Capítulo 69 - Lampejo de esperança
00h32, subsolo, ala leste.
Três agentes desciam os degraus de ferro corroído. O metal exalava um odor metálico misturado com a umidade que escorria pelas paredes escuras do poço estreito.
Samuel e Owen carregavam o peso morto de um corpo dentro de um saco isolante reforçado, enquanto Susan caminhava à frente, segurando uma lanterna de feixe ajustável que brilhava trêmula através das paredes cobertas de mofo.
Os uniformes eram volumosos, feitos de camadas de tecido sintético fortalecido, projetados para bloquear a emissão de partículas energéticas.
As máscaras de gás, com filtros avançados embutidos, cobriam seus rostos e tornavam a respiração um esforço consciente, já que o som de cada respiração filtrada era abafado e mecânico.
Nas costas de todos, pequenos módulos de resfriamento que emitiam um zumbido contínuo protegiam contra a radiação negativa que permeava o lugar que estavam.
— Sempre um passeio no inferno, não é? — disse Owen, com a voz abafada pela máscara, os braços doloridos sob o peso do cadáver.
— Você queria o quê? Férias no Caribe? — Samuel respondeu sem virar o rosto. — Se quer glamour, entrou no setor errado.
— Pelo menos dá pra dizer que estamos entre os melhores. Só os melhores têm o privilégio de carregar esses bonitos até aqui.
No final da escada, o corredor se revelou uma extensão opressiva. Os tijolos das paredes, cobertos de musgo murcho, absorviam a pouca luz oferecida pelas lâmpadas fluorescentes acima, que oscilavam em constante agonia.
A atmosfera saturada de energia negativa latejava à força quase tátil, exercendo uma pressão contra o peito dos agentes no formato de uma onda lenta e imperceptível.
— Dois corpos em Harrisburg — Susan falou. —, e ainda faltam mais dois. Aposto que o Repositório já está no limite.
— Quatro, se estivermos com sorte. — Owen retrucou. — Eu aposto que dois foram pulverizados. Quem sabe sobrou uma unha para identificarmos.
Samuel parou ao ouvir isso. Ajustou o corpo mais uma vez e disse:
— Esse lugar já era ruim antes. Agora com energia negativa vazando das paredes, parece que estamos dentro do próprio Mephisto.
À frente, a porta de metal corroída aguardava, com suas inscrições ameaçadoras pintadas em vermelho desbotada: “Zona Contaminada. Risco de Morte”.
Susan ergueu a lanterna e iluminou os arredores, como se procurasse algo que pudesse torná-los mais seguros naquele corredor desolador.
Owen apoiou o corpo no chão por um momento e tocou o batente com as luvas grossas. A ferrugem manchou o material como sangue seco.
— Esse lugar deveria ser demolido. Nada de bom vem daqui. Só cadáveres e… — Ele hesitou, antes de completar. — Seja lá o que nos espera quando abrirmos essa maldita porta.
Samuel se aproximou, ajustando a máscara, enquanto o módulo de resfriamento em suas costas soltou um chiado. Ele colocou a mão sobre a alça da porta e olhou para Susan.
— Pronta?
Ela assentiu, ajustando a lanterna.
— Sempre.
A porta se abriu com um rangido que cortou o ar.
O Repositório dos Mortais se estendia para o alto como uma caverna infindável, pela qual o ar era um miasma de podridão e energia negativa. Fileiras de prateleiras enferrujadas de metal subiam até o teto, contendo sacos de isolamento que encapsulavam cadáveres selados.
As luzes fluorescentes, penduradas em intervalos irregulares, piscavam como se estivessem à beira da morte, lançando breves flashes. O brilho instável refletia nas superfícies dos metais e nas poças viscosas espalhadas pelo chão, que acumulavam líquidos escuros ao longo de padrões irregulares, deixando marcas impregnadas no concreto como feridas abertas.
As paredes exibiam as cicatrizes de seu próprio ambiente, cobertas por uma camada grotesca de musgo murcho e marcas de mãos sublimadas, para testemunhar as tentativas desesperadas de fuga ou resistência.
As partículas de energia negativa, compostas de instabilidades moleculares, vibravam em frequências baixas, mas o suficiente para interferir nas conexões neurológicas dos agentes, causando uma sensação crescente de desorientação e náusea. Até mesmo os sistemas de filtragem nas máscaras de gás estavam trabalhando em seus limites, lutando audivelmente para purificar o ar contaminado.
Sob seus pés, o piso, marcado por décadas de corpos que passavam e falhas estruturais, rangia. Todas as rachaduras emitiam um vapor que enchia a sala com um odor ácido, forte como amônia e ferro oxidado.
Samuel sentiu um frio percorrer sua espinha, mesmo com o isolamento. Ele segurou o cadáver nos ombros e deu um passo à frente.
— Vamos logo com isso. Quanto mais tempo passarmos aqui, mais cedo nos tornaremos parte da mobília.
— Se existem chances de encontrar os outros, essas chances são mínimas. — disse Owen. — Mesmo que a equipe de busca vasculhe de ponta a cabeça a área onde a operação ocorreu, é possível que os corpos dos outros agentes já tenham sido consumidos por algum tipo de ritual esquisito.
— Não podemos desistir. — Samuel retrucou. — Mesmo que seja uma busca por uma agulha em um palheiro, devemos tentar. Você já viu o que essas coisas fazem com o cadáver de um de nós.
Owen suspirou, uma expiração pesada carregada com o ônus do estresse.
— Não dá pra deixar de lado.
A missão em Harrisburg havia sido um fracasso, uma armadilha. A perda de quatro agentes experientes foi um grande revés para a agência, e a incerteza sobre o destino deles pairava como uma nuvem pesada sobre todos.
Mais adiante, eles chegaram ao Precipício, um ponto de destruição de itens que, ao entrarem em contato com a energia negativa dos Mephistos, tornavam-se vetores de destruição. Era uma depressão abissal para a qual as bordas irregulares pareciam vivas pelo vapor constante que subia, trazendo um cheiro ácido que irritava a garganta.
Ali, qualquer objeto contaminado era descartado em uma tentativa desesperada de conter uma infecção antes que ela se espalhasse.
— Então, Sam, você já viu alguma coisa voltar depois de ser jogada aqui? — Owen falou, talvez para distrair-se da opressão do lugar.
— Só histórias. Dizem que os objetos… ou corpos… simplesmente desaparecem. Mas que, às vezes, há barulhos. Não eco. Algo vivo.
— Que merda você acabou de falar? Isso nem é possível.
Sam inclinou-se para ele, e com um tom brincalhão, perguntou:
— Ficou com medo?
— Não tô com medo, só não acho que isso faz sentido.
— Na verdade, ninguém sabe o que faz sentido aqui.
Quando alcançaram o platô que antecedia o Precipício, o ambiente parecia querer engoli-los. A cratera imensa estava coberta por uma névoa quase sólida, que emanava um cheiro químico e pesado. O calor que subia dos módulos de resfriamento nas costas dos agentes criava pequenos turbilhões na fumaça baixa.
Samuel largou uma ponta do saco que segurava e esfregou as mãos contra as laterais das calças, tentando aliviar o formigamento nos dedos. Ele olhou para Owen, então para Susan, e por fim para o saco que acabavam de trazer.
Ele segurou firme a alça do saco e se preparou para lançá-lo. Ao mesmo tempo, Samuel fazia o mesmo na outra extremidade.
Com um impulso sincronizado, o largaram, assistindo o volume deslizar pela beirada e desaparecer. Não houve som de impacto, apenas o vazio absoluto consumindo mais uma carga.
Samuel ficou parado por um instante, olhando para o buraco como se esperasse alguma coisa.
— Sabe o que isso me lembra?
— Lá vem você de novo com suas teorias. — cortou Owen.
— Um filme que vi uma vez. Uma prisão vertical, níveis diferentes. O topo tem tudo, e os de baixo ficam com as sobras. Cada vez mais fundo, mais desespero.
— E o que isso tem a ver com a gente?
— Talvez não seja só um lugar para deixar corpos. Talvez isso aqui seja um nível. Um degrau para algo pior.
— Não faz diferença o que tem lá dentro, Sam. Está morto. Tudo isso já morreu.
Samuel ficou parado por um momento, como se esperasse algo mais.
— Nunca sabemos o que acontece depois, sabe?
Susan apagou a lanterna, virou-se e começou a caminhar de volta.
— Já acabou. Vamos.
Owen olhou para Samuel antes de segui-la.
— Talvez ela esteja certa. Talvez a gente devesse parar de pensar tanto nisso.
Mesmo cercados por adversidades, ainda persistia em seus corações um lampejo de esperança. Eles mantinham a firme crença de que, apesar das sombras que os envolviam, seria possível enxergar um feixe de luz que os guiaria em seus caminhos arriscados.
Para esses indivíduos, a existência pendia por um fio tênue, atravessando uma paródia de incerteza e perigo. Cada dia trazia o fardo pesado de uma missão árdua: salvaguardar um planeta que muitas vezes eles próprios negligenciavam.
Apesar de sua existência precária e atormentada, eles se negavam a desistir da esperança de um futuro melhor, sustentados por um resquício de otimismo que resistia em se extinguir, uma promessa delicada de que, eventualmente, as trevas seriam dissipadas e a luz da salvação resplandeceria sobre uma existência desolada.
Owen entrou no quarto e fechou a porta sem olhar para trás. Ele largou o capacete sobre a mesa, afrouxou os fechos do uniforme e deixou o tecido escorregar pelos ombros até ser abandonado no canto, formando um amontoado de fibras sintéticas desgastadas.
Ainda era possível sentir os músculos latejarem com a lembrança recente do trabalho concluído no Repositório, como se o próprio corpo se recusasse a esquecer o que havia enfrentado. Ele passou uma mão pela testa, afastando o suor que ainda restava.
Sentou-se em uma cadeira, apoiando os cotovelos nos joelhos por um breve instante antes de endireitar a postura. Na mesa à sua frente estava seu notebook.
A tampa se abriu sob seus dedos e a tela iluminou o espaço com um brilho frio. Esperou o sistema iniciar, sem pressa, até que a notificação piscasse no canto: uma nova mensagem, chegada duas horas antes.
O remetente trouxe consigo um nome que ele não via, mas carregava sempre no coração. Claire.
Ele clicou.
A mensagem tomou a tela com palavras familiares.
Oii!
Hoje foi um dia especial. Noah deu seus primeiros passos. Fiquei tão emocionada que me sentei no chão com ele, acompanhando cada movimento. Ele está ficando tão forte, tão determinado. Gravei o momento para você, está no vídeo que enviei. Também tirei uma foto. Sei que você vai amar.
O anexo foi carregado lentamente. A primeira imagem preencheu a tela. Uma fotografia de sua esposa e do pequeno Noah apareceu na tela.
Ela estava deitada ao lado do bebê, com os rostos próximos um do outro, um sorriso suave se desenhando em seus lábios e um beijo para a câmera. Noah, vestido com um macacão branco, tinha os mesmos olhos azuis da mãe.
Seu cabelo era castanho, como o do pai, e esparso, parecendo ainda mais suave na luz ambiente. Suas bochechas levemente rosadas davam ao rosto uma doçura que apertava o peito de Owen.
Em seguida, o vídeo começou a ser exibido.
A imagem estava um pouco trêmula, mas foi rapidamente ajustada para focar na pequena sala de estar. A sala estava iluminada por uma luz suave que entrava pelas cortinas.
Noah estava no centro, de pé, com os braços erguidos no ar, tentando se equilibrar em suas pernas curtas. Seu macacão estava levemente amassado, e seus pés descalços estavam apoiados no carpete felpudo.
— Vai, meu amor, você consegue! Dá um passo pro papai ver!
A criança inclinou o tronco para a frente. Ela balançou por um instante, com a concentração estampada no rosto. Então, o pé direito avançou, tropeçando um pouco, seguido pelo esquerdo.
— Isso! Meu Deus, você está andando, Noah! Olha só pra você, que coisa mais linda!
Deu mais dois passos antes de desequilibrar e cair sentado no carpete. A queda foi leve, sem sustos, e ele olhou para a câmera com um sorriso largo que revelava duas pequenas fileiras de dentes ainda em formação.
— Você está incrível, meu bebê!
Com uma risada baixa e cheia de ternura, ela se aproximou dele, fazendo com que a câmera balançasse levemente.
Em seguida, o menino levantou os braços para a câmera, como se estivesse pedindo colo. Claire apareceu parcialmente na imagem, agachando-se para pegá-lo.
— Vem cá, meu amor.
O vídeo terminou com a imagem desfocada, mas ainda era possível ouvir a risada dela e de Noah, como um caloroso lembrete da vida simples e cheia de significado que aguardava Owen.
Era um momento transbordando amor, destinado a ser guardado no coração de quem o assistisse.
De volta ao e-mail, havia mais uma mensagem.
Estamos sentindo tanto a sua falta. A cada dia ele se parece mais com você, sabia? Tem o seu sorriso. Às vezes, fico olhando para ele e pensando no quanto esse menino vai adorar ouvir todas as histórias sobre você. Por aqui, tudo segue tranquilo. O clima de Harpers Ferry está ótimo, e as tardes têm sido perfeitas para passeios curtos. Levei o Noah até o rio outro dia. Ele adorou ouvir o som da água correndo e quase tentou pegar uma folha que passou flutuando.
Sei que as coisas aí não são fáceis, mas quero que você saiba que estamos bem. Estamos te esperando, com muita saudade e amor.
Cuide-se, por favor.
Te amamos muito. Volte para nós assim que puder.
Claire.
Havia algo quase cruel na distância que os separava, mas, ao mesmo tempo, isso dava sentido a tudo. Ele respirou fundo e digitou uma resposta curta:
Obrigado por tudo. Vocês dois são minha força. Eu voltarei para casa, Claire, prometo.
Owen clicou em enviar e desligou o notebook. O silêncio no quarto voltou a tomar conta do espaço. Desta vez, não era tão vazio. Havia um eco de algo bom. Havia uma razão.
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