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    Sala de Treinamento, ala T-02.

    A estrutura se expandia como um campo de batalha simulado, projetado para testar a resistência e a habilidade dos participantes. O teto alto sustentava-se sobre vigas metálicas robustas, iluminado pela luz branca refletida nas paredes de aço escovado. A claridade intensa eliminava qualquer ponto cego, tornando o ambiente opressivo e sem espaço para erro ou refúgio.

    O solo era segmentado em placas modulares, capazes de alternar entre diferentes texturas — desde superfícies lisas e escorregadias até trechos irregulares, que cediam sob os pés. Torres de alvos móveis deslizavam por trilhos camuflados, mudando de posição em padrões imprevisíveis, forçando reações rápidas e decisões instantâneas.

    Ao longo das laterais, manequins de combate, moldados em polímeros de alta resistência, exibiam marcas profundas de batalhas passadas. Parte deles apresentava fissuras nos torsos, como evidência de golpes brutais, embora outros estivessem inutilizados, com membros arrancados e deformações irreparáveis. O movimento de suas bases giratórias deixava claro que ainda estavam em funcionamento, prontos para novos impactos.

    No andar superior, uma sala de supervisão se projetava sobre a arena. Separada por uma parede de vidro à prova de balas, abrigava um painel de controle com monitores que exibiam leituras corporais, padrões de ataque e níveis de desempenho.

    Raven observava atentamente o treinamento abaixo de braços cruzados. Ao seu lado, Emilly inclinava-se sobre a grade metálica, concentrada nela, não desviando a atenção de nenhum detalhe. O silêncio entre eles não era mero acaso – naquele ambiente, qualquer erro era um aprendizado brutal, e o aperfeiçoamento vinha à força, sem concessões.

    — Ainda tá aguentando. — Emilly observou. — Mas a respiração dela tá descompassada. Vai se esgotar mais rápido do que devia.

     — Não é nenhuma surpresa. Desde que voltou da missão, não dá trégua pro próprio corpo.

     — E por quê?

    — Porque, na cabeça dela, falhou.

    A resposta incisiva de Raven encerrou a conversa por um momento. As duas voltaram a se concentrar em Mandy, que estava no centro da sala tendo a katana firmemente na mão e os olhos fixos no ponto de partida de seu treinamento.

    Ela começou com uma respiração profunda, com os ombros subindo e descendo em ritmo controlado. Ao inspirar, havia um aumento da energia positiva, sentida como um calor que se acumulava no abdômen e irradiava força para os membros. Por meio da expiração, a energia negativa era canalizada para a lâmina, fazendo com que a katana adquirisse um brilho sutil, quase imperceptível, mas letal.

    O sistema holográfico projetou o primeiro oponente: um humanoide armado com uma espada curta. Mandy ajustou sua postura, garantindo que seus pés permanecessem paralelos e que o peso do corpo estivesse distribuído uniformemente. Seu primeiro golpe, um uppercut certeiro, atingiu o tronco do holograma antes que ele pudesse atacar.

    — As taxas de dispersão de energia estão completamente fora do padrão para o nível dela.— Emilly observou com os olhos fixos no monitor. — E olha só isso… Mandy está liberando golpes que ultrapassam o alcance físico da katana. Nossa garota está evoluindo, que orgulho!

    Raven não perdia um único movimento da garota. Os seus olhos acompanhavam cada ataque, qualquer ajuste sutil da postura e até os erros mais difíceis de detectar.

    — Ela compensa a falta de força bruta com técnica refinada, mas está forçando seus limites além do que seu corpo pode suportar.

    Emilly ergueu uma sobrancelha, desviando o olhar do monitor para Raven.

    — Depois de tudo o que aconteceu, é compreensível. — argumentou, apoiando o cotovelo na mesa de controle. — Quem não faria o mesmo, depois de ter chegado tão perto da morte?

    Lá embaixo, Mandy vacilou. A lâmina passou no vazio, e ela precisou ajustar o movimento no último segundo para não se expor. Xingou entre os dentes, irritada. Emilly notou o tremor nos dedos dela quando voltou a segurar a katana.

    — O esforço não é o problema. — disse Raven. — O que me preocupa é que, nesse ritmo, ela não vai aguentar por muito tempo.

    Emilly soltou um suspiro e recostou-se no painel, cruzando os braços.

    — Talento ela tem de sobra, isso é fato, mas tentar segurar o mundo nas costas nunca termina bem. Se ninguém intervir, ela vai acabar se machucando de verdade.

    Raven desviou a atenção da garota para lhe dirigir um olhar, o qual transmitiu uma conformidade silenciosamente expressa, acompanhada de algo mais profundo com que era difícil lidar.

    — A questão é se ela vai deixar alguém chegar perto. Por enquanto, tudo o que ela consegue ouvir são as próprias derrotas.

    Mandy progredia em sua execução. Com eficácia e sem desperdício de ação, sua katana cortava o ar a cada golpe, encaminhando-o para o seguinte. Um segundo holograma apareceu à sua direita, obrigando-a a girar o quadril e direcionar energia para um corte horizontal que eliminou o oponente em um único traço.

    No entanto, algo havia mudado. Logo em seguida, o brilho na lâmina diminuiu. A transmissão de energia foi interrompida por um milésimo de segundo.

    — A estabilidade está indo embora — Emilly franziu a testa. — A energia não tá firmando na lâmina.

    — Isso acontece quando a mente perde o passo do corpo. Alguma coisa tirou o foco dela.

    — Você não acha melhor intervir?

    — Ainda não. Ela precisa retomar o controle sozinha. Se entrarmos agora, só vamos empurrar o problema para depois.

    Mandy sentia o peso daquela verdade antes mesmo de ela ser expressada. A figura de Mavie invadiu sua mente de repente e vividamente. O odor de sangue, o sabor azedo do medo, a sensação de ser sugada pelo abismo naquela madrugada. Ela sobreviveu. Contudo, uma parte dela ainda não encarava isso como um triunfo.

    O suor em sua mão se intensificou.

    Um terceiro holograma surgiu diante dela. Mandy tentou reagir, apesar de sua postura não estar em harmonia. O ataque ocorreu antes que ela conseguisse se restabelecer.

    A queda foi dura, os joelhos rasparam no chão, os pulmões esvaziaram-se em um engasgo. O punho ainda segurava a katana, mas o tremor traía qualquer impressão de controle.

    O mundo se fechou em sua própria voz, carregada de desprezo.

    — Porra! Por que você é tão inútil, Mandy? Por que não consegue fazer nada direito?!

    Emilly desviou o olhar, desconfortável com o que ouvia. Raven, por outro lado, manteve-se inabalável.

    — Ela precisa passar por isso. — A voz saiu sem suavidade, sem qualquer tentativa de consolo. — Fraqueza não desaparece com palavras gentis.

    A outra soltou um suspiro pesado, cruzando os braços ao se encostar no painel. Sua expressão alternava entre irritação e algo mais difícil de definir.

    — O que me incomoda é essa necessidade de carregar tudo sozinha. Dá pra ver o esforço, o quanto ela quer evoluir, o quanto precisa se sentir útil…

    O olhar de Emilly recaiu sobre a arena, onde a jovem avançava contra um novo conjunto de alvos. Os golpes saíam com força, mas carregavam algo ríspido, um descompasso entre intenção e execução. A energia que deveria fluir de forma coesa se dissipava em faíscas irregulares.

    — Ela se joga nesse ciclo como se fosse a única saída. É como assistir alguém correndo na direção de um muro, achando que, se bater com força suficiente, ele vai ceder.

    — O problema não é o esforço. É o medo do fracasso. — Raven acompanhou Mandy errar um golpe por centímetros, o maxilar travado ao corrigir a postura. — Ela não está apenas enfrentando esses hologramas. Está tentando derrotar algo que aconteceu. Mas, no fundo, está brigando contra si mesma.

    Emilly virou a cabeça devagar, analisando-a com um ceticismo que beirava a curiosidade.

    — Fala como se fosse novidade. Vai dizer que nunca tentou abraçar o mundo por conta própria?

    Raven arqueou uma sobrancelha, mas não desviou os olhos do treino.

    — Existe uma diferença entre amadurecer com os próprios erros e deixar que eles te corroam. Mandy passou desse limite. Se continuar nesse ritmo, vai acabar apagando.

    Um riso seco escapou, carregado mais de resignação do que de humor.

    — Então o que fazemos? Assistimos de longe até ela quebrar a cara ou tentamos puxá-la antes? Porque, honestamente, ela não me parece disposta a ouvir ninguém.

    O silêncio que antecedeu sua resposta parecia pesar mais do que as palavras.

    — Nada.

    O impacto da lâmina contra o alvo ressoou pelo espaço abaixo delas, um golpe carregado de força, mas comprometido pelo leve tremor nos dedos da espadachim. Pequenos detalhes que não passavam despercebidos a quem observava de perto.

    — Você já foi assim, não foi? — A pergunta veio sem julgamento, apenas curiosidade.

    Raven desviou o olhar por um instante, refletindo antes de responder. Quando voltou a encarar a cena, a resposta veio sem rodeios.

    — Fui. E aprendi do jeito difícil que ninguém vence esse tipo de luta sozinha.

    Um sorriso enviesado surgiu no rosto de Emilly, carregado de ironia e algo que se assemelhava a respeito.

    — Quem diria, Raven. No fim, você tem um coração.

    A outra revirou os olhos, mas havia um brilho sutil de humor ali.

    — Não se anima. Isso não significa que vou sair distribuindo abraços encorajadores.

    — Fica tranquila. — Soltou um risinho. — Eu jamais esperaria algo tão fofo vindo de você, mas talvez fizesse diferença. Mandy está precisando de um abraço mais do que admite.

    As duas voltaram a observar a sala. Nada do que diziam ou pensavam poderia alterar o que se desenrolava diante delas. 

    Raven bufou, pondo o olhar na arena, onde Mandy errava outro golpe por milímetros. A sua postura denotava austeridade, mas não cinismo; apenas um tipo de cuidado que preferia permanecer oculto.

    Emilly percebeu a brecha deu um passo em sua direção.

    — Ei… — disse, com um sorriso torto, enquanto abria os braços devagar. — Só pra testar uma teoria minha.

    Raven virou-se, contraindo o corpo.

    — Emilly, não.

    — Ah, deixa disso. Não vou te morder. — Ela avançou mais um pouco. — Só vou comprovar que por trás dessa sua pose de pedra existe alguém que ainda se importa.

    Uma sombra projetada atrás de Raven elevou-se rapidamente como um estilhaço de escuridão líquida, dividindo o espaço entre as duas.

    O surgimento da barreira foi acompanhado por um estalo abafado, com a criação de uma cortadura a poucos centímetros do peito de Emilly.

    — Eu não sou o Nicholas pra servir de depósito para as suas carências.

    O impacto daquelas palavras caiu seco.

    Os braços de Emilly permaneceram entreabertos naquela posição imóvel durante alguns segundos, sem que o corpo recebesse o aviso de que o gesto não encontraria retorno. 

    O constrangimento não se manifestou de forma intensa, como um calor que escalda o rosto; veio frio, direto, tal estalar de gelo sob os pés. 

    Foi uma sensação de exposição no momento em que tentava o mais possível esconder-se, por trás de uma piada, de um gesto bobo, fosse o que fosse que não a fizesse sentir o que de fato sentia.

    Ela forçou uma respiração mais longa, baixando os braços num gesto minúsculo que não conseguia exprimir o impacto que sentia no interior. 

    Como era a Emilly e o que as separava era um silêncio cruel, tentou sorrir. 

    O primeiro esboço de sorriso faleceu no canto dos lábios. O segundo surgiu de forma demasiado rápida na forma de um sorriso largo e deslocado, como se tivesse sido colado ali às pressas.

    — Tá… — disse ela, buscando leveza no tom, que saiu meio trêmulo. — É, acho que… teoria inconclusiva. Vou ter que revisar a metodologia, hahaha!

    Ela retraiu os braços lentamente.

    — Tá tudo bem. Sério. Sem drama. Você só… me pegou desprevenida. Tudo sob controle. Total controle. Não estou nem um pouco… sei lá… abalada. Imagina.

    A mão dela transmitia uma mensagem ambígua, ao apertar a manga do sobretudo, como se precisasse de apoio para não sucumbir completamente.

    O sorriso permaneceu. Grande, exagerado, brilhante demais para ser real. Enquanto os seus olhos fugiam do de Raven, tentava recuperar uma dignidade que já escorria entre os dedos.

    A barreira se dissolveu com a mesma velocidade com que surgira.

    — Não tenta forçar um gesto que nem você acredita. Sinto o suficiente, e justamente por isso que mantenho distância.

    O longo silêncio posterior pesava mais do que qualquer ataque que Mandy lançava na arena abaixo. Emilly virou a cabeça, sem querer responder, e deu um passo atrás, com o nervosismo ainda visível no canto da boca.

    “Se eu não melhorar, se eu não ultrapassar isso, vou acabar morta da próxima vez.”

    Esses pensamentos ecoavam na mente da garota como um tambor incessante. 

    Mandy, não obstante seu visível cansaço, não diminuiu o ritmo. Todos os golpes precisavam de algo mais profundo do que a força física, algo que as duas mulheres na cabine reconheciam, mas sabiam que somente a garota poderia superar.

    Ela se levantou novamente, com os punhos cerrados. Respirou fundo mais uma vez, forçando a energia de volta ao seu corpo. Sentiu o calor voltar, mesmo que fosse apenas um fragmento da força que ela desejava.

    O suor escorria pela lateral de seu rosto, pingando no piso com um ritmo inquietante

    Inspirou profundamente, sentindo a energia negativa fluir como um rio caudaloso dentro de si. Canalizou-a para os braços, para o centro de seu corpo, fortalecendo os músculos além do limite natural. Expirou devagar, direcionando a energia positiva para os tendões e ligamentos, buscando resistência onde antes havia fraqueza.

    — De novo. — murmurou, ignorando a ardência nos pulmões e o tremor nas pernas.

    O holograma se materializou à sua frente, mais ágil e agressivo que os anteriores. Ele avançou com um golpe vertical, e a garota ergueu a katana em um bloqueio.

    “Antecipe. Não reaja, ataque primeiro.”

    Rapidamente, conseguiu escapar para o flanco de seu oponente antes que a lâmina pudesse recuar. Ela fez um corte diagonal ao concentrar a energia negativa na ponta da arma. O holograma se dissolveu em fragmentos de luz, porém ainda estava preparada para o próximo golpe.

    Manteve a lâmina em posição de guarda e ajustou os pés no piso de metal, deslizando em um ângulo que lhe dava vantagem contra o próximo oponente. 

    Quando o novo inimigo apareceu, mais alto e aparentemente mais forte, ela avaliou sua postura antes de agir.

    “Força sobre agilidade. Eu posso usar isso.”

    Seu oponente balançou a arma, um golpe largo e previsível, e ela se esquivou sob a trajetória fatal. Colocou o peso no pé esquerdo e girou o corpo em um arco, abrindo a lâmina para cortar o holograma na altura da cintura. Mais uma vez, ele se estilhaçou em partículas. 

    — Não posso… perder o foco. — disse, com o peito subindo e descendo rapidamente.

    Seus pensamentos se voltaram, brevemente, à luta contra Mavie. Lembrou-se da sensação de impotência, do golpe que quase a fez sucumbir, da voz dentro de sua cabeça repetindo que ela não era forte o suficiente.

    “Eu não sou fraca. Não sou inútil.”

    Engoliu em seco e ajustou a postura, sentindo o calor da energia percorrer novamente suas veias. Desta vez, concentrou-se na respiração. Inspirou profundamente, enchendo o diafragma, e liberou o ar devagar, distribuindo o fluxo energético para a katana. O fio brilhou por um instante.

    O próximo holograma surgiu com dois adversários simultaneamente. Calculou rapidamente as distâncias, os ângulos de ataque e defesa, e deu um passo à frente.

    O primeiro golpe veio de cima, mas ela desviou com um recuo mínimo, mantendo o equilíbrio. Contra-atacou com um corte lateral que atingiu o adversário à direita, antes de girar sobre o calcanhar e bloquear a estocada do segundo holograma.

    — Droga! — gritou, quando sentiu o impacto forte demais para segurar a guarda. A katana quase escapou de sua mão, mas ela recuperou o controle no último segundo.

    Seus pés deslizaram para trás, ganhando espaço para reagrupar. Apertou os dentes e atacou com tudo o que tinha, a lâmina cortando em um arco vertical que desfez os dois hologramas de uma vez.

    Ofegante, caiu de joelhos, os braços pendendo ao lado do corpo.

    “Por que ainda não é suficiente?”

    Enxugou o suor do rosto com a manga e levantou-se mais uma vez.

    — De novo. — disse, apertando o cabo da katana como se sua vida dependesse disso. 

    Porque, no fundo, ela sabia que dependia.

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