Capítulo 68 - Espero que gostem do desafio
Nível 15 — Sala de Contenção e Monitoramento, Setor A-12
A sala se transformava em uma fortaleza de vigilância. O piso de cerâmica reforçada refletia a luz das lâmpadas de LED embutidas no teto, projetando um brilho frio e estéril. Paredes de vidro temperado delineavam a sala, oferecendo visibilidade total das múltiplas telas alinhadas em sequência.
Os monitores exibiam diferentes perspectivas da sala de interrogatório, além de leituras vitais e padrões de fluxo de energia. Uma extensa mesa de metal escovado se impunha ao centro, ladeada por cadeiras ergonômicas.
Arthur permanecia de pé junto à ponta da mesa, com as mãos pressionadas contra o tampo. O comandante da U.E.C, ao lado da vice-líder, mantinha-se concentrado em um dos monitores principais, que mostrava as repercussões do evento recente ocorrido no piso inferior.
Benjamin: 88% acima do nível padrão para possessos
Krynt: 94%, mas estabilizado com dificuldade após o uso do gás cauterizador
— Isso não se sustenta. Manter dois possessos parciais no mesmo ambiente é praticamente um convite para o caos voltar a acontecer.
Raven ficou em frente ao ecrã, concentrada nas leituras.
— A ideia sempre foi testar até onde cada um aguentava, e o que posso concluir é que eles não conseguem coexistir. Esse pico absurdo de energia negativa não foi coincidência. É uma reação entre eles.
Arthur passou o dedo pela superfície da mesa, analisando o relatório que Emilly acabara de enviar.
— Reação… ou provocação. — comentou, sem esconder a desconfiança. — Você viu a cena tanto quanto eu. Krynt estava no limite e o Benjamin… esse já passou da fronteira faz tempo.
Raven franziu o cenho, inclinando-se um pouco mais para a tela.
— O Mephisto dentro do copo do Krynt não segue padrões estranhos. Parece guiado por algum tipo de código, por mais absurdo que isso soe.
— Então eles não só se reconhece, como se medem.
— Mais do que isso, acho que existe uma estrutura interna entre eles. Não sei se é hierarquia, rivalidade ou algum tipo de instinto primitivo, mas está claro que eles reconhecem forças e posições. Aqueles dois não entraram em conflito por nós. Foi pessoal, deles.
Pensativo, Arthur apoiou ambas as mãos na mesa.
— E isso só complica tudo. Porque, se eles têm uma dinâmica própria, nós estamos no meio de uma guerra que nem compreendemos.
Um pesquisador de cabelos castanhos e óculos visivelmente tortos levantou a mão. Arthur piscou os olhos, parecendo dar-se conta da sua presença apenas nesse momento.
— Ah, desculpe, não tinha visto você aí.
O homem abaixou a mão com um gesto tranquilo.
— Tudo bem. Quase ninguém nota, na verdade. É um dom natural. — disse, ajustando os óculos sem nenhum rancor aparente. — Mas, se me permitem, isso fugiu completamente do previsto. Em vinte e… vinte e quatro anos de registro, nós nunca vimos, nunca mesmo, uma coisa assim. Normalmente, quando um possesso parcial fica perto de outro… eles não duram. É questão de minutos. Seis, às vezes nem isso. A energia negativa… enfim… ela não tolera concorrência. Não suporta. Só implode ou explode. Depende do dia.
Com um ar impassível, Darcy observou-o na esperança de que a situação se resolvesse de forma favorável.
― E esses dois?
O pesquisador engoliu seco, ajustando os óculos que caíam ainda mais.
― Eles… hã… não entraram no padrão. Nada no que estão fazendo faz sentido. Quer dizer, faz algum sentido, mas não o que deveria. Em vez de colapsarem, ampliaram a carga. Os dois. Um subiu mais do que devia, o outro quase acompanhou… Só conseguimos que parassem de… de subir porque liberamos o cauterizador, que reagiu com… Ah. Enfim. Funcionou por minutos. Minutos. E… e só.
Arthur cruzou os braços.
― Ou seja, não resolve nada.
― Não resolve, não. ― O pesquisador abanou a mão para afastar a frustração. ― É como colocar uma fita adesiva num prédio condenável. Mantém de pé por dez segundos, mas você ainda precisa sair correndo.
Ele tentou reorganizar a frase, inspirando profundamente, mas sem sucesso.
― O ponto é… não estamos lidando com um caso comum. Eles estão fora da curva. Bem fora. E, pra ser sincero, nem sei se chamar isso de padrão ainda faz sentido. É tipo… tipo se dois incêndios decidissem conversar entre si em vez de se apagarem. Eu… não sei explicar melhor que isso.
Darcy e Arthur partilharam um olhar compreensivo, mesmo no meio da confusão.
A vice soltou um suspiro leve, com a mão esquerda apoioada na cintura.
― Dois incêndios conversando… É, não é exatamente o tipo de metáfora que tranquiliza alguém.
Seus olhos percorreram as telas, mas havia uma atenção silenciosa atrás da postura fria.
― Você já tinha dito algo parecido antes, que ele age como se tivesse um código. Ainda sustenta isso, Raven?
Arthur voltou-se na direção dela francamente surpreendido.
― Quer dizer o quê? Que o do Krynt simplesmente decidiu queimar para o lado errado?
Raven demorou-se a decidir o que dizer àquela pergunta.
― Todo Mephisto que já vimos age como um cão solto numa sala cheia de portas abertas. Ataca o que estiver mais fácil, mas esse… ― Ela indicou a tela com um gesto mínimo ― Escolhe caminhos, evita alguns, confronta outros e parece seletivo.
Darcy inclinou a cabeça.
― Seletivo como? Estratégico?
O primeiro sinal surgiu no momento em que Raven desviou o contato visual, algo que se processou em tempo mínimo, com uma aparência deliberada.
Não obstante, Darcy captou aquele descompasso sutil, como uma nota fora do tom numa música que conhecia muito bem.
Era alguém ponderando o que dizer. E, mais importante ainda, o que não dizer.
A desconfiança de Darcy aumentou gradualmente, como uma linha fina de gelo a subir pela espinha. No entanto, juntamente com essa sensação, surgiu outra certeza igualmente desagradável de que não havia provas. A ausência de uma ligação concreta impedia a existência de uma verdade incontestável. Tudo não passava de impressões e intuições.
Em ambientes como aquele, a intuição era tão frágil que não se podia confiar nela.
Então, a vice respirou fundo, recompôs-se e fez com que seu semblante se tornasse apenas um pouco mais austera, de modo a que ninguém percebesse que havia algo por trás.
Arthur notou a troca silenciosa entre ambas antes que qualquer uma delas piscasse os olhos. Não era preciso telepatia para ser notado; era sentido no ar.
― Ahem. — Pigarreou. — Só pra constar… Vocês duas acham mesmo que ninguém repara quando ficam assim?
Raven fez um desvio rápido do olhar.
― Não estou puxando confusão, só não tenho talento para fingir que não vi nada. E se eu senti isso daqui, imagina o pesquisador ali.
O funcionário, ao fundo, fingiu que estava escrevendo algo em um bloco de notas, na esperança de não ser envolvido naquela conversa.
Com um suspiro, o líder permitiu que a questão se dissipasse no ar.
― Seja como for, Mikael tomou a decisão mais ousada. Ele quer manter o Krynt aqui, nesta condição. Não é apenas teimosia. Para ele, isso tem algum valor…
A porta se escancarou antes que qualquer resposta ganhasse corpo. Mikael surgiu no vão, apoiando uma mão no batente.
― Quase desandou tudo, mas no fim seguramos as pontas. — disse, aproximando-se da mesa. — Krynt apagou e o Benjamin eu precisei sedar. Senhor, se isso continuar…
Arthur nem esperou a frase terminar ao levantar a mão.
― Continuar o quê? Não existe continuidade possível. Krynt ou Benjamin. Um deles não passa daqui.
As palavras caíram como um peso sobre a mesa e os ombros de Mikael enrijeceram, sem que este sequer piscasse os olhos. Raven virou ligeiramente o rosto, espreitando Arthur furtivamente pelo canto do olho, com a mão fechada durante o que parecia ser uma tentativa de conter uma reação.
Outro agente a entrar na sala foi Emilly, segurando o tablet com as duas mãos tão próximas ao peito.
Ela se aproximou da mesa e ali pôs o aparelho sobre a superfície.
― Antes de jogarmos a toalha, acho que vocês deveriam ver isto. — Ela deslizou o dedo pela tela, virou o dispositivo e o deslizou na direção de Arthur e Darcy.
A visualização de um gráfico de ondas sobrepostas na tela permitiu observar duas assinaturas energéticas. A presença do Mephisto era indicada pelas linhas vermelhas, que mantinham um padrão constante e baixo, sem os picos abruptos típicos de possessão ativa. Ao lado, um diagrama de ressonância energética exibia a presença de duas assinaturas.
Aquela correspondente a Benjamin era uma forma trêmula e desbotada, a ponto de se fundir com a assinatura negativa e estável do Mephisto, contrariamente às distorções caóticas que todos esperavam ver.
— O comportamento do Mephisto dentro do Benjamin é… estranho. Quase não briga pela alma dele. É como se estivesse lá, mas não estivesse disputando território. Isso torna o processo de contenção mais previsível. Teoricamente, mais seguro de remover.
Darcy se inclinou um pouco para frente, apoiando as palmas na mesa.
― E você não poderia tentar remover o Mephisto dele?
— Eu? Ah… não. — Ela riu sem graça. — Eu não faço ideia de como isso funciona, na verdade. É mais instinto do que técnica. Se eu tentar mexer nessa ligação agora, posso soltar o parasita de vez e machucar o Benjamin. Ou pior, posso machucar eu mesma. E aí… ninguém ganha nada.
Mikael adiantou-se então. Deu dois passos firmes, apoiou as mãos na mesa com um soar seco e inclinou-se o suficiente para entrar no campo de visão de todos.
― E é exatamente por isso que precisamos dos dois. — Olhou de um para o outro, à procura de aprovação ou, pelo menos, de compreensão. — O Mephisto do Benjamin não se fixa e o do Krynt parece ter vontade própria. São dois extremos da mesma coisa. Se perdermos um deles, perdemos metade da equação e não vamos ter outra chance dessas, então a gente joga a criança para outro lugar.
Com um gesto lento, Arthur passou a mão pela têmpora, pressionando a exasperação que o consumia.
― E o que garante que ele não descontrole em outra base?
Mikael levantou as mãos curvadas e os ombros encolhidos.
― Nada, mas ainda é a opção mais segura na mesa. Krynt está começando a se entender com aquilo lá dentro, e Benjamin tá por um fio. Sem suporte, ele não dura. Perder ele, senhor… O senhor sabe que isso seria jogar fora mais do que uma arma.
Alguns segundos foram passados em silêncio pelo líder. Era possível ver que ele considerava cada variável mais do que uma simples opção, como se estivesse tentando segurar o mundo com as duas mãos.
Por fim, voltou-se para Darcy.
― Algum palpite que não envolva destruição imediata?
A vice entrelaçou os braços, sustentando o seu peso de forma tão despreocupada que contrastava com a sua habitual discordância em relação ao plano de Mikael. Os seus olhos percorreram o tablet, depois o líder e, por fim, o loiro, que não deixou de notar a ausência típica de tensão e um ligeiro sorriso presunçoso.
― É um risco, claro. Mas matar alguém às cegas porque estamos com medo é um risco ainda maior. Se houver outro ciclo, ou se isso escalar, essa escolha pode ser o que define se vamos conseguir controlar o estrago ou afundar junto com ele.
A voz dela não era indiferente, mas sim premeditada, pois estava finalmente conseguindo enxergar camadas que antes não tinha motivo para considerar.
O líder soltou o ar devagar pela boca.
― Nesse caso, Benjamin deve ser transferido para a Base de Contenção Primária no México. O prazo máximo é de vinte e quatro horas. Se algo sair do controle, isso recai sobre você. — Apontou o dedo indicador para Mikael.
― Como sempre!
A aeronave em que embarcaram chamava-se Strix C-7, cortando o céu como um espectro invisível. A sua fuselagem angular, revestida com polímeros de absorção ótica, engolia qualquer vestígio de luz, pelo que se tornava indistinguível contra o manto negro da noite.
Nenhum sinal de radar capturava sua presença, nenhuma torre de controle registrava sua passagem.
Deslizava pelo espaço aéreo fragmentado dos Estados Unidos como um predador na escuridão, carregando um segredo que jamais deveria tocar o solo sem supervisão. Abaixo dele, o deserto do Novo México estendia-se como um cadáver esquecido, seus ossos expostos em forma de ruínas industriais e cidades fantasmas.
Estruturas abandonadas resistiam ao tempo, testemunhas mudas de conflitos antigos, falências de governos locais e evacuações compulsórias. Uma terra sem dono, onde a poeira carregava histórias apagadas antes de poderem ser escritas. Lá embaixo, ninguém olhava para cima. Ninguém sabia o que cruzava suas cabeças naquela noite.
Dentro do Strix, a cabine de transporte refletia a filosofia da agência: funcionalidade extrema, nenhum luxo, nenhuma distração.
O espaço era dominado por um aço frio, linhas retas e assentos fixados diretamente ao chão reforçado para evitar deslocamentos durante turbulências.
Os monitores embutidos nas laterais exibiam, em tempo real, as leituras referentes à missão, à qual se seguiam prateleiras de contenção que mantinham fivelas de segurança, máscaras de emergência e kits de estabilização cinética para garantir a sobrevivência, mas não o conforto.
E no coração daquela estrutura jazia o problema.
Uma cápsula de contenção dominava o compartimento traseiro, sustentada por suportes hidráulicos e ligada a um gerador de energia positiva que pulsava em tons azulados, formando um campo eletromagnético oscilante.
Dentro dela, suspenso como um fragmento de realidade deslocada, estava Benjamin. Seu corpo flutuava alguns centímetros acima da base metálica, os músculos retesados em espasmos ocasionais.
A cápsula era apenas uma solução temporária. Tratava-se de uma medida de emergência que não equivalia a um verdadeiro campo de neutralização, como os da sede da U.E.C. Transportavam uma bomba de instabilidade sobrenatural. A cada minuto que passava, o risco de um colapso interno aumentava.
Mikael conhecia esse perigo. Também sabia o que aconteceria a qualquer agente da U.E.C. que permitisse que esse risco se concretizasse.
Afastou o tablet e levantou o olhar. Precisava de encarar o prisioneiro sem a mediação da tecnologia.
Benjamin não era uma percentagem num relatório. E não era um número num relatório.
Era um garoto.
Um garoto que deveria estar noutro qualquer lugar do mundo. No entanto, estava ali. Condenado a viver dentro de uma cápsula de contenção, aprisionado por forças que ninguém merecia compreender.
O problema residia na indiferença do mundo.
Se Benjamin sobrevivesse, a política da Agência garantiria o seu isolamento. O estudo, o teste, a desumanização seriam a sua realidade.
Se morresse… bem, o relatório final estaria assinado em menos de um dia e a vida continuaria.
A turbulência leve fez a aeronave estremecer.
Mikael tamborilou os dedos no braço da cadeira.
— Quanto tempo até chegarmos?
O piloto respondeu pelo intercomunicador:
— Menos de duas horas até a base de desembarque.
O mundo passava pela janela como um borrão silencioso.
A vastidão árida do norte do México dera lugar a serras e florestas compactas, banhadas por um verde sombrio sob o olhar pálido da lua. As sombras das montanhas se alongavam sobre os vales, delineando formas irregulares na terra adormecida.
Era um território que Mikael teria desejado explorar em outro tempo, mas aquela paisagem não era dele, nem de qualquer pessoa.
A rota aérea sobre o deserto de Sonora seguia um percurso mapeado milimetricamente para evitar qualquer deteção. Abaixo, as dunas sobressaíam-se sob a luz da lua, pontilhadas por vegetação esparsa e estradas abandonadas.
Em alguns pontos, brilhavam fogueiras. Eram comunidades isoladas, rotas de contrabando, postos avançados. Estes postos avançados existiam à margem de qualquer governo. Um mundo que sobrevivia no limiar da legalidade, intocado pelo Reich, ignorado pelos Estados Unidos e ocasionalmente vigiado pela U.E.C.
Às 05h20, as primeiras luzes da Base de Contenção Primária surgiram no horizonte, cintilando entre os recortes escuros da montanha.
A base era um paradoxo, um tumor de concreto e aço incrustado na montanha, com torres de vigilância que lembravam garras. Projetada durante um tratado que permitia aos E.U.A. operar em solo mexicano em troca de proteção contra o Reich. Ela sobrevivia graças a subornos, ameaças e uma rede de bunkers subterrâneos que até os satélites alemães não mapeavam. Hermosillo ficava perto o suficiente para abastecer a base de tequila e prostitutas, mas distante o bastante para manter a farsa da neutralidade mexicana.
Sua independência era um acordo velado. A U.E.C. operava nesse limbo, sabendo que qualquer movimento errado poderia virar o tabuleiro inteiro.
Às 5h45, o Strix C-7 pousou. Suas asas retráteis se retraíram como as de um inseto. Mikael desceu a rampa traseira, enquanto o ar gelado da montanha cortava seu rosto como uma lâmina. A pista estava cheia de marcas de pneu e manchas escuras – era difícil dizer se era sangue de criaturas ou de humanos. Dois agentes arrastavam a cápsula de contenção onde Benjamin estava preso, com o vidro embaçado pelo hálito irregular dele.
— Não encosta nisso. — Um deles alertou para o novato, que se afastou.
No final da pista, o Comandante esperava. Homem feito de ângulos brutos. Seu rosto era talhado em granito, cicatrizes que contavam histórias de facas e garras, e olhos que não piscavam há décadas. Seu uniforme cinza ostentava insígnias da base – uma águia devorando uma serpente –, mas o lenço negro no pescoço era herança de outra vida. Diziam que ele o usava para esconder marcas de mordida de um Mephisto. Diziam muitas coisas.
— Pra ser sincero, eu esperava contrabandistas ou desertores, não você, Mikael.
— Pois é, comandante. — Ele abriu os braços, ignorando solenemente o fato de três rifles seguirem cada movimento seu. — E eu trouxe lembrancinha, viu? Um presente que pisca, apita… e estraga o dia de qualquer um. Nome dele é Benjamin. Uma graça. Tipo um Tamagotchi, só que, se der ruim, não é só ele que morre.
O comandante deixou o olhar deslizar de Mikael para a cápsula, da cápsula para o avião e do avião de volta para ele.
— Por que trouxe o garoto pra cá?
— Porque eu precisava que ele estivesse em algum lugar onde alguém realmente soubesse o que fazer com isso.
“Isso” carregava mais sombras do que palavras, ou pelo menos foi a impressão que o homem teve quando inclinou levemente a cabeça. Ele era bom a ler as pessoas e aquele loiro sempre fora um livro com muitas páginas em branco.
— Isso tá com cheiro de enfeite bonito pra esconder que você tá me passando uma bomba-relógio.
Mikael deu um sorriso forçado e cansado.
— Comandante… eu prefiro dizer que tô compartilhando o problema, mas sim. É mais ou menos isso.
O comandante cruzou os braços e pensou por alguns segundos, não o suficiente para deixar transparecer dúvidas, mas o que bastou para avaliar os riscos. Depois, fez um gesto rápido aos soldados.
— Levem o cilindro para a ala de pesquisa. Quero leitura completa em quarenta minutos.
Os soldados moveram-se às pressas. A cápsula emitia um som agudo enquanto deslizava pelo trilho.
— Você tem sorte que esse lugar vive preparado pra desastre, só não se acomoda.
Mikael levou uma das mãos ao peito, como se estivesse ofendido.
— Eu? A alma da disciplina militar. Se tiver um prêmio pra isso, já pode mandar gravar meu nome.
O brilho azul do cilindro desapareceu por uma das esquinas da estrutura metálica, engolido pela base para um local onde não deveria estar, mas que agora fazia parte do problema de todos.
— Bem-vindo, então. — Estendeu a mão aberta.
Mikael retribuiu o aperto.
— Sempre um prazer. Senhor… Héctor… — Fez um gesto circular com a outra mão. — Qual é o resto mesmo?
— Valdez.
— Ah. Valdez. — Sorriu vergonhosamente. — Cara de alguém que ganha briga usando o que tiver na mão. Garrafa quebrada, cadeira, uma sandália… sei lá.
Héctor não respondeu, apenas arqueou a sobrancelha.
Mikael soltou rapidamente a mão para fazer um gesto apaziguador.
— Ei, tô só quebrando o gelo. Não é como se eu tivesse te entregando pra… sei lá… um regime autoritário por aí. — Ele deu um passo ao lado, abrindo espaço para um soldado passar. — E vocês aqui têm que equilibrar mil placas ao mesmo tempo. Ser base independente no México não é brincadeira.
Valdez não conseguiu conter uma risada de descrença antes de seguir atrás da equipe.
A entrada para o interior da base contrastava impressionantemente com o exterior austero da face do penhasco. Corredores largos e revestidos de aço reluzente ecoavam cada passo, fazendo com que o som parecesse ricochetear em cada superfície.
Havia projeções holográficas nas paredes que mostravam mapas das instalações, detalhes de contenção e gráficos ao vivo de ameaças sob vigilância. Mikael passeava com as mãos enfiadas nos bolsos, observando as telas curiosamente.
— Notável. — comentou ele, lançando um olhar para um painel que mostrava uma leitura de segurança do setor. — Vocês realmente não brincam em serviço. Isso aqui parece filho de laboratório futurista com prisão de alta segurança.
Héctor nem desviou o olhar.
— Nosso trabalho é impedir que o impossível vire manchete, e por isso vocês vivem apagando incêndios que vocês mesmos começam.
Dessa vez, o olhar de Héctor foi direto para ele, num lampejo de ironia passageiro. Mikael esfregou o polegar no nariz, tentando esconder um sorriso.
Seguiram até ao centro de operações, uma sala circular onde dezenas de telas exibiam dados em tempo real que incluíam bioassinaturas não identificadas, níveis de energia negativa e até transmissões da Rede Nova Berlim destinadas à propaganda oficial do Reich. Nas paredes, bandeiras de missões pretéritas eram ostentadas como troféus. Mikael parou diante de uma bandeira preta com um mapa dourado dividido ao meio.
— Nunca imaginei que uma prisão de monstros seria tão… politizada — disse, tocando a borda da bandeira.
Antes que Valdez respondesse, um agente interceptou-os. O homem era um veterano. Cabelo cortado rente, cicatriz no queixo que parecia uma vírgula mal desenhada, e o olhar de quem já viu cidades inteiras virarem cinzas. Seu rifle, um modelo Sturmgewehr-77 modificado, pendia do ombro.
— Então você é o norte-americano que deixa rastro. Tinha curiosidade de ver de perto.
Mikael abriu um meio sorriso.
— E eu tinha curiosidade de saber quem anda apagando meus rastros.
O veterano soltou uma risada seca, quase um estalo.
— Faço o que posso. Chamam isso de manter a casa de pé.
— Serviço completo, então.
— Quando dá tempo.
O clima entre eles foi de alguma forma influenciado por esta circunstância e, embora sem hostilidade, foi evidente a familiaridade existente entre ambos.
Héctor interveio para pôr termo ao duelo antes que se tornasse uma tradição.
— Agente Rojas. Seu posto.
Rojas fez uma continência com um movimento que era, simultaneamente, preguiçoso e preciso.
— Até mais, Olhos de Sangue. Se sobreviver à inspeção do Valdez, me deve uma cerveja.
Mikael assobiou baixo.
Valdez apertou o botão para abrir as portas do elevador, impaciente como sempre, e Mikael entrou logo atrás. As portas já estavam quase se encontrando quando uma voz ecoou pelo corredor:
— Ei! Segura a porta! Segura, por favor!
Mikael não hesitou em esticar o braço. O sensor recuou as portas no último segundo.
A mulher entrou apressadamente, rodeada por aquilo que se convencionou definir como “energia de quem corre contra o tempo” e, ainda assim, sorriu com a aparente tranquilidade de estar com tempo de sobra.
Os seus cabelos pretos caíam-lhe até ao queixo, soltos o suficiente para balançarem quando ela respirou profundamente, embora arrumados o bastante para sugerir que se importava consigo mesma, em como se via refletida. Os fios tinham um brilho macio e natural que combinava com o resto dela.
O blazer escuro ficava-lhe bem nos ombros, acentuando a sua boa postura, e a camisa branca estava impecavelmente engomada. O crachá no pescoço balançava cada vez que ela ajustava a franja. Um cheiro leve de perfume, com notas florais e um fundo mais quente, aconchegante, emanava de si.
— Ufa… obrigada — disse, tocando a lateral do cabelo. — Hoje tá sendo uma maratona.
Os olhos castanhos da mulher subiram devagar até encontrarem os vermelhos dele. E, quando se cruzaram, foi como se houvesse um reconhecimento mútuo que lhes iluminou o olhar.
— Nossa… que bom ver você por aqui, senhor.
Este inclinou a cabeça, permitindo que um sorriso se lhe desenhasse no rosto.
— Pode me chamar pelo nome. “Senhor” me deixa parecendo o Valdez.
Hector soltou um grunhido de reprovação sem nem olhar para eles.
Ela reprimiu uma risada, mas só até a respiração seguinte.
— Tudo bem… Mikael. — Ajustou o terno para retomar certa postura. — Eu não fazia ideia de que você tava de volta. Jurei que só aparecia por essas bandas quando metade da base começava a desmoronar.
— Coincidência ou mau gosto da diretoria em logística.
— Ainda bem que veio. A gente fica um pouco mais… tranquilo quando tem alguém da sua equipe por perto.
Valdez bufou discretamente, com os braços cruzados, à espera de uma reação de Mikael, que continuou sem desviar o olhar da mulher.
— E você? — perguntou ele. — Turno puxado?
— Ah… — Esfregava o polegar no crachá, “polindo” o seu próprio desespero. — Pra quem passa a madrugada improvisando soluções enquanto tenta cuidar uma criança que acorda antes do sol? Eu tô sobrevi…
Interrompeu-se com o olhar perdido por um breve instante, antes de voltá-los para Mikael.
— Não. Minto. Eu capengo, mas sigo assim mesmo.
— Você lida melhor do que a maioria daqui.
— Segredo é simples. — Ela ergueu um dedo a cada item. — Café forte. Resiliência passiva-agressiva. E meu filho. Ele me mantém funcional… quando não tá tentando me deixar louca.
A resposta arrancou de Mikael um sopro de riso pelo nariz. Valdez virou os olhos.
— Podemos focar? — disse, absolutamente incapaz de lidar com aquele clima. — Pelo amor, Helena.
— Relaxa, chefe. — Deu dois tapinhas no braço dele.
Ding
As portas do elevador se abriram.
Helena deu um passo para fora, mas virou-se antes de seguir.
— Foi bom te ver, Mikael.
— Também foi. — A postura deste não mudou, mas o tom suavizou.. — Vai lá, cuida do turno. E… cuida do seu garoto.
Ela sorriu de uma forma que iluminou todo o corredor.
— Sempre.
E prosseguiu os seus afazeres, embalado pelo suave aroma do perfume e por uma estranha sensação de calor no ar.
Valdez lançou um olhar enviesado a Mikael.
— Não.
— Não o quê? — perguntou, fingindo inocência.
— Não estou lidando com isso. Nem mais uma vez. — Valdez caminhou, resmungando. — Vocês dois… impossível.
Mikael deu um meio sorriso enquanto seguia atrás dele.
Andaram até à porta blindada no fim do corredor. Duas câmaras rotativas os acompanharam enquanto se aproximavam, audível o clique seco dos motores internos. Valdez passou o crachá pelo leitor e a trava soltou-se com um estalo forte.
A sala do laboratório abriu-se como uma caixa de metal e vidro. O teto era alto, sustentado por barras reforçadas que se cruzavam acima deles como a malha de uma prisão sofisticada. O chão tinha um brilho frio, que refletia as faixas de luz branca projetadas pelas lâmpadas embutidas no teto.
Mesas longas ocupavam as laterais, repletas de instrumentos da mais alta precisão e peças desmontadas de aparelhos. Telas transparentes pairavam a alguns centímetros sobre as superfícies, onde se viam cores vivas. Num dos cantos, um tanque cilíndrico de contenção estava preenchido com um líquido esverdeado opaco com ondulações leves, tal como se algo estivesse à sua mercê.
No entanto, o centro da sala captava toda a atenção pela maca de contenção, cercada por cinco braços mecânicos retraídos, tendo cada um pontas distintas na forma de pinças, lâminas e sensores.
Mikael parou ao lado de Valdez.
O comandante inspirou fundo.
— Ele está consciente?
— Não — respondeu um pesquisador, ajustando um dos monitores —, mas o sistema límbico ainda está lutando.
Os dedos de Benjamin estavam em espasmos involuntários, e as unhas raspavam a superfície de vinil. A cabeça dele girava de um lado para o outro, como se tentasse escapar daquilo que somente ele conseguia ver. A respiração ofegante repercutia-se nos alto-falantes do monitor como um um ciclo de pânico rápido e incontrolável.
Dois Agentes de Campo, que estavam em guarda, precisaram avançar. O primeiro segurou os ombros, enquanto o outro ajustava uma nova amarra acima da testa.
O Pesquisador aproximou-se com uma seringa previamente preparada na mão esquerda enluvada. O fluido azul no interior do cilindro captou a luz do monitor, cintilando como se de um ser vivo se tratasse.
Benjamin debateu-se contra a sua vontade num último esforço de resistência, um surto de força que fez a maca tremer sobre as suas bases. Os seus olhos abriram-se, tornando-se dois orbes brancos cheios de puro terror, antes que a agulha alcançasse o seu pescoço.
O sibilo do êmbolo ao ser pressionado pareceu mais alto que todos os outros sons na sala. O corpo da criança arqueou-se durante o qual todos os músculos se tensionaram na despedida da consciência, antes de este colapsar de volta na maca.
A respiração ofegante diminuiu para um ritmo artificialmente calmo e, ao mesmo tempo, os monitores começaram a emitir um bip constante e uniforme.
Mikael não disse nada, mas os seus olhos não desviavam da linha fina de sangue que secava no braço do menino, como se aquela pequena mancha dissesse mais do que qualquer declaração.
Hector esperou alguns segundos, longos o suficiente para perceber que Mikael não falaria por si. Então, recomeçou, agora com a voz mais tensa:
— Certo, agora você vai me dizer o que diabos passou pela sua cabeça quando trouxe a criança pra cá, porque, honestamente, ainda não encaixei isso em nenhuma lógica sua.
O agente levantou o olhar para um ponto desconhecido, ainda absorto num pensamento profundo.
— Você quer a versão curta ou a que não vai te deixar dormir?
— Eu quero a que faça sentido.
Mikael respirou fundo e cruzou os braços.
— Quando você tem uma ameaça que não pode ser contida, não pode ser controlada… às vezes a única opção racional é ter uma ameaça maior na reserva.
Os olhos de Hector se estreitaram.
— Você está falando de usar uma criança como…
— Estou falando da realidade. — interrompeu. — Existem forças nesse mundo que não respondem à diplomacia ou à força convencional. Quando você encontra algo que pode rasgar a realidade, precisa ter algo equivalente do outro lado da balança.
— Essa é sua solução? Criar seu próprio monstro?
Mikael olhou de volta para o garoto.
— Não estou criando nada. Estou… recolocando as peças no tabuleiro. E se um dia a peça mais perigosa decidir se mover contra nós… — Os seus olhos cruzaram-se novamente com os de Valdez. — É reconfortante saber que eu tenho outra peça que compreende as mesmas regras do jogo.
Hector examinava o rosto de Mikael por qualquer sinal de incerteza, e não encontrou nada.
— E se você estiver errado? E se essa “peça” decidir que prefere jogar do lado deles?
O loiro sorriu presunçosamente.
— Então pelo menos terei a consolação de saber que serei destruído por algo que cultivei. É mais do que a maioria das vítimas dessas coisas consegue dizer.
O comandante balançou a cabeça, mas seu tom estava menos resistente.
— Mesmo se eu aceitar essa lógica… uma criança precisa de mais do que contenção e monitoramento. Isso é um ser humano.
— Concordo plenamente, e é por isso que temos a pessoa certa aqui mesmo na base. Ela já tem experiência em cuidado, mas também com compreensão emocional. Ela é perfeita para lidar com crises, medo e aquela sensação de estar completamente perdido.
— Você está descrevendo um psiquiatra.
— Estou descrevendo uma mãe.

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