Índice de Capítulo

    Noah inclinou-se sobre o balcão e foi examinar algo que brilhava sob a luz.

    — Ei, venham ver isso.

    As imagens captadas pelo equipamento mostraram o que parecia ser um objeto metálico queimado, com marcas que lembravam dedos humanos, provavelmente deixadas por alguém que o segurasse com força antes do início das chamas.

    — Isso… — Noah hesitou, movendo os dedos ao redor do objeto sem tocá-lo. — Isso não é recente. Mas por que tá tão… deslocado?

    A câmera focou no objeto, que refletia a luz fraca da lanterna como se ainda carregasse algum resquício do incêndio. Era pequeno, irregular, de bordas queimadas e com um brilho metálico opaco. As marcas pareciam mãos que o haviam agarrado em um momento de puro desespero.

    — Isso aqui não é só uma peça qualquer. É como… uma alça ou um suporte. Talvez de algum equipamento.

    — Alguém segurou isso com força. — disse Ellie. — Dá pra ver pelos contornos. É quase uma impressão digital fossilizada.

    Jake abaixou a câmera, dessa vez sem a usual brincadeira nos olhos. Ele parecia ponderar as palavras dela.

    — Mas quem seguraria algo assim em meio ao fogo? Tipo, olha isso, tá queimado ao ponto de quase derreter.

    Ellie estalou a língua, claramente desconfortável.

    — Seja lá quem largou isso aqui, não tava pensando em deixar um bilhete explicando

    Outros detalhes foram capturados pela câmera: pequenas fissuras atravessavam a superfície do metal, de onde saía uma poeira escura semelhante a cinzas. Mais perto da base, havia inscrições tão apagadas quanto se alguém tivesse gravado algo à mão. 

    As letras, tortuosas e arruinadas, não formavam uma palavra clara, mas um padrão desorganizado, como se fossem fragmentos de um nome ou símbolo.

     — Tá todo ferrado.

    Noah acenou com a cabeça, inclinando-se ainda mais próximo.

    — Parece que alguém tentou arrancar o que quer que isso fosse. Ou apagar.

    — Isso tá ferrando minha cabeça. — Jake interrompeu, apontando a câmera diretamente para as inscrições. — Tipo, o que é isso? E por que tá aqui, no meio desse lugar todo queimado?

    — Pode ser só lixo. — Ellie comentou. — Ou pode ser algo que o Sinclair tava usando. Ele não era aquele tipo que pirava com invenções e projetos bizarros?

    — Ele não era só animador?

    — Não, idiota. Lembra dos rumores? Diziam que ele fazia experimentos nos fundos do estúdio. Coisas estranhas, que ninguém entendia direito.

    — Então talvez isso seja um deles. — Noah supôs. — Ou pior… pode ser algo que ele não terminou.

    Sam, que até então estava quieto, deu um passo à frente, apontando para o artefato com a lanterna.

    — E se isso não for só um projeto inacabado? E se for algo que ele ativou?

    O silêncio se instalou novamente na sala. A câmera oscilou quando Jake desviou o olhar para capturar as reações de todos.

    — Agora você tá falando como se fosse um roteiro de filme ruim. 

    Ellie suspirou, chutando levemente um pedaço de destroço próximo ao objeto.

    — Seja o que for, isso me dá uma sensação horrível. A gente devia só… sair daqui.

    — Ainda não. — Noah interrompeu. Ele se ajoelhou mais perto do objeto, a luz da lanterna refletindo no suor que brilhava em sua testa. — Quero entender o que é. Isso não foi deixado aqui por acaso.

    Quando finalmente encostou no artefato, um som baixo ecoou. Parecia um sussurro distante, algo que vibrava mais dentro das cabeças deles do que no ar. Noah recuou a mão imediatamente.

    — Vocês ouviram isso?

    Ellie segurou a alça da mochila com força.

    — Ouvi. E não quero ouvir de novo.

    A câmera tremeu enquanto Jake apontava o feixe de luz na direção de Noah, que ainda estava ajoelhado, com a respiração visivelmente acelerada.

    — O que você fez? — Ellie perguntou.

    — Eu só encostei. — respondeu, a voz carregada de nervosismo. — Era como… um zumbido dentro da minha cabeça.

    — Não foi só na sua cabeça, cara. — Sam falou baixo. — Eu ouvi também. Como se fosse… um som vindo de muito longe.

    Jake deu uma risada curta e tensa, tentando dissipar a pressão crescente no ar.

    — Tá, essa coisa já tá passando dos limites até pra mim. A gente deveria…

    Um barulho seco veio do corredor. Algo como o som de madeira sendo arranhada ou um objeto pesado sendo arrastado. A câmera girou rapidamente enquanto Jake apontava na direção do ruído, mas a lanterna revelou apenas o corredor vazio.

    — O que foi isso? — Ellie arregalou enquanto seu corpo congelou no lugar.

    — Deve ter sido o vento. — sugeriu Sam, embora sua própria voz traísse a falta de convicção.

    — Dentro de um prédio fechado? 

    Noah se levantou rapidamente, com os músculos das pernas tensos. Limpou a mão na calça jeans, embora não pudesse se livrar do que quer que tivesse sentido ao tocar o objeto.

    — Foi daqui perto. Vamos ver o que é.

    — Tá brincando, né? — Ellie disse em um tom quase histérico. — A gente devia sair daqui, não correr atrás de… sei lá, coisa que faz barulho.

    — Ela tem razão. — Sam concordou, já recuando em direção à saída da sala. — Não precisamos provar nada pra ninguém.

    Jake virou a câmera para si mesmo, um sorriso nervoso nos lábios.

    — Tá, eu sei que parece uma péssima ideia, mas, pessoal, isso é o que faz o vídeo valer a pena. Ninguém quer assistir a gente fugindo.

    Outro som veio, mais alto desta vez, como se algo tivesse sido derrubado em uma sala próxima.

    — Que merda… — Noah murmurou, puxando a própria lanterna e liderando o grupo para fora da sala.

    Eles seguiram pelo corredor. A luz oscilante da câmera capturava trechos do ambiente: rachaduras nas paredes, uma luminária antiga caída, fios soltos pendurados no teto.

    As sombras mudavam de lugar nos cantos da visão, mas não de forma natural. Eram desvios sutis, a impressão de um movimento que desaparecia quando se tentava focalizá-lo. 

    Os passos hesitavam ao alcançar uma bifurcação, e os olhos procuravam algum sinal que pudesse indicar a origem do som. Nas trevas, espreitava uma sensação de algo antigo e faminto, que havia testemunhado a passagem do tempo, paciente em sua espera.

    À medida que a trajetória continuava, uma porta enferrujada surgia ao fundo. A madeira estava corroída, deixando entrever as marcas do tempo e talvez de algo mais. Ela exalava uma presença própria, como se fosse menos uma entrada e mais um portal para algo que não deveria ser encontrado. 

    Noah parou subitamente, e o resto do grupo quase esbarrou nele. 

    — Acho que veio daqui. — disse, parando em frente a uma porta de metal com pintura descascada. A placa acima dela indicava Sala de Arquivo Visual.

    Jake passou a câmera por cima do ombro de Noah, filmando-o ao empurrar a porta cautelosamente. O rangido agudo invadiu a quietude do prédio.

    A sala era maior do que o esperado, com muitas prateleiras tombadas e rolos de filme espalhados pelo chão. No canto, havia uma antiga mesa de edição com botões corroídos e cabos desconectados. No centro do ambiente, todos se voltaram para algo.

    Um círculo irregular de velas derretidas envolvia uma boneca de porcelana com olhos vítreos e um sorriso congelado, cujos traços estavam manchados de fuligem. Ao redor dela, símbolos estranhos foram desenhados no chão recém-seco e craquelado com um material avermelhado, que exalava um cheiro ácido.

    — Isso… isso não é normal. — Sam comentou.

    Ellie cruzou os braços, a expressão se tornando uma mistura de nojo e apreensão.

    — O que, exatamente, alguém faz com uma boneca cercada por velas e… é sangue aquilo?

    Noah deu um passo à frente, inspecionando os símbolos.

    — Não faço ideia, mas seja lá quem fez isso, colocou muito esforço.

    Jake se aproximou com a câmera, focando nos detalhes da boneca e dos desenhos.

    — Galera, isso aqui é ouro. Um ritual, uma boneca sinistra. Quem não ia assistir isso?

    — Isso é sério, Jake. — Ellie cortou, girando nos calcanhares para encará-lo. — E se for recente? E se a pessoa que fez isso ainda estiver aqui?

    Um som seco reverberou pelo corredor, como se algo tivesse sido arrastado novamente. Todos congelaram, trocando olhares alarmados.

    — Tá, agora chega. — Sam decretou, agarrando o braço de Jake. — A gente já viu o suficiente. Tá na hora de ir embora antes que a gente vire parte dessa merda.

    — Só mais um minuto. Segura a câmera pra mim, quero fazer uma coisinha.

    Jake estendeu a câmera na direção do garoto. A câmera tremia ligeiramente em sua mão, com a qual ele parecia desconfortável não só pelo peso do equipamento, mas também pelo que estava ao redor.

    — Segura aí. Prometo que não demoro.

    — I-isso é idiota até pra você.

    — Relaxa. Vai ser épico. — Ele piscou, com o tipo de confiança que irritava tanto quanto divertia.

    Noah esfregou o rosto com as mãos, os dedos afundando na pele como se tentasse apagar a cena à frente.  

    — Me diz que você não vai fazer a merda que tô pensando.

    Jake ignorou o comentário. Avançou até o centro da sala, onde rabiscos envelhecidos formavam um círculo no assoalho de madeira rachada. No centro, uma boneca de porcelana repousava com os braços estendidos, os cabelos de fio desbotados por décadas de poeira. Os olhos de vidro refletiam a luz fraca de uma lâmpada pendente, criando a ilusão de um olhar que acompanhava cada movimento.  

    — Tá de brincadeira comigo? Claro que vou.

    O tom debochado veio acompanhado de um olhar casual por cima do ombro.

    — Jake, para com essa merda!

    Ellie avançou um passo, os braços tensos ao lado do corpo, mas hesitou antes de cruzar a linha que delimitava o círculo. O temor que relutava em admitir dançava em seus olhos escuros.

    — A gente devia ir embora. — sussurrou, recuando até suas costas colidirem com uma prateleira de roteiros empoeirados. — Antes que…  

    O alvo da acusação se agachou, os dedos traçando o contorno dos símbolos com um falso interesse acadêmico.

    — Pelo amor de Deus, vocês precisam parar de ver esses documentários de terror de quinta. Isso aqui é só um cenário montado pra assustar idiotas como a gente.

    Do outro lado da lente, o aperto na câmera se intensificou. O suor escorria pela palma de quem segurava o equipamento, tornando a pegada escorregadia. Um passo inconsciente foi dado para trás, criando um pouco mais de distância da cena.

    — Escuta, não mexe nisso. A gente não sabe quem fez, nem por quê. E, pra ser honesto, não quero descobrir.

    A resposta veio com um revirar de olhos. Jake se levantou e fitou os outros.

    — Querem ver? Eu provo que não tem nada aqui.

    Ele ergueu o pé indiferente a tudo.

    O grito de protesto foi tarde demais.

    O impacto ressoou na madeira desgastada quando a boneca saiu do círculo, tendo batido contra a parede oposta com um som oco.

    Não aconteceu nada.

    O silêncio após o impacto pesava. Não se ouviu qualquer respiração, nem rangidos da estrutura velha; apenas a tensão estava suspensa no ar, à espera de rebentar.

    O garoto se virou, os braços abertos, num gesto teatral.

    — Viu? Nada! Nada além de historinhas pra assustar turistas.

    O olhar de puro ódio de Ellie à sua frente deixava claro que, se pudesse, o empurraria pela janela mais próxima.

    — Seu jumento. Isso não prova nada. Só prova que você é um…

    O som que veio a seguir não pertencia a este mundo.

    — MINHA FILHA NÃO! 

    A câmera tremeu violentamente quando quase caiu, um reflexo desesperado impediu que atingisse o chão. O coração disparou no peito de Sam.

    — Que porra foi essa?! 

    A garota recuou, os olhos arregalados ficaram cravados no ponto onde a boneca estivera.

    — Eu avisei…

    Nenhuma satisfação em ter razão. Somente um medo opressivo travando a voz.

    O idiota que chutara a boneca não disse nada. O sorriso fora arrancado do rosto como um papel amassado, deixando apenas um vazio perplexo. O olhar fixo no círculo vazio, como se ainda esperasse ver a boneca ali.

    O grito se repetiu. Mais alto. Mais perto.

    — MINHA FILHA NÃO!

    — A gente precisa sair daqui. Agora!

    Noah já se movia para a saída.

    — Ei, me esperem!

    Jake recuou, mas tropeçou nos calcanhares num rolo de filme abandonado. A boneca girou a cabeça com um rangido de porcelana rachada, a boca imóvel, mas a voz saía de todos os cantos:  

    — VOCÊ A MACHUCOU. VOCÊ A MACHUCOU. 

    Sam correu para a janela, os dedos arranhando a madeira podre das tábuas que a selavam. Ellie chutou a maçaneta até que a porta cedeu com um gemido metálico.  

    — Jake, anda! — gritou, mas ele permanecia imóvel, os olhos presos aos da boneca.  

    Ela avançou. Não andando — deslizando, como se o chão a puxasse para frente. Os braços tremeram, depois se ergueram em um ângulo impossível, apontando para o peito dele.  

    — VOCÊ VAI FICAR. VAI FICAR COM ELA.

    Noah não esperou. Atravessou a porta correndo com Ellie pelo braço enquanto Sam os seguia. Jake finalmente moveu-se, mas escorregou no próprio suor que manchava o assoalho. A boneca já estava a um palmo, o cheiro de terra molhada e mofo antigo inundando suas narinas.  

    — Me ajuda! 

    A câmera girou no último segundo, revelando a cena final antes da porta bater com estrondo.

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