Índice de Capítulo

    O plano era fraco, talvez nem fosse um plano de verdade, mas era a única opção que tinham. E se não desse certo, a única saída seria morrer tentando.

    Noah liderava o grupo enquanto Sam vinha atrás com a câmera apontada para frente como um escudo frágil contra o desconhecido e Ellie fechava a retaguarda, a respiração entrecortada saindo em nuvens de vapor no ar gelado.

    — Para. — Noah ergueu um braço, congelando no meio do lance de escadas. — Tem algo lá. 

    A lente da câmera balançou para frente, focando na porta do primeiro andar, entreaberta e balançando levemente, como se algo a tivesse arrombado. O corredor além estava mergulhado em sombras, exceto por um filete de luz pálida vindo de uma janela quebrada.  

    Sam ajustou a lente, as mãos trêmulas ampliando o zoom na entrada. Algo brilhou no chão – vidro quebrado, ou talvez sangue seco.  

    — Vai logo, menino. 

    Ao empurrar a porta, esta rangeu e eles estavam de volta de onde vieram. O cheiro a mofo e a algo mais ácido, semelhante a carne em decomposição, inalou-se no ar. Ellie tapou o nariz com a manga da blusa, enquanto os olhos lacrimejavam.  

    — Esquerda. — Noah apontou para uma placa descascada que indicava a Sala de Maquetes. — Vamos tentar ali.

    Os três avançaram em fila, os passos abafados pelo carpete úmido que grudava nas solas. A porta da Sala de Maquetes estava entreaberta, um fio de luz dourada vazando pela fresta. Noah esticou a mão para empurrá-la, mas parou quando um som úmido e mastigatório ecoou de dentro.  

    — Merda. — Ele recuou, os olhos arregalados.  

    Sam inclinou o equipamento para dentro da sala.  

    A Sala de Maquetes não passava de um labirinto de prateleiras cheias de miniaturas de edifícios cobertos de teias de aranha. No centro, via-se uma criatura agachada sobre um corpo. Não se tratava de uma boneca, mas sim de algo pior.  

    A criatura tinha membros alongados e articulados de forma não humana, a pele enrugada e translúcida como a de um cadáver submerso. Os seus dedos terminavam em garras curvas que rasgavam a carne do cadáver no chão: um homem de uniforme do estúdio, cujo rosto ainda era reconhecível apesar da mandíbula arrancada. 

    Os órgãos expostos brilhavam sob a luz fraca, os intestinos desfiados pendiam como cordas viscosas. A criatura enterrou o rosto no torso aberto, emitindo um ruído de sucção seguido por um estalo molhado de ossos a serem triturados.  

    — Volta, volta, volta… — Ellie agarrou a camisa do loiro e o puxou para trás.  

    Era tarde demais. A criatura ergueu a cabeça e os seus olhos rasos de pupilas fixaram-se. O rosto era uma paródia humana: o nariz era achatado, os lábios estavam retraídos sobre fileiras de dentes afiados como agulhas. Algo escuro escorria da sua boca: sangue ou talvez bile.  

    — Corre! — Noah gritou, empurrando-a de volta ao corredor.  

    A criatura levantou-se, com um estalo das articulações, como galhos secos. Os seus movimentos eram espasmódicos, com os membros a contorcer-se enquanto avançava. Sam correu atrás dos outros.  

    — Ali! — Ellie apontou para uma porta marcada com Depósito

    Ao alcançar a maçaneta, Noah arrombou a porta com o ombro. Os três espremem-se dentro do depósito – um cubículo apertado cheio de latas de tinta empilhadas e ferramentas enferrujadas. Sam trancou a porta, com as mãos a escorregarem no ferrolho sujo de graxa.  

    — Segura isso! 

    Noah empurrou uma estante de metal contra a entrada, sob o qual saltavam veias do braço. A criatura bateu à porta, um impacto que fez com que as latas de tinta caíssem e rolassem pelo chão. Um líquido preto e pegajoso vazou, formando poças que cheiravam a químicos podres.  

    — Tem que ter outra saída! 

    Ellie agarrou uma chave inglesa do chão, os dedos brancos de tanto apertar. O loiro olhou em volta, a respiração ofegante. Seu olhar pousou em uma janela estreita no alto da parede, bloqueada por tábuas cruzadas.

    — Ali! — Apontou, já empurrando uma mesa debaixo da janela. — Me dá essa chave!

    Quando a garota atirou a ferramenta, Noah agarrou-a no ar. Ele começou a arrancar as tábuas, com as pontas enferrujadas dos pregos aos rangidos contra a madeira podre.

    — Rápido, rápido! — Ellie pressionou as mãos contra a porta, como se pudesse segurar a criatura com força pura.

    A madeira da porta rachou, uma fenda abriu-se no centro. Garras negras e recurvadas penetraram pela abertura, arranhando o ar em busca de presa.

    — Noah! 

    A madeira cedeu com um estalo seco, e a última tábua se desprendeu, revelando um espaço escuro e estreito. O corredor metálico do outro lado fazia parte do sistema de ventilação do prédio, um túnel apertado que se estendia por metros na penumbra. O cheiro de ferrugem misturado ao mofo invadiu as narinas de Ellie, tornando o ar mais pesado.

    — Quase lá! — sibilou Sam, a voz trêmula de urgência. Ele subiu na mesa, que rangia sob seu peso, enfiou a câmera no bolso e se espremeu pela abertura com movimentos apressados e desajeitados.

    Ellie veio logo atrás. Subiu na mesa com um salto vacilante, as mãos trêmulas ao apoiar-se na lateral do duto. O jeans rasgou ao roçar na madeira lascada, mas ela mal notou. O coração disparava dentro do peito, cada batida ecoava na garganta seca.

    — Vem, rápido! — gritou, estendendo a mão para Noah, que ainda hesitava.

    Ele não teve tempo de responder no momento em que a porta explodiu para dentro 

    A estante de metal ao lado tombou com um estrondo ensurdecedor, espalhando ferramentas e papéis pelo chão. A criatura invadiu o depósito como um pesadelo feito carne. O som que escapou de sua garganta não foi um rugido, mas um chiado molhado, como ar forçando passagem por uma traqueia rasgada.

    Noah saltou para a mesa, o rosto contorcido em puro pavor.

    — Pula! — Ellie berrou, os olhos arregalados ao vê-lo hesitar.

    Noah tentou, mas seus ombros largos ficaram presos na moldura. A madeira gemeu sob o esforço, e ele se debateu, os pés chutavam o ar em desespero.

    Então sentiu.

    A dor veio rápida e violenta.

    As garras da criatura afundaram em sua panturrilha, rasgando carne e músculos em uma mordida abrasadora de puro horror. Seu grito foi instintivo, um som gutural arrancado à força de seus pulmões.

    — Agh, caralho! — Os dedos arranharam a parede, buscando qualquer apoio, qualquer coisa que o puxasse para longe daquele inferno.

    Ellie segurou seu braço com força, puxando-o com desespero. As lágrimas escorriam por seu rosto. Os músculos tremiam, cada fibra do corpo lutava para não soltá-lo.

    — Vem, Noah! Segura firme, por favor!

    A criatura puxou com mais força, até que Noah foi arrancado da moldura.

    A queda contra o chão arrancou-lhe o ar dos pulmões e, de seguida, a coisa lançou-se sobre ele. Um peso sufocante, uma jaula de membros deformados e uma mandíbula desencaixada que se abriu para revelar fileiras de dentes irregulares, afiados e cobertos de uma baba espessa.

    Noah lutou. Deus, como lutou.

    O seu punho atingiu o crânio da criatura, mas foi como tentar esmagar concreto. Chutou, com os pés a debaterem-se contra o chão encharcado de sangue e graxa. As unhas cravaram-se na pele da criatura, mas apenas sentiram a textura escorregadia e quente da carne necrosada.

    — Ellie!

    Foi a última coisa que disse antes de a criatura fechar a boca à volta do seu pescoço.

    O estalo soou seco, como um final.

    Seus olhos arregalaram-se ao sentir os dentes afundarem-se, esfacelando tendões, cartilagens e veias. O sangue jorrou em golfadas grossas, dando à mandíbula da criatura uma cor vermelha viscosa.

    O seu corpo estremeceu convulsivamente, os membros ainda tentavam resistir, mas acabaram por perder as forças por completo. A criatura puxou ainda mais forte e ouviu-se um som repugnante de carne e ossos se separarem. A perna esquerda de Noah ficou torcida numa posição anormal, o osso branco emergiu da carne aberta.

    Ellie viu tudo.

    Os olhos dele vidraram enquanto seu sangue se espalhava em uma poça quente ao seu redor. Seu corpo foi arrastado para a escuridão, desaparecendo sob a sombra da criatura, que continuava a devorá-lo.

    Sam a segurou antes que ela fizesse algo estúpido. Ela queria gritar, correr, puxá-lo de volta, mas nada podia fazer. A única coisa que restava de Noah era o som úmido da criatura mastigando.

    — Por quê…?

    Sam puxou-a pelo braço, arrastando-a pelo duto estreito. 

    O duto era um túmulo de metal.

    Não se sentia qualquer circulação de ar no seu interior, saturado pelo cheiro nauseabundo de ferrugem e pelo sangue seco que ainda impregnava as roupas de Ellie. Os joelhos e os cotovelos faziam um ruído metálico ao rangerem contra a superfície áspera, enquanto o eco abafado das suas respirações preenchia o túnel estreito.

    Atrás deles, o som da criatura que mastigava Noah continuava, um ruído umedecido e ritmado misturado ao gotejar constante de algum cano furado no sistema de ventilação. Ellie queria tapar os ouvidos, não queria ouvir, mas o espaço claustrofóbico não permitia distrações.

    Sam ia à frente, os ombros tensos, o rosto mal iluminado pela pouca luz que se infiltrava pelas frestas. Ellie vinha logo atrás, cada centímetro de seu corpo exausto, mas seu peito carregava algo pior que o cansaço: um buraco se abrira dentro dela. 

    Um vazio carregado de culpa.

    — Saída à direita. — sussurrou Sam, apontando para uma grade solta logo à frente.

    Ellie focou no metal enferrujado e, sem hesitar, girou o corpo e desferiu um chute. A grade caiu com um estrondo abafado, e os dois despencaram pelo buraco.

    O impacto no chão foi doloroso. Ellie sentiu os ossos vibrarem ao aterrissar de mal jeito, os pulmões queimando pela falta de ar. A câmera caiu ao seu lado, capturando a placa torta na parede: Sala de Edição 2B.

    A sala estava como se tivesse sido esquecida no tempo.

    Monitores partidos piscavam fracamente sobre mesas cobertas por storyboards amarelados e copos de café mofados. Havia pilhas de rolos de filme espalhadas pelo chão, algumas ainda dentro de caixas rotuladas com datas antigas. Uma mistura enjoativa de cheiros: mofo, papel embebido em água e algo mais… algo rançoso, quase doce demais para ser apenas decadência.

    Sam se levantou primeiro, os movimentos ainda trêmulos.

    — Tranca a porta…

    Ellie encostou na parede e deslizou até o chão.

    Sam não hesitou. Correu até um armário e o arrastou para a frente da entrada. O móvel rangeu sobre o piso, mas, por fim, criou uma barreira improvisada. Ele ficou ali, as mãos ainda pressionando a madeira, como se precisasse sentir que estavam realmente seguros.

    A câmera continuava ligada, focando no rosto de Ellie. Seu olhar estava vazio, perdido. As manchas de sangue seco e tinta negra em sua pele pareciam fragmentos de uma história que ela nunca deveria ter vivido.

    Então, ela riu. Baixo, fraco, um som quebrado.

    Sam virou-se lentamente, confuso.

    — Ellie…?

    A mesma soluçou. Um som pequeno, trêmulo, que rapidamente se transformou em um riso histérico e quebrado. Ellie enterrou o rosto entre as mãos, os ombros sacudindo violentamente.

    — Filha da puta… — sussurrou, a voz engasgando no próprio desespero. — Filha da puta, filha da puta, filha da PUTA!

    Seu grito reverberou pelas paredes, espremido entre fúria e dor.

    — Eu não devia estar aqui! Eu não devia ter vindo pra essa merda de lugar, mas não. Eu tive que seguir essa ideia estúpida, essa droga de canal idiota, essa vontade de provar que eu era fodona o suficiente pra entrar num prédio abandonado e bancar a detetive do sobrenatural!

    Ela puxou o cabelo com força, as unhas cravando no couro cabeludo.

    — Eu tava bem! Eu tinha um emprego fodido, mas era meu! Eu tinha um AP pequeno, mas pelo menos eu dormia sem achar que ia ser ESQUARTEJADA VIVA!

    Sua voz quebrou, e ela bateu as costas contra a parede, o impacto ressoando pela sala.

    — Por que caralhos eu achei que isso era uma boa ideia? Por que eu não fiquei em casa, ouvindo minha mãe me chamar de fracassada em paz?

    Sam permaneceu em silêncio. Ele nunca a tinha visto assim. Ellie limpou o rosto com as mãos sujas, espalhando ainda mais a mistura de lágrimas e sangue.

    — A gente viu ele morrer, Sam. A gente viu…

    Ela ofegou, os olhos desfocados na direção do nada.

    — A perna dele… Deus, o jeito que ela torceu… E os olhos… Ele tava vivo. Ele sentiu tudo. Eu ouvi… eu ouvi cada porra de segundo disso. Eu não consigo tirar isso da minha cabeça. Não consigo.

    Ela agarrou a gola da própria blusa, como se tentasse impedir o peito de explodir.

    — E agora o quê? A gente senta aqui e espera a próxima merda acontecer? Espera ser o próximo? Noah tá morto. Jake também. E por quê? Porque a gente quis brincar de caçador de mistério. Porque essa desgraça parecia divertida. Porque eu achei que nada ia acontecer. Mas agora eles tão mortos, Sam. Mortos de verdade. Não em um jogo, não num vídeo, não numa história inventada pra ganhar views.

    Ela riu, um som quebrado e sem vida.

    — Nunca quis morrer tanto na minha vida quanto agora. Mas eu sou uma covarde. Sei que sou. Se eu tivesse coragem, teria me jogado naquele duto depois dele. Pelo menos não precisaria ficar aqui esperando ser devorada como um porco preso no matadouro.

    Sam fechou os olhos por um instante, consciente do peso esmagador da realidade sobre os ombros. Queria dizer algo, qualquer coisa que fizesse a diferença, mas não havia palavras capazes de costurar o que já estava destruído. Como se explicava a alguém que a vida seguia em frente depois daquilo? Como se poderia dizer que as coisas iam melhorar, quando ele próprio não acreditava nisso?

    Os segundos que se seguiram foram longos, carregados de tudo o que não conseguiam expressar. Seu coração batia pesado, não por medo, mas por impotência.

    Então, fez a única coisa que podia.

    Ajoelhou-se ao lado dela, sentindo o chão frio contra os joelhos, e segurou sua mão. Não de forma hesitante ou leve, mas firme, como se quisesse ancorá-la à realidade, impedir que ela se afogasse naquele mar de desespero. Seu polegar roçou a pele quente e trêmula dela, um gesto pequeno, mas cheio de tudo o que ele não sabia dizer.

    Ellie estremeceu, os dedos inicialmente rígidos sob os dele. Mas não puxou a mão de volta. Não se afastou.

    Ficaram ali, imóveis. Não era conforto, porque nada poderia confortá-los depois daquilo. Mas era algo. E, por enquanto, teria que ser suficiente.

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