornar, essa decisão pode ser a diferença entre sobrevivermos ou sermos obliterados.

    O líder expirou lentamente, como se estivesse carregando o peso de toda a operação nos ombros.

    — Benjamin deve ser transferido para a Base de Contenção Primária no México, em Chihuahua, até 24 horas. — decretou. — Mas se algo der errado, a responsabilidade será sua, Mikael.

    — Como sempre!


    O Strix C-7 cortava o céu como um espectro invisível. Sua fuselagem angular, revestida com polímeros de absorção óptica, engolia qualquer vestígio de luz, tornando-se indistinguível contra o manto negro da noite. Nenhum sinal de radar capturava sua presença, nenhuma torre de controle registrava sua passagem. Deslizava pelo espaço aéreo fragmentado dos Estados Unidos como um predador na escuridão, carregando um segredo que jamais deveria tocar o solo sem supervisão.

    Abaixo dele, o deserto do Novo México estendia-se como um cadáver esquecido, seus ossos expostos em forma de ruínas industriais e cidades fantasmas. Estruturas abandonadas resistiam ao tempo, testemunhas mudas de conflitos antigos, falências de governos locais e evacuações compulsórias. Uma terra sem dono, onde a poeira carregava histórias apagadas antes de poderem ser escritas. Lá embaixo, ninguém olhava para cima. Ninguém sabia o que cruzava suas cabeças naquela noite.

    A U.E.C. sempre operava nesse intervalo entre o visível e o apagado. Entre o que existia e o que precisava ser enterrado na obscuridade.

    Dentro do Strix, a cabine de transporte refletia a filosofia da agência: funcionalidade extrema, nenhum luxo, nenhuma distração. O espaço era dominado por um aço frio, linhas retas e assentos fixados diretamente ao chão reforçado para evitar deslocamentos durante turbulências. Monitores embutidos nas laterais exibiam leituras em tempo real da missão, enquanto prateleiras de contenção mantinham fivelas de segurança, máscaras de emergência e kits de estabilização cinética – nada para conforto, tudo para sobrevivência.

    E no coração daquela estrutura jazia o problema.

    Uma cápsula de contenção dominava o compartimento traseiro, sustentada por suportes hidráulicos e ligada a um gerador de energia positiva que pulsava em tons azulados, formando um campo eletromagnético oscilante. Dentro dela, suspenso como um fragmento de realidade deslocada, estava Benjamin. Seu corpo flutuava alguns centímetros acima da base metálica, os músculos retesados em espasmos ocasionais. Mesmo inconsciente, seus dedos se crispavam como se tentassem agarrar algo. Não era apenas ele que estava ali dentro.

    Mikael observava, a expressão indecifrável.

    Sentado em um dos assentos laterais, cruzava as pernas e segurava um tablet sobre os joelhos. A tela brilhava no escuro, exibindo gráficos que pulsavam em frequências instáveis. Leituras espectrais. Picos de energia negativa. Oscilações na carga de contenção. Tudo apontava para um fato incômodo: o Mephisto dentro de Benjamin ainda não estava completamente suprimido. 

    Ele deslizou os dedos sobre o vidro frio do dispositivo, analisando.

    Algo não estava certo.

    — Como estão as leituras? — perguntou, sem desviar os olhos.

    Um dos agentes, postado próximo à cápsula, tocou alguns comandos na lateral da contenção antes de responder.

    — Oscilando, mas estabilizando… em parte. — O homem hesitou. — Ainda chegando a 65% da carga negativa.

    Mikael inspirou fundo.

    — Se passar de 70%, o confinamento falha.

    Nenhuma pergunta, nenhuma dúvida. Todos ali sabiam o que acontecia quando uma falha de contenção ocorria dentro de uma aeronave a 12 mil metros de altitude.

    O agente assentiu, a expressão rígida.

    — Não podemos mantê-lo assim por muito tempo.

    Ninguém podia.

    A cápsula era uma solução temporária, uma medida emergencial que não substituía um verdadeiro campo de neutralização, como o que existia na sede da U.E.C. Estavam transportando uma bomba de instabilidade metafísica, e cada minuto no ar aumentava o risco de um colapso interno.

    Mikael sabia disso. Assim como sabia o que acontecia com qualquer agente da U.E.C. que permitisse esse risco se tornar realidade.

    Ele finalmente ergueu os olhos do tablet, deixando a tecnologia de lado para encarar o prisioneiro diretamente.

    Benjamin não era só uma estatística. Não era só um número no relatório.

    Era um garoto.

    Um garoto que deveria estar em algum canto qualquer do mundo. Mas, em vez disso, estava ali. Dentro de uma cápsula de contenção, acorrentado por forças que ninguém deveria ser obrigado a entender.

    O problema era que o mundo não se importava.

    Se Benjamin sobrevivesse, a política da Agência garantiria que ele fosse isolado. Examinado. Testado. Desumanizado.

    Se morresse… bem. O relatório final seria assinado em menos de 24 horas, e tudo seguiria em frente.

    A turbulência leve fez a aeronave estremecer.

    Mikael tamborilou os dedos no braço da cadeira.

    — Quanto tempo até chegarmos?

    O piloto respondeu pelo intercomunicador:

    — Menos de duas horas até a base de desembarque.

    O mundo passava pela janela como um borrão silencioso.

    A vastidão árida do norte do México dera lugar a serras e florestas compactas, banhadas por um verde sombrio sob o olhar pálido da lua. As sombras das montanhas se alongavam sobre os vales, delineando formas irregulares na terra adormecida. Era um território que Mikael teria desejado explorar em outro tempo. Mas aquela paisagem não era dele, nem de qualquer pessoa. Era apenas uma terra transitória, um espaço entre zonas de controle, onde a política se dissipava no ar e o poder se transferia com a mesma rapidez de um tiro disparado no escuro.

    A rota aérea sobre o deserto de Sonora seguia um caminho mapeado milimetricamente para evitar detecção. Abaixo, as dunas se destacavam sob a luz da lua, intercaladas por vegetação rarefeita e estradas esquecidas. Em alguns pontos, brilhavam fogueiras dispersas — comunidades isoladas, rotas de contrabando, postos avançados que existiam à margem de qualquer governo. Um mundo que sobrevivia no limiar da legalidade, intocado pelo Reich, ignorado pelos Estados Unidos e vigiado ocasionalmente pela U.E.C.

    Às 05h20, as primeiras luzes da Base de Contenção Primária surgiram no horizonte, cintilando entre os recortes escuros da montanha.

    A base era um paradoxo, um tumor de concreto e aço incrustado na montanha, com torres de vigilância que lembravam garras. Projetada durante um tratado que permitia aos EUA operar em solo mexicano em troca de proteção contra o Reich. Ela sobrevivia graças a subornos, ameaças e uma rede de bunkers subterrâneos que até os satélites alemães não mapeavam. Hermosillo ficava perto o suficiente para abastecer a base de tequila e prostitutas, mas distante o bastante para manter a farsa da neutralidade mexicana.

    Sua independência era um acordo velado. A U.E.C. operava nesse limbo, sabendo que qualquer movimento errado poderia virar o tabuleiro inteiro.

    Às 5h45, o Strix C-7 pousou. Suas asas retráteis se retraíram como as de um inseto. Mikael desceu a rampa traseira, enquanto o ar gelado da montanha cortava seu rosto como uma lâmina. A pista estava cheia de marcas de pneu e manchas escuras – era difícil dizer se era sangue de criaturas ou de humanos. Dois agentes arrastavam a cápsula de contenção onde Benjamin estava preso, com o vidro embaçado pelo hálito irregular dele.

    — Não encosta nisso. — Um deles alertou para o novato, que se afastou.

    No final da pista, o Comandante esperava. Homem feito de ângulos brutos. Seu rosto era talhado em granito, cicatrizes que contavam histórias de facas e garras, e olhos que não piscavam há décadas. Seu uniforme cinza ostentava insígnias da base – uma águia devorando uma serpente –, mas o lenço negro no pescoço era herança de outra vida. Diziam que ele o usava para esconder marcas de mordida de um Mephisto. Diziam muitas coisas.

    — Mikael. — cumprimentou, a voz tão áspera quanto o concreto sob seus pés. — Esperava contrabandistas ou desertores. Não… você.

    Mikael ergueu as mãos, exagerando o sotaque de good ol’ boy do Texas:

    — Surpresa, comandante. — Mikael abriu os braços, fingindo não notar os soldados apontando rifles. — Trouxe um presente. Do tipo que pisca e estraga seu dia. Chama-se Benjamin. É como um Tamagotchi, só que se ele morre, o mundo explode.

    Seu olhar percorreu Mikael primeiro, depois a cápsula, depois o avião. Avaliando. Pesando.

    — Por que trouxe o garoto aqui?

    — O garoto foi exposto a níveis de energia negativa que ultrapassam qualquer projeção dos nossos protocolos. Nós acreditamos que vocês têm os recursos para estudá-lo com mais eficiência.

    Ele não respondeu. Seus olhos escuros se estreitaram, avaliando Mikael como se tentasse enxergar através da desculpa.

    — Isso soa como uma maneira bonita de dizer que você está me empurrando uma bomba-relógio.

    Este abriu um sorriso enviesado.

    — Bom… não posso dizer que não é isso também.

    A expressão dele endureceu, mas Mikael ergueu um dedo antes que pudesse reclamar.

    — Mas é mais do que isso. Esse garoto pode ser a peça que faltava para entender por que os ciclos de dez anos estão se intensificando. Não é um caso isolado. Ele é um ponto de convergência.

    O comandante cruzou os braços, ponderando em silêncio. Por fim, fez um gesto para os soldados próximos.

    — Tragam o cilindro para a ala de pesquisa. Quero relatório de bioassinatura em 40 minutos. E testem o escudo de plasma.

    Os soldados entraram em movimento instantaneamente, retirando a cápsula com o cuidado. Mikael observou o processo com um olhar tranquilo, mas atento.

    — Você tem sorte de que estamos sempre prontos para emergências. — disse, sem desviar os olhos do cilindro. — Mas não abuse.

    — Sou um modelo de disciplina e respeito hierárquico.

    O cilindro foi transportado, e ele acompanhou a cena por um instante, as mãos ainda nos bolsos. O brilho azulado refletia na estrutura cinzenta da base, criando um contraste estranho – um fragmento de algo que não pertencia àquele mundo, sendo empurrado para dentro dele à força.

    — Bem-vindo. — disse, antes de se virar para acompanhar os soldados.

    Mikael soltou um suspiro exagerado.

    — Ah, é ótimo estar aqui, senhor… Hector… O quê mais?

    O comandante parou por um segundo, lançando-lhe um olhar carregado de tédio.

    — Hector Valdez.

    — Certo. Hector Valdez. Tem nome de homem que briga com faca e garrafa quebrada num bar de beira de estrada.

    Dessa vez, Valdez lançou um olhar de advertência, mas o agente apenas sorriu.

    — Relaxa, não é como se eu estivesse te entregando para a Gestapo. A gente sabe que vocês aqui no México têm que andar na linha. Ficar independente e ainda respirar não é para qualquer um.

    Valdez bufou, mas não contestou.

    Mikael inclinou a cabeça, fingindo reflexão.

    — Ainda bem que a U.E.C. sempre tem espaço para acordos. Falando nisso, ainda come aquela merda de Brot com salsicha?

    O olhar de Valdez endureceu, mas ele já havia desviado o olhar, acompanhando a cápsula sendo levada para dentro da base.

    A entrada para o interior da base contrastava impressionantemente com o exterior austero da face do penhasco. Corredores largos e revestidos de aço reluzente ecoavam cada passo, fazendo com que o som parecesse ricochetear em cada superfície. 

    Havia projeções holográficas nas paredes que mostravam mapas das instalações, detalhes de contenção e gráficos ao vivo de ameaças sob vigilância. Mikael passeava com as mãos enfiadas nos bolsos, observando as telas curiosamente.

    — Notável. — comentou ele, lançando um olhar para um painel que mostrava uma leitura de segurança do setor. — Vocês realmente não poupam nada aqui. Parece um cruzamento entre um laboratório de filmes de ficção científica e uma prisão de segurança máxima.

    — Nossa prioridade é conter o incontrolável. Diferente de sua U.E.C., não estamos interessados em experimentos desnecessários.

    — Ah, sim. O bom e velho juntos, mas não misturados. Lembra daquela festa em Tijuana onde seu exército confundiu uma procissão de Dia dos Mortos com um ritual Mephisto? — Riu-se, baixo e áspero. — Ótimos tempos.

    Valdez ignorou o comentário, mas seus dedos contraíram-se levemente — Mikael sabia que cutucara uma ferida.

    Eles seguiram até o centro de operações, uma sala circular onde dezenas de telas exibiam dados em tempo real: bioassinaturas anômalas, níveis de energia negativa, e até transmissões da Rede Nova Berlim, a propaganda oficial do Reich. Nas paredes, bandeiras de missões passadas pendiam como troféus. Mikael parou diante de uma bandeira preta com um mapa dourado dividido ao meio – o símbolo da Operação Cisne Negro, onde a base sabotara um trem de suprimentos nazista em 2009.

    — Nunca imaginei que uma prisão de monstros seria tão… politizada — disse, tocando a borda da bandeira. O tecido era surpreendentemente macio, como a pele de uma serpente.

    Antes que Valdez respondesse, um agente interceptou-os. O homem era um veterano. Cabelo cortado rente, cicatriz no queixo que parecia uma vírgula mal desenhada, e o olhar de quem já viu cidades inteiras virarem cinzas. Seu rifle, um modelo Sturmgewehr-77 modificado, pendia do ombro.

    — Você deve ser o famoso Mikael. Ouvi falar de você. Dizem que é bom em causar problemas.

    — E você deve ser ótimo em resolvê-los. 

    O veterano riu, um som rouco que ecoou nas paredes de aço.

    — Chamo isso de serviço completo.

    Valdez interveio, a voz cortando o ar como um alarme.

    — Agente Rojas. Volte ao seu posto.

    Antes de se afastar, ele disse:

    — Até mais, Olhos de Sangue. Se sobreviver à inspeção do Valdez, me deve uma cerveja.

    Mikael assobiou baixo.

    — Rojas… O Carniceiro de Juárez. Pensava que ele estava morto.

    O comandante não olhou para trás.

    — Todos aqui estão mortos. Só ainda não caíram no chão.

    A frase pairou no ar enquanto entravam em um elevador blindado. Valdez pressionou o botão do subsolo 3 e cinco segundo depois ele chegou.

    A porta abriu-se para um corredor estreito, onde o ar cheirava a química agressiva e medo suado. Tubulações expostas serpenteavam pelo teto, vazando vapor que formava arco-íris tóxicos sob as luzes fluorescentes. Havia grafites nas paredes, uma delas era “¡Viva la Resistencia!, apagado a solvente. Tinha cabos amarrados com fita isolante, um cartaz da Rede Nova Berlim onde um soldado alemão sorria para crianças mexicanas.

    — Aqui é onde guardam as esperanças perdidas? — Mikael cutucou, passando por um painel que mostrava bioassinaturas de Mephistos em tempo real.

    Hector ignorou-o, mas um agente mais adiante não teve a mesma discrição.

    — Você é mesmo ele? — A voz veio de uma mulher jovem, cabelos negros presos em coque apertado q. Seus olhos brilhavam com a excitação de quem encontra um ídolo em um lugar onde ídolos costumam morrer. — Trabalha com a Raven?

    — Trabalhei. — Ajustou o colarinho, fingindo não ver Valdez revirar os olhos. — Ela é um pouco sombria, mas é uma boa pessoa.

    A agente – Ruiz no crachá – mordeu o lábio para conter um sorriso.

    — Ela é tão sexy. Eu queria…

    — Ruiz. — Valdez interrompeu. — Relatório do setor 4. Agora.

    Ela corou, mas antes de sair, sussurrou para Mikael:

    — Tenho seu cartaz no meu armário.

    Ao lado dela, um homem de sobrancelha cortada por uma cicatriz em zigue-zague cruzou os braços. Rafael Ortiz tinha o jeito de quem carregava o peso do mundo nos ombros e odiava cada grama.

    — Vasquez, deixe o cara respirar. — Ortiz ajustou o coldre, a arma personalizada com adesivos de caveiras e a frase Ni un paso atrás. — Visitantes da U.E.C geralmente trazem cadáveres, não autógrafos.

    Mikael apontou para o adesivo.

    — Bonito lema. 

    Ortiz sorriu. Um homem de óculos desengonçados e jaleco manchado de café interpôs-se logo em seguida. 

    — Espero que não esteja aqui para replicar o Incidente de Monterrey. Seu experimento lá custou três meses de reparos nos escudos.

    — Diego. — Bianca Romero veio silenciosamente, com tranças violetas balançando como serpentes adormecidas. Sob a luz mortiça, sua tatuagem tribal – um símbolo asteca modificado – irradia vida. — Dê tempo ao homem. Ele veio mostrar o brinquedinho novo.

    Mikael estudou-a. Ex-militar, certamente. Postura de quem sabe matar, mas escolhe não fazê-lo hoje.

    — Brinquedinho? — Ele apontou para o cilindro à frente, onde Benjamin flutuava em líquido âmbar. — Isso aqui é mais perigoso que seu café, doutor.

    O laboratório central era um templo profano de tecnologia. Telas exibiam algoritmos quânticos ao lado de símbolos maias digitalizados, enquanto a U.E.C., com arrogância e matemática, tentava decifrar o desconhecido. No centro, a plataforma magnética sustentava o cilindro, cujo campo azul latejava como o coração de um deus adormecido.

    — Interessante. — Mikael aproximou-se, observando os técnicos mexicanos calibrarem sensores. — Parece que enfim aprenderam a não usar fita isolante em equipamentos de bilhões.

    Valdez encostou em um terminal, ativando hologramas que projetavam o cérebro de Benjamin – redes neurais infectadas por veios negros.

    — Níveis de energia negativa: 9.7 terahertz. — leu, os dedos deslizando sobre dados que rolavam como condenados. — Quase o dobro do Caso Alfa.

    — Conveniente, né?

    — Conveniente é seu governo assinar tratados que nos transformam em quintal de testes. — Diego ajustou os óculos. — O Tratado de Guadalupe-Hidalgo não é aliança. É capa para colonialismo 2.0.

    Valdez ergueu uma mão, silenciando-o.

    — O garoto fica aqui. Você — olhou para Mikael — tem 12 horas para justificar sua presença.

    Mikael inclinou-se sobre o terminal, digitando códigos roubados de um servidor em Berlim.

    — Sabia que os nazistas têm um nome para isso? Blutsbrücke. Ponte de sangue. Eles acham que os Mephistos são restos de uma raça superior extinta. É uma ironia. Tanto se preocupam com pureza que não veem que o monstro está no espelho. 

    Bianca se aproximou, e sua tatuagem entrou em sintonia com o campo magnético.

    — E você? O que vê no espelho?

    — Alguém que ainda acredita que podemos vencer sem virar o que caçamos.

    Valdez cruzou os braços e a insígnia da base cintilou como um olho vigilante.

    — Você tem 72 horas para justificar sua presença aqui. — disse, sem olhar para Mikael. — E se esse garoto piorar, você vai embora com ele. Em uma urna.

    Ele ergueu as mãos em rendição falsa.

    — Prometo ser um convidado educado. Sem tocar nos móveis, sem assombrar os corredores…

    Bianca interrompeu, passando por ele com uma pasta de arquivos.

    — Já está assombrando. Desde que chegou.

    O silêncio que se seguiu foi pesado, preenchido apenas pelos zumbidos dos equipamentos. Finalmente, Hector disse:

    — Diferente não cobre o que ele é, mas, se não entendermos, estaremos cegos quando o próximo ciclo começar.

    — Vamos fazer o que pudermos.

    — Bem, espero que gostem do desafio.

    — Sempre gostamos.

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