Capítulo 75 - Caçadores de Mistérios III
Enquanto atravessavam o corredor, a imagem tremia descontroladamente. O chiado abafado da respiração de Sam misturava-se com o som dos passos frenéticos no chão de madeira. A imagem capturava apenas imagens esporádicas da fuga. Ellie tinha tropeçado contra a parede. Noah a segurava pelo braço para que ela não caísse.
— Porra, porra, porra! — Noah arfava.— A gente não devia ter deixado ele lá!
— Ele já era!
Uma pancada ensurdecedora sacudiu o corredor, como se algo gigantesco se tivesse chocado contra a porta que acabavam de atravessar. A câmara girou no reflexo instintivo de Sam, capturando o momento exato em que a madeira rachou ao meio, com estilhaços espalhados.
Algo tentava sair.
Os estalos secos lembravam ossos deslocados à força. Um barulho pastoso arrastava-se pelo espaço estreito, como carne que se contorcia dentro de um espaço demasiado pequeno para a conter.
Depois, surgiram dedos na fenda aberta.
Eram longos, cinzentos e encurvados como raízes arrancadas da terra. Garras amarelas rasparam contra a madeira, dilacerando cada pedaço que ainda segurava a estrutura de pé.
Sam recuou com um soluço engasgado.
— Corre!
A câmera oscilava convulsivamente enquanto corriam, acompanhada por um feixe de luz tremeluzente no corredor escuro. O edifício fechava-se em torno deles como uma garganta prestes a engolir.
O chão tremeu quando a criatura atravessou a porta logo à frente.
A filmagem capturou apenas um borrão antes de Sam desviar o ângulo. A criatura era errada, como um esboço mal feito que ganhara forma sem compreender como os corpos se movem. A pele era acinzentada e, em algumas partes, translúcida, como papel fino prestes a rasgar. O rosto – ou o que parecia ser um – estava desfocado, apagado que nem um esboço a lápis antes de secar.
Aquilo não tinha olhos. Apenas buracos escuros e fundos, que não refletiam nada.
— Que merda é essa?! — Ellie gritou, a voz rouca de puro pavor.
Noah não olhou para trás.
O corredor se dividia à frente. À esquerda, a saída bloqueada por vigas caídas, um emaranhado de metal e concreto que impossibilitava a fuga. À direita, uma porta aberta revelava uma escada descendente, engolida por sombras que pareciam mais densas do que deveriam ser.
— Não temos escolha! — Ele apontou para a escada e pulou os primeiros degraus sem pensar duas vezes.
Após um segundo de hesitação, Ellie olhou fixamente para a criatura que agora rastejava pelo corredor, um espasmo convulsivo por cada movimento. Sam a empurrou para a frente.
— Vai logo!
As escadas rangiam sob os pés desesperados, captadas pelo equipamento que disparava flashes das paredes estreitas que desciam até um porão úmido. Ao tocarem o chão de cimento frio, a quietude instalou-se.
Apenas a respiração ofegante preenchia o ambiente.
A lente passeou pelo local, onde se viam estantes antigas de madeira apodrecida, repletas de rolos de filme mofados. Os projetores enferrujados estavam como esqueletos de um passado abandonado.
Noah segurou os joelhos para recuperar o fôlego.
— Isso é um porão, não tem saída!
Ellie girava no próprio eixo, as mãos nos cabelos.
— A gente tá fodido. A gente tá fodido!
Sam apertou a câmera contra o peito, como se aquilo pudesse protegê-lo.
Acima deles, um ruído metálico ecoou pelo prédio. Algo estava descendo.
A criatura sabia onde eles estavam e não ia parar até encontrá-los.
O ar no porão pesava como se tudo à sua volta tivesse sido sufocado por um vácuo. Todas as respirações entrecortadas eram captadas pelo microfone. A lente tremia sobre o ambiente, à procura de qualquer saída que não existia.
Um estalo cortou a quietude. Um ruído seco e metálico que não vinha deles.
Sam girou instintivamente a câmera para o topo da escada. No pequeno espaço de luz que entrava pela abertura, algo grotesco bloqueava a passagem. A figura contorcia-se como se o próprio corpo fosse feito de músculos errados e ossos desalinhados. Em espasmos, a cabeça tombava para os lados inverosímilmente. Os braços, longos e esquálidos, apoiavam-se nas paredes estreitas, arranhando o concreto com garras amareladas.
Noah deu um passo atrás e engoliu em seco.
— Caralho…
Com a mão, Ellie tapou a boca, os olhos arregalados.
A criatura avançou mais um pouco, com metade do corpo encostada à escada. O pescoço alongado pendia para à frente, buscando farejar algo.
Sam recuou, com a máquina aos solavancos na sua mão.
— Se escondam. Agora!
Ellie foi a primeira a se mexer. Pulou sobre uma fileira de rolos de filme derrubados e se enfiou dentro de um armário velho de metal no canto do porão. Noah se apertou atrás de uma pilha de caixas de madeira empilhadas contra a parede. Sam, com o coração disparado, correu para um armário escuro ao lado de um projetor tombado.
A câmera captou o interior apertado e fétido do esconderijo antes que a porta se fechasse em um rangido baixo.
A respiração ficou presa na garganta.
No espaço exíguo, algo gelado roçou seu braço. Um cheiro de podridão e ferrugem tomou conta do nariz. Lentamente, a câmera virou para o lado.
Ali, comprimido contra a lateral do armário, um corpo humano. Sam apertou o equipamento contra o peito, a lente focando involuntariamente no cadáver ao seu lado. O morto usava um crachá embaçado com a inscrição “Carl – Edição”, e um relógio de pulso parado às 3h17 repousava em seu punho esquelético.
A pele estava enegrecida e colada aos ossos como um tecido ressecado. Os olhos, fundos e secos, encaravam o vazio. A boca, aberta em um grito que nunca saiu, exibia dentes quebrados. Moscas passeavam pela carne apodrecida.
O estômago revirou, o gosto de bile subindo até a garganta. Sam cravou os dentes na própria mão para evitar qualquer som.
Do lado de fora, um baque surdo.
A criatura havia saltado o último degrau.
O ruído viscoso que se ouviu quando a coisa se moveu preencheu todos os espaços. Os passos eram arrastados e irregulares, como se as articulações não soubessem bem como funcionar. O ar tornou-se frio. O cheiro de terra molhada e carne envelhecida espalhou-se pelo ambiente, enjoativo e denso.
Sam segurava a câmara com os dedos dormentes, tentando não tremer.
A criatura avançou pelo porão, uma presença indistinta, apenas um borrão na tela. A imagem granulada mostrou um vislumbre do seu corpo fino e alongado, onde as costelas projetarem-se como garras por baixo da pele tensionada.
A respiração irregular de Noah tornou-se audível no microfone quando a criatura parou junto à estante. O silêncio era sepulcral, mas a sensação de que ela sabia, de que sentia a vida fluir através dos esconderijos, estendia-se pelo ar qual um aviso letal.
Sam não ousava piscar.
Este ergueu uma das mãos cadavéricas e passou as garras pelo chão, tendo deixado marcas fundas e irregulares que pareciam ter sido esculpidas por lâminas de ferro. A câmara tremeu mais quando um som baixo e gutural se arrastou do fundo da garganta da criatura, algo entre um rosnado e um lamento estridente.
Dentro do armário, os músculos de Sam imploravam para se moverem, para fugirem daquele espaço minúsculo e claustrofóbico, embora qualquer tentativa de escapar só resultasse numa morte rápida. O cheiro da decomposição ao seu lado tornava a sensação de aprisionamento ainda pior, com o cadáver do funcionário apodrecido a zombar do seu destino iminente.
Escondidos atrás da estante, Noah e Ellie mantinham-se silenciosos, mas o ligeiro farfalhar da madeira denunciava o mínimo movimento dos seus corpos, pressionados contra os rolos de filme embolorados.
O pesadelo diante deles abaixou-se lentamente, os joelhos curvaram-se de maneira errática. Os dedos longos, finos e trêmulos roçaram o chão, em contato com algo que os olhos humanos não conseguiam ver.
Um chiado baixo escapou-lhe da boca escura.
A câmara captou o exato momento em que a cabeça da criatura girou bruscamente para o lado, como se tivesse sentido uma nova presença.
O coração de Sam disparou. Eles estavam mortos.
Um estalo cortou o silêncio.
Um dos projetores enferrujados no canto da sala oscilou, com o metal que rangeram uns contra os outros. De rompante, a criatura endireitou-se, consoante os membros se contorciam como os de um inseto, e virou-se para encarar a origem do som.
A tensão nos músculos de Sam era tanta que ele quase não notou quando soltou o ar.
A câmera tremeu nas mãos trêmulas de Sam. O visor exibia uma cena deformada pela granulação da baixa luz, mas era impossível não ver a silhueta magra e disforme da criatura. O som do arrastar das garras contra o concreto reverberava pelo porão como se a própria estrutura estivesse contendo a respiração.
Noah, encostado contra a prateleira, pressionava uma das mãos contra a boca, tentando conter qualquer som. Ellie estava imóvel, um olhar desesperado fixo na porta aberta, como se sua vontade fosse suficiente para fechá-la e trancá-los do lado de dentro, longe daquela coisa.
Sam não conseguia se mover.
Que coisa era aquela? Ainda havia uma parte dele que queria acreditar que tudo aquilo era um delírio induzido pelo pânico, uma manifestação da sua própria mente incapaz de lidar com o absurdo. No entanto, a realidade estava ali, impressa na tela. Algo vivo, algo faminto, algo que não deveria existir.
O ser inclinou a cabeça de forma errática, provavelmente porque estava ciente de algo que eles não podiam ouvir. As costelas salientes batiam com um ritmo doentio sempre que o monstro se mexia, ao expandir-se e contrair-se. Uma das garras bateu contra uma lata enferrujada esquecida no chão, cujo som metálico se espalhou pelo espaço e provocou um espasmo involuntário em Ellie.
O monstro parou.
A tensão no porão solidificou-se numa prisão inimiga. O fedor impregnava cada resquício de ar, uma mistura de carne estragada, terra mofada e algo pior, algo que queimava as narinas e grudava à pele como se fosse petróleo.
Os buracos onde deveriam estar os olhos apontaram na direção do som.
O peito de Sam subia e descia rapidamente. Se respirasse mais forte ou se se mexesse um centímetro sequer, seria ouvido.
O ser começou a mover-se.
Toda a vez que dava um passo, era como se estivesse a colidir de forma torturante com os seus pés deformados e o cimento rachado. O caminho entre os escombros era percorrido com lentidão, cuidado e atenção, como um predador que prolongava o momento da matança.
Ellie ficou ainda mais encolhida, o suor começava a deslizar pela testa e a pingar do queixo. Noah mordeu o lábio até este sangrar, com o olhar fixo na criatura.
O foco da câmara incidiu nas garras que subiam pelo metal enferrujado de um dos projetores. Os dedos longos exploraram a superfície, o som do atrito a ecoar, como um aviso. O ser parecia explorar o ambiente, absortamente, sem deixar escapar qualquer detalhe, sem deixar de sentir a pulsação daqueles que se escondiam.
Sam quis rezar. Mas nem isso sabia fazer direito.
O tempo perdeu o significado. Enquanto a criatura inspecionava cuidadosamente o ambiente, passaram-se segundos ou minutos. Ouviu-se um barulho alto no andar de cima. Um estalo seco.
A criatura congelou.
A cabeça virou num ângulo inconcebível, os buracos negros cravados no teto. O corpo contraiu-se como um fio prestes a arrebentar.
E então, sem qualquer aviso, girou o tronco e saiu apressadamente, deixando o porão para trás.
Foi o último vislumbre da criatura a desaparecer na escuridão que a câmera capturou.
A quietude regressou, pesada, espessa como um cobertor sujo, impregnada de pó e do cheiro amargo de mofo. O som abafado da respiração entrecortada ocupava o porão, em mistura com o zumbido distante das luzes fracas presas ao teto descascado. Tudo era claustrofóbico, cercado por paredes com infiltrações e marcas escuras que lembravam ferrugem.
Ninguém se mexia, ninguém ousava quebrar aquele momento frágil, como se até mesmo respirar pudesse chamar a atenção da coisa que desaparecera.
Ellie foi a primeira a sair do esconderijo.
Os braços tremiam quando se apoiou na parede para se levantar. O rosto estava molhado de suor, as pernas fracas como se tivesse passado horas correndo. Com passos cautelosos, deixou a prateleira onde se escondera e olhou para os outros, a expressão marcada pelo horror do que acabavam de presenciar.
— Isso foi real. — A voz saiu trêmula, mais um sussurro do que uma afirmação.
Noah soltou o ar entre os dentes e deixou-se escorregar do canto escuro onde se enfiara. O peito subia e descia de forma irregular, o corpo inteiro latejava de tensão acumulada.
— Eu quero sair daqui. Agora.
Sam continuava parado. A câmera tremia entre os dedos, a tela piscando os resquícios granulados da escuridão. O sangue que havia parado de circular nos membros voltava aos poucos, causando uma sensação de dormência dolorida.
— Tá todo mundo inteiro?
Ellie assentiu. Noah olhou para as próprias mãos para verificar se ainda estavam ali.
— Por enquanto, sim. Mas se a gente continuar aqui, essa porra vai voltar.
Sam afastou-se da estante e olhou para os dois.
— Tem uma coisa que vocês precisam ver antes da gente decidir qualquer merda.
Os outros o seguiram quando ele deu alguns passos para o canto do porão e pararam diante de um velho armário de metal tombado no chão.
— O que foi?
— Eu me escondi aqui dentro. — Engoliu em seco. — Só vi depois que entrei.
Com um chute hesitante, empurrou a porta semiaberta. Um rangido cortou o silêncio, e o cheiro pútrido se espalhou pelo ar como um soco no estômago.
Ellie deu um passo para trás e tapou o nariz com a manga do casaco.
— Ah, puta merda…
Sob a luz tênue, o cadáver amontoado no fundo do móvel pôde ser visto. O corpo estava curvado, como se tivesse tentado desaparecer ao encolher-se. A pele, ou o que restava dela, apresentava um tom acinzentado e encontrava-se afundada contra os ossos. A mandíbula pendia aberta, com os dentes visíveis num sorriso forçado.
Noah inclinou-se um pouco mais mais perto, apesar de sentir seu estômago revirando.
— Isso… isso é um funcionário?
Sam assentiu, com um nó na garganta.
— Pelo uniforme, acho que sim. Ele deve ter se trancado aqui quando essas coisas apareceram.
Ellie franziu a testa. Ela apontou para os dedos da vítima. As unhas estavam quebradas, algumas arrancadas até a carne.
— Tentou arranhar a porta pra sair. Ficou preso aqui até morrer.
Ninguém respondeu. O peso do que aquilo significava era óbvio demais para precisar ser dito.
A garota desviou o olhar e abraçou o próprio corpo.
— Credo. Não quero acabar igual a ele.
Sam fechou a porta do armário com um empurrão.
— Então a gente precisa sair.
— E como a gente sai?
O loiro passou as mãos pelo cabelo, com força suficiente para doer.
— Não faço ideia. Eu só corri até aqui.
— Então foda-se? Vamos sair tropeçando e torcer pra não topar com uma dessas merdas no corredor?
— Pensa um pouco, Ellie. Isso aqui é um porão. Deve ter alguma entrada de serviço, um alçapão, alguma coisa.
Olharam para as paredes desgastadas, à procura de sinais de uma passagem, uma escada de emergência, qualquer abertura que não os obrigasse a voltar aos corredores do estúdio.
— Na verdade… — Sam respirou fundo, a cabeça fervilhando. — Precisamos subir. O porão não tem saída, então a única opção é voltar para o andar principal.
— Ótima ideia. Vamos direto pra boca do lobo.
— Você tem um plano melhor, porra?
Ellie se encostou na parede e fechou os olhos por um segundo.
— E o Jake?
O nome pairou no ar. Sam sentiu um nó no estômago.
O suor escorreu pela nuca quando a lembrança do amigo ficou mais nítida. O jeito como ele ficou para trás, os olhos presos na boneca, o grito que os alcançou antes da porta se fechar.
Noah não olhou para ninguém.
— Ele morreu.
— Você não sabe disso.
— Quer subir lá e checar?
— Ele era nosso amigo, caralho!
— Era. E a gente não pode fazer nada.
Ninguém respondeu.
A respiração de Sam acelerou. O peso daquela culpa sufocava, mas a verdade estava ali. Voltar era uma sentença de morte. Ele apontou para uma estante tombada no canto do porão.
— Olha, sair daqui sem saber por onde ir é suicídio. — disse Noah. — A gente não conhece esse lugar. Tem que ter uma saída de emergência, alguma coisa.
Ellie franziu a testa.
— Talvez uma planta do prédio?
Sam assentiu.
— Sim. Arquivos, recepção, sala de segurança… Alguém tem que ter deixado isso guardado em algum lugar.
A garota passou a mão pelo rosto, como se tentasse apagar a última meia hora da própria memória.
— Certo. Mas se isso não funcionar, a gente volta pros corredores. E que Deus ajude.
— Se Deus existisse, não estaríamos aqui. — Noah resmungou, já indo em direção às escadas.
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