Capítulo 70 - Ciclo de autocobrança
Sala de Treinamento, ala T-02.
A estrutura se expandia como um campo de batalha simulado, projetado para testar a resistência e a habilidade dos participantes. O teto alto sustentava-se sobre vigas metálicas robustas, iluminado pela luz branca refletida nas paredes de aço escovado. A claridade intensa eliminava qualquer ponto cego, tornando o ambiente opressivo e sem espaço para erro ou refúgio.
O solo era segmentado em placas modulares, capazes de alternar entre diferentes texturas — desde superfícies lisas e escorregadias até trechos irregulares, que cediam sob os pés. Torres de alvos móveis deslizavam por trilhos camuflados, mudando de posição em padrões imprevisíveis, forçando reações rápidas e decisões instantâneas.
Ao longo das laterais, manequins de combate, moldados em polímeros de alta resistência, exibiam marcas profundas de batalhas passadas. Parte deles apresentava fissuras nos torsos, como evidência de golpes brutais, embora outros estivessem inutilizados, com membros arrancados e deformações irreparáveis. O movimento de suas bases giratórias deixava claro que ainda estavam em funcionamento, prontos para novos impactos.
No andar superior, uma sala de supervisão se projetava sobre a arena. Separada por uma parede de vidro à prova de balas, abrigava um painel de controle com monitores que exibiam leituras corporais, padrões de ataque e níveis de desempenho.
Raven observava atentamente o treinamento abaixo de braços cruzados. Ao seu lado, Emilly inclinava-se sobre a grade metálica, concentrada nela, não desviando a atenção de nenhum detalhe. O silêncio entre eles não era mero acaso – naquele ambiente, qualquer erro era um aprendizado brutal, e o aperfeiçoamento vinha à força, sem concessões.
— Ainda tá aguentando. — Emilly observou. — Mas a respiração dela tá descompassada. Vai se esgotar mais rápido do que devia.
— Não é nenhuma surpresa. Desde que voltou da missão, não dá trégua pro próprio corpo.
— E por quê?
— Porque, na cabeça dela, falhou.
A resposta incisiva de Raven encerrou a conversa por um momento. As duas voltaram a se concentrar em Mandy, que estava no centro da sala tendo a katana firmemente na mão e os olhos fixos no ponto de partida de seu treinamento.
Ela começou com uma respiração profunda, com os ombros subindo e descendo em ritmo controlado. Ao inspirar, havia um aumento da energia positiva, sentida como um calor que se acumulava no abdômen e irradiava força para os membros. Por meio da expiração, a energia negativa era canalizada para a lâmina, fazendo com que a katana adquirisse um brilho sutil, quase imperceptível, mas letal.
O sistema holográfico projetou o primeiro oponente: um humanoide armado com uma espada curta. Mandy ajustou sua postura, garantindo que seus pés permanecessem paralelos e que o peso do corpo estivesse distribuído uniformemente. Seu primeiro golpe, um uppercut certeiro, atingiu o tronco do holograma antes que ele pudesse atacar.
— As taxas de dispersão de energia estão anormais para alguém no nível dela. — Emilly observou, os olhos grudados no monitor. — E olha isso… Ela está começando a soltar golpes fora do alcance da katana. Tá evoluindo, que orgulho!
Raven não disse nada por um momento, pensando na movimentação de Mandy. Acompanhava cada ataque, ajuste sutil na postura e erro disfarçado dos pés à cabeça.
— Está compensando a falta de força física com técnica. — comentou, sem desviar a atenção. — Mas está forçando o próprio limite mais do que deveria.
Emilly ergueu uma sobrancelha, desviando o olhar do monitor para Raven.
— Depois do que aconteceu, faz sentido. — disse, apoiando o cotovelo na mesa de controle. — Quem não faria o mesmo depois de quase morrer?
Lá embaixo, Mandy vacilou. A lâmina passou no vazio, e ela precisou ajustar o movimento no último segundo para não se expor. Xingou entre os dentes, irritada. Emilly notou o tremor nos dedos dela quando voltou a segurar a katana.
— O problema não é o esforço. O problema é que, se continuar assim, ela não vai durar muito.
Emilly soltou um suspiro e recostou-se contra o painel, cruzando os braços.
— Essa menina tem talento, isso ninguém pode negar. Mas querer carregar tudo sozinha nunca acaba bem. — O tom saiu mais sério do que antes. — Se ninguém parar isso agora, ela vai acabar se destruindo.
Raven finalmente desviou o olhar da garota e encarou Emilly. Sua expressão era um misto de concordância silenciosa e algo mais profundo que ela raramente deixava transparecer.
— A questão é se ela vai deixar alguém ajudar. Porque, no momento, Mandy só está ouvindo as próprias falhas.
Mandy progredia em sua execução. Com eficácia e sem desperdício de ação, sua katana cortava o ar a cada golpe, encaminhando-o para o seguinte. Um segundo holograma apareceu à sua direita, obrigando-a a girar o quadril e direcionar energia para um corte horizontal que eliminou o oponente em um único traço.
No entanto, algo havia mudado. Logo em seguida, o brilho na lâmina diminuiu. A transmissão de energia foi interrompida por um milésimo de segundo.
— A estabilidade está comprometida. — Emilly franziu a testa, os olhos atentos ao monitor. — A energia não está fixando na lâmina.
— Isso acontece quando a mente não acompanha o corpo. Tem algo tirando o foco dela.
— Não seria melhor intervir?
— Não. Ela precisa recuperar o controle sozinha. Se interrompermos agora, só vamos adiar o problema.
Mandy sentia o peso daquela verdade antes mesmo de ela ser expressada. A figura de Mavie invadiu sua mente de repente e vividamente. O odor de sangue, o sabor azedo do medo, a sensação de ser sugada pelo abismo naquela madrugada. Ela sobreviveu. Contudo, uma parte dela ainda não encarava isso como um triunfo.
O suor em sua mão se intensificou.
Um terceiro holograma surgiu diante dela — mais veloz, mais audacioso. Mandy tentou reagir, apesar de sua postura não estar em harmonia. O ataque ocorreu antes que ela conseguisse se restabelecer.
A queda foi dura, os joelhos rasparam no chão, os pulmões esvaziaram-se em um engasgo. O punho ainda segurava a katana, mas o tremor traía qualquer impressão de controle.
O mundo se fechou em sua própria voz, carregada de desprezo.
— Porra! Por que você é tão inútil, Mandy? Por que não consegue fazer nada direito?!
Emilly desviou o olhar, desconfortável com o que ouvia. Raven, por outro lado, manteve-se inabalável.
— Ela precisa passar por isso. — A voz saiu sem suavidade, sem qualquer tentativa de consolo. — Fraqueza não desaparece com palavras gentis.
A outra soltou um suspiro pesado, cruzando os braços ao se encostar no painel. Sua expressão alternava entre irritação e algo mais difícil de definir.
— O que me incomoda é essa necessidade de carregar tudo sozinha. Dá pra ver o esforço, o quanto ela quer evoluir, o quanto precisa se sentir útil…
O olhar de Emilly recaiu sobre a arena, onde a jovem avançava contra um novo conjunto de alvos. Os golpes saíam com força, mas carregavam algo ríspido, um descompasso entre intenção e execução. A energia que deveria fluir de forma coesa se dissipava em faíscas irregulares.
— Ela se joga nesse ciclo como se fosse a única saída. É como assistir alguém correndo na direção de um muro, achando que, se bater com força suficiente, ele vai ceder.
— O problema não é o esforço. É o medo do fracasso. — Raven acompanhou Mandy errar um golpe por centímetros, o maxilar travado ao corrigir a postura. — Ela não está apenas enfrentando esses hologramas. Está tentando derrotar algo que aconteceu. Mas, no fundo, está brigando contra si mesma.
Emilly virou a cabeça devagar, analisando-a com um ceticismo que beirava a curiosidade.
— Fala isso como se ninguém aqui tivesse feito o mesmo. Vai dizer que nunca tentou resolver tudo sozinha?
Raven arqueou uma sobrancelha, mas não desviou os olhos do treino.
— Não se trata de estar sozinha. A questão é a linha entre aprender com os erros e deixar que eles te consumam. Mandy cruzou essa linha. Se continuar nesse ritmo, não vai durar.
Um riso seco escapou, carregado mais de resignação do que de humor.
— Então o que fazemos? Deixamos ela se quebrar pra aprender ou interferimos antes que isso aconteça? Porque, sinceramente, não vejo ela aceitando conselhos tão cedo.
O silêncio que antecedeu sua resposta parecia pesar mais do que as palavras.
— Nada.
O impacto da lâmina contra o alvo ressoou pelo espaço abaixo delas, um golpe carregado de força, mas comprometido pelo leve tremor nos dedos da espadachim. Pequenos detalhes que não passavam despercebidos a quem observava de perto.
— Você já foi assim, não foi? — A pergunta veio sem julgamento, apenas curiosidade.
Raven desviou o olhar por um instante, refletindo antes de responder. Quando voltou a encarar a cena, a resposta veio sem rodeios.
— Fui. E aprendi do jeito difícil que ninguém vence esse tipo de luta sozinha.
Um sorriso enviesado surgiu no rosto de Emilly, carregado de ironia e algo que se assemelhava a respeito.
— Quem diria, Raven. No fim, você tem um coração.
A outra revirou os olhos, mas havia um brilho sutil de humor ali.
— Não se anima. Isso não significa que vou sair distribuindo abraços encorajadores.
— Nem esperava. — O riso escapou, leve. — Mas talvez devesse. Mandy está precisando de um agora.
As duas voltaram a observar a sala. Nada do que diziam ou pensavam poderia alterar o que se desenrolava diante delas.
“Se eu não melhorar, se eu não ultrapassar isso, vou acabar morta da próxima vez.”
Esses pensamentos ecoavam em sua mente como um tambor incessante.
Mandy, não obstante seu visível cansaço, não diminuiu o ritmo. Todos os golpes precisavam de algo mais profundo do que a força física, algo que as duas mulheres na cabine reconheciam, mas sabiam que somente a garota poderia superar.
Ela se levantou novamente, com os punhos cerrados. Respirou fundo mais uma vez, forçando a energia de volta ao seu corpo. Sentiu o calor voltar, mesmo que fosse apenas um fragmento da força que ela desejava.
O suor escorria pela lateral de seu rosto, pingando no piso com um ritmo inquietante
Inspirou profundamente, sentindo a energia negativa fluir como um rio caudaloso dentro de si. Canalizou-a para os braços, para o centro de seu corpo, fortalecendo os músculos além do limite natural. Expirou devagar, direcionando a energia positiva para os tendões e ligamentos, buscando resistência onde antes havia fraqueza.
— De novo. — murmurou, ignorando a ardência nos pulmões e o tremor nas pernas.
O holograma se materializou à sua frente, mais ágil e agressivo que os anteriores. Ele avançou com um golpe vertical, e a garota ergueu a katana em um bloqueio.
“Antecipe. Não reaja, ataque primeiro.”
Rapidamente, conseguiu escapar para o flanco de seu oponente antes que a lâmina pudesse recuar. Ela fez um corte diagonal ao concentrar a energia negativa na ponta da arma. O holograma se dissolveu em fragmentos de luz, porém ainda estava preparada para o próximo golpe.
Manteve a lâmina em posição de guarda e ajustou os pés no piso de metal, deslizando em um ângulo que lhe dava vantagem contra o próximo oponente.
Quando o novo inimigo apareceu, mais alto e aparentemente mais forte, ela avaliou sua postura antes de agir.
“Força sobre agilidade. Eu posso usar isso.”
Seu oponente balançou a arma, um golpe largo e previsível, e ela se esquivou sob a trajetória fatal. Colocou o peso no pé esquerdo e girou o corpo em um arco, abrindo a lâmina para cortar o holograma na altura da cintura. Mais uma vez, ele se estilhaçou em partículas.
— Não posso… perder o foco. — disse, com o peito subindo e descendo rapidamente.
Seus pensamentos se voltaram, brevemente, à luta contra Mavie. Lembrou-se da sensação de impotência, do golpe que quase a fez sucumbir, da voz dentro de sua cabeça repetindo que ela não era forte o suficiente.
“Eu não sou fraca. Não sou inútil.”
Engoliu em seco e ajustou a postura, sentindo o calor da energia percorrer novamente suas veias. Desta vez, concentrou-se na respiração. Inspirou profundamente, enchendo o diafragma, e liberou o ar devagar, distribuindo o fluxo energético para a katana. O fio brilhou por um instante.
O próximo holograma surgiu com dois adversários simultaneamente. Calculou rapidamente as distâncias, os ângulos de ataque e defesa, e deu um passo à frente.
O primeiro golpe veio de cima, mas ela desviou com um recuo mínimo, mantendo o equilíbrio. Contra-atacou com um corte lateral que atingiu o adversário à direita, antes de girar sobre o calcanhar e bloquear a estocada do segundo holograma.
— Droga! — gritou, quando sentiu o impacto forte demais para segurar a guarda. A katana quase escapou de sua mão, mas ela recuperou o controle no último segundo.
Seus pés deslizaram para trás, ganhando espaço para reagrupar. Apertou os dentes e atacou com tudo o que tinha, a lâmina cortando em um arco vertical que desfez os dois hologramas de uma vez.
Ofegante, caiu de joelhos, os braços pendendo ao lado do corpo.
“Por que ainda não é suficiente?”
Enxugou o suor do rosto com a manga e levantou-se mais uma vez.
— De novo. — disse, apertando o cabo da katana como se sua vida dependesse disso.
Porque, no fundo, ela sabia que dependia.
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