Capítulo 73 - Caçadores de Mistérios
Logo no início da filmagem, a leve oscilação da câmera, quase amadora, foi perceptível enquanto ela girava para obter uma visão detalhada do porão onde um grupo estava reunido.
Paredes decoradas com cartazes de shows e filmes populares dos anos 2000, como “Matrix”, “The Strokes” e “Star Wars: O Império Contra-Ataca”, davam um toque característico ao local.
No canto, caixas de pizza vazias dividiam espaço com latas de refrigerante e pacotes de salgadinhos amassados. A iluminação era composta por luzes LED azuladas e opacas.
A imagem balançou novamente antes de focar no rosto de um garoto que se inclinou para mais perto da lente. Sardas pontilhavam sua pele clara, os cabelos castanho-claros desgrenhados caiam sobre a testa e os olhos verdes tinham um brilho sagaz. A camiseta, esgarçada na gola, exibia o logo desgastado de “The X-Files”.
— Beleza, galera! Bem-vindos ao Caçadores de Mistérios! O nome é uma merda, eu sei, mas se vocês ainda estão assistindo, talvez o problema sejam vocês, não eu.
O movimento abrupto da câmera seguiu na direção de uma garota esparramada sobre um tapete surrado. De bruços, mexia no celular com a ponta dos dedos, a expressão despreocupada. Os cabelos cacheados estavam presos em um coque bagunçado, e a jaqueta jeans coberta por patches de bandas — Nirvana, Pearl Jam, Arctic Monkeys — fazia dela um catálogo ambulante de rock alternativo.
Ela ergueu os olhos ao ouvir a voz do amigo, arqueando as sobrancelhas com indiferença.
— As pessoas assistem porque esperam que a gente morra. É isso que chama audiência, Jake.
— Obrigado pelo incentivo, Ellie. É sempre bom contar com seu apoio moral.
A lente voltou-se para o outro canto do porão, capturando um garoto largado no braço do sofá, uma expressão de puro tédio estampada no rosto. Baixo, pele parda, cabelos curtos estilizados em um topete discreto, óculos redondos que escorregavam a cada dois minutos, forçando-o a empurrá-los para cima com um toque impaciente.
A camiseta preta simples não dizia muito sobre ele, mas a mochila ao lado, com uma estampa de “Blade Runner”, entregava seu gosto por ficção científica.
— Jake, me explica de novo por que você insiste nessas ideias estúpidas? Invadir prédios abandonados cheios de lendas idiotas não tá no meu top 10 de diversão.
O cinegrafista improvisado não hesitou.
— Porque você me ama, Sam. É por isso.
O garoto empurrou os óculos mais uma vez, resmungando.
— Não, eu tô aqui porque vocês são um desastre e precisam de alguém pra impedir que morram… e porque perdi no pedra-papel-tesoura.
Aproximou-se, então, um jovem, com uma mochila nas costas e um pedaço de pizza na mão. O mesmo tinha cabelos loiros desgrenhados que caíam sobre os olhos azuis e vestia uma camiseta do Los Angeles Lakers, além de calças cargo e um tênis sujo. O rapaz entrou mastigando uma fatia de pizza e balançando a mochila descuidadamente sobre um ombro.
— Já começaram a brigar ou ainda tão no aquecimento?
— Claro que já começaram, Noah. É o que mantém essa amizade viva. — Ellie riu, enquanto Sam revirava os olhos.
Jake virou a câmera para si novamente.
— Tá, gente, foco. Hoje a gente vai invadir um antigo estúdio de animação aqui em Portland. Famoso nos anos 2000, depois virou um baita cemitério de memórias ruins. O lugar queimou em um incêndio misterioso, ninguém quis reabrir, e agora dizem que um dos animadores ainda tá lá… desenhando.
Ellie ergueu a cabeça, interessada.
— Espera, você tá dizendo que tem um fantasma animador preso no lugar? Tipo um Bob Esponja sobrenatural?
Noah riu, apontando para ela com a pizza.
— Isso só melhora. Ele tá lá desenhando o quê? A nossa morte?
— Melhor do que os meus boletos. — Ellie soltou uma risada curta.
— Tá bom, piadistas. — Jake interrompeu. — Se ele aparecer, Noah vai na frente, porque ele é o mais fácil de sacrificar.
— Lógico, o mais bonito sempre vai primeiro.
— Bora logo antes que o Sam morra de preocupação com mofo. — Ellie pegou a própria mochila e a jogou no ombro.
— Não é mofo, é fungo, Ellie. E fungo mata.
Jake segurou a câmera, dando o toque final ao vídeo.
— Se a gente não voltar, manda esse vídeo pra Unidade Expedicionária de Caça. Mas coloca que foi ideia do Noah, beleza?
Com risos e provocações, eles apagaram as luzes e saíram, prontos para mais uma “aventura”.
Após um corte, o vídeo transicionou para uma sobreposição de texto em letras trêmulas que dizia: “WonderheartStudio – Portland, 23h45”.
A imagem foi capturada de baixo para cima para destacar a imponência decadente da estrutura. Um letreiro enferrujado, pendente de maneira precária, ainda exibia o nome do estúdio, com letras quebradas e desbotadas.
Plantas cresciam nas rachaduras dos tijolos e se enrolavam em torno das colunas, como se a natureza estivesse reivindicando o que um dia fora construído pelo homem.
— Então, este é o famoso WonderheartStudio. — A voz de Jake soava levemente trêmula, mas não de medo. Era aquele tipo de nervosismo excitante que surgia antes de algo grandioso. Ele virou a câmera para si mesmo, os olhos claros brilhando sob a luz da lanterna. — Se você cresceu assistindo desenhos como Pony Tales ou Space Llamas, já sabe de onde vieram. Esse lugar era o coração da criatividade dos anos 2000. E agora… é só um esqueleto vazio.
— Isso se você ignorar o animador morto que ainda tá trabalhando, né? — Ellie apareceu na borda do enquadramento, com os braços cruzados sobre a jaqueta jeans. Seus cachos castanhos escuros balançavam enquanto ela olhava para o prédio com ceticismo evidente. — Porque, claro, um espírito vai perder o descanso eterno pra rabiscar na prancheta.
Jake abaixou o equipamento para pegar uma boa tomada dos pés de Ellie, apontando para os tênis brancos encardidos.
— Tá falando como se você não tivesse assistido metade dos desenhos dele. Hipócrita detectada.
Ela olhou para ele e deu de ombros, maliciosamente, com um sorriso nos lábios.
— Justo. Mas não significa que eu precise acreditar na história idiota do animador fantasma.
A câmera posicionou-se para gravar Noah, que estava encostado em um poste de luz apagado. Ele terminava de mastigar um pedaço de chocolate que pegara do bolso da calça.
— Se o animador ainda estiver aqui, espero que ele seja legal. Talvez até nos dê um autógrafo. Ou melhor, uma animação exclusiva pro canal.
— Ah, claro, Noah. Porque fantasmas definitivamente curtem aparecer em canais do YouTube com… quantos inscritos a gente tem mesmo? — Sam ajeitou os óculos no rosto, interrompendo-se no meio da frase para limpar uma gota que ameaçava escorrer pela lente.
— Setecentos e quarenta e dois. — Jake respondeu sem hesitar.
— Uau, tão quase nos chamando pra dar entrevista no The Tonight Show. — O tom seco dele arrancou uma risada baixa de Ellie, que cutucou o braço dele.
— Relaxa, Sam. Finge que isso é tipo um estudo de campo pra sua tese sobre lugares abandonados e fungos mortais.
O garoto revirou os olhos, mas um sorriso breve passou por seu rosto.
— Minha tese é sobre biocontaminação em ambientes urbanos degradados, mas obrigado por distorcer minha vida acadêmica, Ellie.
Jake fez com que o foco se voltasse para as marcas de queimadura que subiam pelas paredes como cicatrizes antigas.
— Falando em morte… Esse lugar pegou fogo em 2007. O incêndio foi declarado acidental, mas nunca encontraram o corpo do animador-chefe, Jackson Sinclair. E é aí que a coisa fica estranha. Algumas pessoas dizem que ele foi visto vagando por aí depois disso, e outras afirmam que ele nunca saiu.
— Deixa eu adivinhar. O famoso nunca saiu porque ficou preso entre os mundos? — Ellie fez aspas no ar.
O garoto deu de ombros, sem perder o humor.
— Quem sabe? Talvez ele tenha ficado pra continuar a obra dele. Ou talvez ele só odeie visitas.
— Acho que ele odeia mais do que visitas. — Sam apontou para uma das janelas quebradas, onde um movimento rápido parecia ter cruzado o vidro sujo.
Noah inclinou a cabeça, franzindo o cenho.
— Tá vendo coisas, Sam, ou tá tentando nos assustar?
— Talvez os dois. — respondeu, sem tirar os olhos da janela. — Mas tô falando sério. Algo passou por ali.
Ellie riu, embora o som fosse um pouco forçado.
— Deve ser um pombo obeso ou um rato hipertrofiado. Nada que o grande Noah não possa enfrentar com sua bravura.
O rapaz deu um passo à frente, estufando o peito de maneira teatral.
— É pra isso que eu tô aqui. Se algo sair daquele prédio, eu vou proteger vocês… até a primeira porta de saída.
Jake virou a câmera para si mesmo novamente, sorrindo de forma conspiratória.
— Tá, pessoal. Chegou a hora. Vamos entrar e descobrir se o WonderheartStudio é só mais um prédio velho ou se tem algo realmente… vivo aqui dentro.
O grupo seguiu em direção à entrada, por entre os escombros da porta parcialmente caída. Nenhum elemento passou despercebido pela gravação: as paredes cobertas de fuligem, o chão repleto de entulho e o eco abafado dos passos, que pareciam mais altos do que deveriam.
— Bem-vindos ao início da nossa maior aventura. Ou talvez… do nosso último vídeo. — sussurrou.
A luz da lanterna tremia levemente conforme Jake movia a câmera em um arco lento para enfocar a escuridão densa que preenchia o saguão. O local tinha a aparência de estar congelado no tempo, como uma fotografia queimada pelos anos.
As paredes, cobertas por fuligem e manchas de umidade, exibiam grafites de cores esmaecidas, destoando dos poucos pôsteres promocionais dos desenhos animados que outrora conferiram vida àquele prédio.
O logotipo do estúdio ainda podia ser visto em uma placa pendurada acima da recepção despedaçada, mas estava rachado ao meio, como se o próprio edifício rejeitasse seu passado.
— Que cheiro horrível. — Ellie pressionou o nariz com as costas da mão enquanto pisava cuidadosamente em um pedaço de madeira quebrada. — É mofo, Sam? Ou isso é o cheiro do animador-chefe?
— Cheiro de decomposição e umidade. — respondeu. — O que é ainda pior. Respirem superficialmente, ou vocês podem inalar esporos.
Eles se encararam, e Jake filmou os dois, com a luz refletida nos óculos do amigo.
— Esporos, Sam? Cara, você sabe mesmo como levantar o ânimo.
— Tô tentando garantir que ninguém saia daqui com uma infecção pulmonar. Mas não se preocupe, você pode morrer heroicamente de outra forma antes disso.
Caminhando à frente do grupo com a lanterna em mãos, Noah riu baixinho.
— Pessoal, olhem pra isso. — Ele moveu o feixe da lanterna para o final do corredor, onde uma porta metálica parcialmente aberta revelava a sombra de uma sala além. — Aposto dez bucks que isso era o refeitório.
Ellie arqueou uma sobrancelha.
— Dez dólares? Que aposta corajosa. Aposto que nem precisa pagar porque ninguém mais vai sair daqui pra cobrar.
Sentindo-se à vontade, Jake adiantou-se e fez uma narração sussurrada.
— E assim, Ellie continua sendo a alma sombria e otimista do grupo.
O grupo avançou devagar. Um pedaço de teto pendia de fios enferrujados, e o som de goteiras ecoava ao fundo. A câmera balançava com o movimento.
— O que é isso? — A garota parou subitamente e apontou para o chão.
Jake virou a câmera para baixo, onde marcas de cinzas e algo que parecia arranhões percorriam o corredor, indo em direção à sala adiante.
— Ok, isso é… estranho. Alguém andou se arrastando aqui?
Ao estreitar os olhos para enxergar as marcas, Noah segurou a lanterna posicionada mais próximo.
— Pode ser coisa de algum animal. Ou… outra coisa.
Sam bufou nervosamente.
— Certo, se for um guaxinim gigante ou, sei lá, o fantasma do animador, alguém me avisa pra eu sair correndo antes.
Com um sorriso de canto de boca, Ellie olhou por cima do seu ombro para ele.
— Relaxa, Sam. Você sempre pode usar um argumento lógico pra assustar a criatura.
A porta metálica rangeu alto ao ser empurrada por Noah com o ombro. A luz revelou uma sala ampla, com mesas metálicas viradas, cadeiras amontoadas e um balcão coberto por resíduos de fuligem. Prateleiras enferrujadas estavam tombadas nas laterais, e o chão exibia o que parecia ser um rastro escuro que terminava abruptamente.
— Tá, eu retiro o que eu disse. — murmurou a garota ao olhar para o balcão. — Isso definitivamente não é só um prédio abandonado.
Com a mudança de ângulo, Jake conseguiu capturar as expressões de cada um.
— Concordo com a Ellie. Tem algo errado aqui. E vocês sabem o que isso significa, né? — Ele sorriu, tentando manter o tom animado. — Mais visualizações.
— Mais visualizações? — Sam cruzou os braços e o encarou. — Cara, se esse vídeo explodir, a Unidade Expedicionária vai ser a primeira a nos rastrear. Quatro idiotas invadem estúdio amaldiçoado. Sério.
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