Índice de Capítulo

    11 de Agosto

    Eu estava chegando a uma encruzilhada, um ponto decisivo em minha jornada da adolescência à vida adulta. O peso do futuro recaía sobre mim, fosse a decisão de frequentar a universidade ou o terrível desconhecido do mercado de trabalho.

    Todavia, assim que a necessidade de ir embora, de escapar do peso dessas decisões, começou a me dominar, um incidente inesperado colocou uma sombra negativa sobre tudo, inclusive sobre mim. Era a antítese da juventude, uma força que parecia aniquilar a vida e o otimismo em seu caminho.

    A exploração despreocupada das possibilidades deu lugar a uma incerteza assustadora. Era esse o mundo em que eu estava prestes a entrar? Um mundo onde a vibração da vida poderia ser extinta em um instante? A universidade, um emprego, um futuro – tudo isso parecia trivial diante de um destino tão cruel.

    — Bom dia, bela adormecida.

    Ouvi palmas após as palavras, que eram de uma voz masculina.

    Ergui lentamente as pálpebras e, embora a minha visão estivesse turva, consegui ver as suas pernas.

    A dor na cabeça cabeça latejava como um tambor. Ao abrir os olhos, fiquei momentaneamente com a visão obstruída pela luz que entrava por uma janela partida. Minha mente ainda estava lenta, tropeçando em qualquer tentativa de compreensão. Não sabia onde estava nem porquê. Tudo o que me vinha eram imagens fugazes: a sensação da queda, o impacto e, depois, o vazio.

    — Ele parece estar finalmente recuperando a consciência. A sessão está prestes a começar.

    Tentei entender o que ele queria dizer com “sessão”, mas tudo o que ouvi foi um zumbido incessante.

    Balancei a cabeça em uma tentativa inútil de limpar meus pensamentos, mas a confusão mental permaneceu.

    Dei uma olhada ao redor, esforçando-me para analisar a cena. O local se assemelhava a um mausoléu em ruínas: paredes rachadas, pintura descascando em faixas que se assemelhavam a uma pele ressecada, o chão coberto por uma espessa camada de poeira intercalada com entulho. Os raios de sol atravessavam as janelas quebradas em faixas irregulares, banhando um ambiente que respirava desolação.

    Nada ali era familiar para mim, mas não parecia estranho ao tipo de bagunça em que eu geralmente me metia.

    — Tá legal?

    A voz de novo, dessa vez mais próxima.

    Antes que eu pudesse responder, ele se abaixou, e seu rosto finalmente entrou no meu campo de visão. Não o reconheci, mas havia algo perturbador nele, algo que não consegui identificar logo de cara.

    Tentei mexer os braços, mas um som metálico interrompeu o movimento. Olhei para baixo e vi as esferas de metal que me prendiam. Estavam conectadas a correntes fixadas na parede. As coisas pareciam feitas de algum material indestrutível, e a pressão nos pulsos começava a queimar.

    — Que porra é essa… 

    O homem puxou uma cadeira enferrujada e sentou-se.

    — E aí, como se sente? Tá melhor agora? — Ele apoiou os cotovelos nos joelhos. — Passou três dias apagado, sabia? Foi um estrago e tanto o que você fez naquela escola. A gente não podia simplesmente deixar você solto.

    Escola? Estrago? Nada fazia sentido.

    — Quem é você?

    — Um resumo rápido. Somos a U.E.C., Unidade Expedicionária de Caça. — Ele fez uma pausa, como se esperasse alguma reação. — Nossa especialidade é prender e eliminar Mephistos perigosos. Você, por acaso, foi identificado como um deles.

    — Que merda você tá dizendo?

    — Bem o que parece. — Ele suspirou, recostando-se na cadeira. — Você é um Mephisto. Ou melhor, metade humano, metade Mephisto. Um híbrido, pra facilitar o entendimento.

    Meu cérebro tentava acompanhar, mas era como tentar montar um quebra-cabeça com peças erradas.

    — Isso tá parecendo ficção barata. Do que caralho você tá falando?

    Ele inclinou-se para frente, os olhos — agora claramente tingidos de um vermelho inquietante — me encarando com uma intensidade quase predatória.

    — Mephistos são criaturas geradas pela negatividade humana. Quando emoções ruins atingem um limite crítico, essas coisas tomam forma e, eventualmente, controle. No seu caso, alguma coisa deu errado. Você manteve a consciência humana, mas não o suficiente pra não ser perigoso.

    — Perigoso? Perigoso pra quem?! — Tentei me mexer de novo, mas as correntes resistiram. — Se eu fosse perigoso, não tava aqui amarrado!

    Ele riu, seco e condescendente.

    — Você é um moleque. Não faz ideia do que carrega. O que você fez na escola foi só um aviso. Se não aprender a controlar isso, você vai acabar destruindo muito mais.

    A raiva começou a tomar conta. Eu não sabia o que tinha feito, mas o tom dele, aquele maldito tom superior, me irritava.

    — E por que eu devia acreditar em você? Que merda é essa, uma operação secreta de gente esquisita com olhos vermelhos?

    O homem levantou-se da cadeira com um sorriso cínico e apontou para as correntes.

    — Você ainda tá vivo, não tá? Isso já devia ser motivo suficiente. E, pra sua informação, burro, não é só uma operação secreta. Isso aqui é política. Sua existência mexe com interesses. Se você sair do controle, vira manchete, depois vira caos, e ninguém quer lidar com isso. A gente não quer.

    — Cê tá falando como se eu fosse uma máquina quebrada. Eu ainda sou uma pessoa, ouviu?

    — Pessoa? É mesmo? O que você fez na escola não foi coisa de pessoa. O chão literalmente derreteu sob seus pés. Me fala, isso te parece humano?

    A memória da escola era um borrão, um amontoado de imagens desconexas: corredores cheios de gritos, calor insuportável, e algo mais profundo, como se uma força que não era minha estivesse me puxando para o abismo. 

    Meu estômago embrulhou ao pensar nisso, mas não ia dar a ele o gostinho de me ver vacilar.

    — Sei lá. Eu nem sei o que aconteceu direito, mas parece que você sabe muito bem. Por que não me conta tudo de uma vez, em vez de bancar o espertão?

    Ele deu uma risada curta, balançando a cabeça.

    — Tá bom. Quer ouvir tudo? Beleza. Você perdeu o controle. Essa energia negativa dentro de você explodiu, e todo mundo que estava lá pagou o preço. Não importa se foram eles que começaram. O mundo não quer saber da sua versão. Quer culpados, manchetes. E você é o rosto perfeito pra isso.

    — Não é como se eu tivesse escolhido isso! — Tentei avançar na direção dele, mas as correntes puxaram meus braços de volta, o metal pressionando ainda mais minha pele. — Vocês me prendem, me chamam de monstro, mas ninguém explica porra nenhuma!

    Os olhos vermelhos dele brilhavam com uma mistura de exasperação e algo que parecia… pena?

    — Não, você não escolheu. Mas isso não importa mais. O que importa agora é o que você vai fazer com isso. Tá aqui porque ainda tem chance de aprender. Mas não se engane, se achar que pode fugir ou bancar o rebelde, vai descobrir rapidinho que a gente tem um plano B.

    Minha garganta ficou seca e eu voltei para o meu lugar. Não sabia se era pelo tom ameaçador ou pela sensação de que ele estava falando sério.

    — E se eu disser que cês podem enfiar esse plano no cu?

    Riu-se de novo, mas dessa vez o som era quase perigoso.

    — Então você deixa de ser um problema pra agência e vira um problema de Estado. E, meu amigo, o Estado não tem paciência.

    Senti um calafrio na espinha. Ele não precisava se esforçar para soar ameaçador. A segurança com que falava era o bastante. Não sabia se era a ameaça implícita ou o fato de que, pela primeira vez, parecia que alguém realmente sabia o que fazer comigo.

    Ele caminhou até um arquivo metálico na parede oposta. A gaveta fez um som agudo ao ser aberta, e puxou um arquivo grosso com meu nome escrito em letras maiúsculas.

    — Quer saber o que eles sabem sobre você? — Ergueu o arquivo, sacudindo-o levemente.

    Puxou a folha que estava dentro do documento e começou a ler:

    Nome: Krynt Hughes.

    Idade: 17 anos.

    Gênero: Masculino.

    Altura: 1,72 metros.

    Peso: Aproximadamente 70 kg.

    Cor dos Olhos: Castanho-escuro.

    Cor do Cabelo: Castanho-escuro.

    Descrição Física: Krynt Hughes é um jovem de constituição física magra, com cabelos pretos caídos sobre a testa. Seus olhos são penetrantes, dando-lhe uma aparência inquietante e perturbadora.

    Tatuagens/Cicatrizes: Não há informações sobre tatuagens ou cicatrizes visíveis.

    Comportamento Notável: Hughes é notório por seu comportamento extremamente violento e obsessão por práticas sádicas. Sua obsessão por derramamento de sangue e maquiavelismo levou à estrita proibição de qualquer forma de contato com outros seres humanos.

    Observações Adicionais: Este indivíduo representa uma séria ameaça à sociedade. As autoridades são aconselhadas a abordá-lo com extrema cautela. É possível que Hughes esteja sofrendo de distúrbios mentais graves; portanto, recomenda-se que qualquer contato seja feito por profissionais.

    Medidas de Segurança: Krynt Hughes representa uma ameaça grave à segurança pública.

    Dada a natureza de seus crimes e seu comportamento imprevisível, medidas de segurança extensivas foram implementadas:

    Isolamento Total: Krynt Hughes será mantido em isolamento rigoroso para evitar qualquer tipo de contato com outros Mephistos ou membros da equipe da instituição. Essa medida é fundamental para garantir a segurança de todos os envolvidos e minimizar qualquer risco potencial de incidentes. O isolamento rigoroso é uma precaução necessária, dada a natureza do caso e a possível ameaça que ele representa.

    Vigilância 24 Horas: O monitoramento constante será realizado por meio de câmeras de segurança, com funcionários qualificados para garantir que não haja tentativas de fuga ou comportamento agressivo por parte do Mephisto. Essa vigilância contínua é fundamental para manter a segurança e a ordem na instituição, garantindo que qualquer movimento perigoso seja detectado e tratado imediatamente.

    Avaliação Regular: Serão realizadas avaliações regulares para monitorar de perto a condição de Krynt Hughes. Essas avaliações são essenciais para acompanhar sua condição física e mental ao longo do tempo, permitindo a intervenção adequada caso haja alguma mudança significativa em seu comportamento ou estado de saúde.

    Restrição de Visitas: Visitas restritas a profissionais autorizados.

    Aviso: Qualquer tentativa de violar as medidas de segurança resultará em ações legais imediatas. Este registro é confidencial e estritamente para uso oficial das autoridades competentes.

    A órbita negra sobre mim era descrita em cada palavra e sílaba. Crimes relacionados com a violência e atos de instigação ao ódio saltavam das páginas, compondo um quadro perturbador do que eu tinha feito.

    Mais do que nunca, parecia que as precauções de segurança não eram apenas apropriadas, mas também vitalmente necessárias para preservar a sociedade contra o mal que eu representava

    — Nem fodendo! Como eu faria uma porra dessas?! — A incredulidade disparou da minha boca antes que eu pudesse pensar. 

    Meu peito arfava, e o coração martelava como se quisesse pular fora do peito.

    O homem à minha frente ergueu os olhos do papel que segurava, o rosto imóvel como uma pedra. 

    — É exatamente isso que estamos tentando descobrir. O que sabemos até agora é simples. Você foi possuído por essa coisa que está aí dentro.

    A palavra “possuído” ficou pairando no ar, mais pesada do que qualquer outra coisa que ele pudesse dizer. 

    O silêncio foi interrompido pelo som das folhas de papel que ele folheava, os dedos deslizando pelas páginas com cuidado irritante.

    — Ah, e aqui está. Outra curiosidade interessante. — Ele ergueu o papel e, sem levantar os olhos, disse: — Você também possui uma doença hereditária. Esquizofrenia.

    O olhar que lancei foi puro instinto, uma mistura de choque e deboche.

    — Como é a conversa? 

    Dobrou a página no meio e olhou direto nos meus olho. 

    — Você apresentou sintomas claros nos três dias desde que trouxemos você pra cá. Falar sozinho. Alucinações. Comportamento errático. Nada fora do manual. Mas agora que você finalmente está consciente, posso perguntar… — Deu dois passos à frente, inclinando o rosto até que nossos narizes quase se tocassem. Seus dedos agarraram a ponta do meu queixo, forçando-me a manter o contato visual. — O que exatamente está acontecendo com você?

    Recuei como pude, limitado pelas algemas. 

    — Eu… ouço uma voz. Algo estranho. Ela fala umas coisas na minha cabeça. Só isso.

    — Quem é?

    — Não faço ideia.

    Soltou meu queixo rapidamente e se afastou como se a resposta fosse suficiente. Em seguida, voltou-se para a prateleira de metal, vasculhando os papéis como se estivesse procurando algo específico.

    — Então… qual é o seu nome mesmo? — Minha pergunta saiu com mais sarcasmo do que eu pretendia. Não que eu estivesse esperando uma resposta de verdade.

    Ele parou por um momento, virou apenas o suficiente para lançar um olhar de puro desprezo. 

    — Desculpa, mas a gente não se apresenta pra criaturas em contenção. Regra básica.

    Revirei os olhos e estalei a língua contra os dentes. 

    — Tsc. Que merda de regra estúpida.

    Um nó de frustração se apertou em minhas entranhas. Lá estava eu, sendo tratado como um paciente psiquiátrico por alguém que eu mal reconhecia. Três dias, segundo ele, haviam se passado. No entanto, a névoa em minha mente se recusava obstinadamente a se dissipar, as horas perdidas eram um abismo em minha memória. Pareciam mais três horas agonizantes presas nessa confusão.

    “Esse cara…”

    Tinha uma presença imponente que inundava o espaço com um ar autoritário.

    Suave como a seda, o seu cabelo caía-lhe em cascata à volta do pescoço, numa forma dourada que brilhava ligeiramente com a luz circundante, no entanto, os seus olhos vermelho-rubi, que pareciam transparecer uma intensidade sobrenatural que transcendia a normalidade, eram o que chamava-me a atenção.

    Sua vestimenta, que incluía uma camisa branca, gravata vermelha, calça e sapatos pretos, lhe davam um ar profissional. Talvez essa aparência fosse a assinatura da organização à qual ele pertencia.

    “Mesmo que eu tente provar o contrário, ele não vai se importar. É melhor eu esquecer isso.”

    As probabilidades estavam contra mim, e as chances de uma solução rápida diminuíam a cada momento. Mas aqui estava eu, à deriva em um mar de solidão. Essa solidão, seja da agitação de uma cidade ou da beleza tranquila de uma ilha do Oceano Pacífico, parecia um túmulo vivo. Era uma sensação que ia além da distância física, um peso esmagador em minha mente que ameaçava me engolir completamente.

    Ao contrário de outros jovens com esperanças e aspirações, eu me encontrava em um estado de ambiguidade. A vida para mim era uma experiência desconcertante, sem um caminho óbvio ou um grande objetivo. A perspectiva de um futuro satisfatório sempre pareceu uma ilusão distante, fora de alcance.

    Em vez de buscar expectativas grandiosas, encontrei paz nos pequenos prazeres que enriqueciam minha existência diária. Os relacionamentos genuínos que estabeleci com outras pessoas, aqueles momentos de riso e compreensão compartilhados, tornaram-se minhas luzes orientadoras no terreno caótico da vida. Foi nesses momentos efêmeros de conexão humana que encontrei algum significado, um senso de pertencimento que transcendeu o vazio de um futuro incerto.

    “Mesmo assim, cara. Ninguém merece viver desse jeito.”

    Aqui eu sou apenas um pássaro em uma gaiola, ou algo muito pior.

    Alguém que conseguiu perder toda a sua liberdade.

    “A vida deveria ser muito melhor do que isso, né?”

    Então é isso que chamam de inferno. Eu não poderia imaginar que fosse tão ruim assim.

    — Pois bem — virou-se para mim. —, esquizofrenia paranoide é uma possibilidade, mas precisaríamos de mais estudos. Talvez algo esteja escondido no seu subconsciente. E você ouve as vozes, não ouve? Isso é tudo que importa.

    As palavras dele deixaram um peso estranho no ar, mas eu não conseguia processar tudo de uma vez. 

    — E o que vai acontecer comigo agora? — perguntei, a voz mais fraca do que eu gostaria.

    — Vamos te executar.

    Meu corpo gelou. 

    — Como é que é?! 

    Riu-se, um som alto e falso, o tipo de risada que era feita para humilhar. 

    — Olha pra você, ficou branco como um fantasma. — A mudança no tom foi imediata, e a frieza na voz seguinte me atingiu como uma faca. — Mas é verdade. Aberrações como você não têm espaço na força-tarefa. Quando acabamos de sugar o que precisamos, eliminamos. Rápido e simples.

    Tentei engolir a ideia, mas ela ficou presa como um pedaço de vidro. 

    — Então é isso? Vou morrer e acabou?

    — Sim. E, sinceramente, era pra você já ter sacado isso. Faz cada pergunta óbvia que parece até que tá brincando.

    A raiva começou a subir, um calor que queimava por dentro. Não aguentei. 

    — Ouve aqui, seu oxigenado de merda! Corta essa palhaçada de execução, porque eu não vou…

    Um chute veio tão rápido que nem tive tempo de terminar. A bota dele atingiu o estômago com força suficiente para dobrar meu corpo. O ar escapou dos pulmões em um gemido rouco, e a saliva se misturou com o pouco de sangue que subiu à boca. A dor explodiu em ondas, irradiando do ponto de impacto.

    — Porra… cê tá louco…?

    Ele deu um passo para trás, ajustando o paletó.

    — Era só pra você parar de reclamar. 

    Respirei fundo, lutando para recuperar o controle enquanto a dor no estômago ainda queimava. 

    Ele continuava parado ali, os braços cruzados, o olhar frio de alguém que já viu muito e sentiu pouco. 

    Meu corpo gritava para eu pular em cima dele, mas as algemas pesadas nos pulsos e o cenário de merda em que eu estava me lembravam da realidade.

    — Então, é isso? — cuspi as palavras, ainda curvado. — Eu sou só uma porra de um número no seu relatório? Alguém que vocês vão descartar assim que perder a utilidade?

    — Finalmente entendeu. Mas não pense que é só você. Todos aqui são descartáveis. É assim que o sistema funciona. Quando não serve mais, vira problema. E problemas… nós resolvemos rápido.

    Ri. Não porque achava engraçado, mas porque era a única coisa que meu corpo conseguiu fazer para não explodir.

    — Progresso, né? Um bando de babacas engravatados decidindo quem vive e quem morre, fingindo que estão fazendo alguma merda pelo bem maior.

    O sorriso que ele tinha desapareceu. Por um instante, pensei que fosse me acertar de novo. Mas fez algo pior. Inclinou-se, os dedos segurando o queixo como se estivesse avaliando um brinquedo quebrado.

    — Você fala como se fosse diferente. Mas olha só pra você, Krynt. Uma peça quebrada que nem sabe pra onde vai. Se fosse tão especial, não estaria aqui. Se fosse tão superior, não teria perdido o controle. — Ele estreitou os olhos. — Você é tão imprevisível quanto qualquer coisa que juramos destruir.

    Fiquei quieto. Não havia o que dizer. O silêncio parecia a única opção sensata.

    Havia algo assustador na indiferença dele. Não era raiva, nem desprezo, mas uma certeza fria que não deixava espaço para dúvidas.

    Ele recuou, voltando até o arquivo no canto da sala. Puxou a gaveta e retirou um papel. Olhou rapidamente e se virou de novo, sem qualquer pressa.

    — Você acha que ainda tem escolha. — disse, deixando o papel cair no chão entre nós. — Aqui, ninguém tem segundas chances. Então aproveite o que resta.

    Enquanto eu olhava para o papel, as palavras se fundiram em um borrão, abafadas pela pulsação latejante em meus ouvidos.

    — Eu juro que não tive intenção nenhuma.

    — Não tem como negar, mais de 40 alunos foram mortos por sua causa.

    — Faço nem ideia de como isso rolou! Sério, acredita em mim!

    — Não tem jeito de alterar isso, a sua sentença de morte já foi decretada.

    A notícia me atingiu em cheio, um soco brutal. O medo, cru e primitivo, inundou minhas veias. A ideia da morte, tão jovem, tão não vivida, era um peso monstruoso em meu peito. A indignidade de morrer virgem, um golpe cruel em uma vida que eu mal entendia.

    O universo, esse bastardo caprichoso, tinha me dado essa mão justamente quando eu estava começando a ver a luz, a me livrar de algumas das minhas tolices juvenis.

    — Ah… Tá, saquei.

    Era isso, então. Minha última apresentação, uma chamada de cortina sem bis. O arrependimento, um gosto amargo, encheu minha boca. Eu ansiava por retroceder, reescrever esse roteiro miserável, evitar os erros, as mágoas, as oportunidades perdidas. Mas o tempo, esse desgraçado, avançava.

    O desespero me cobriu como uma mortalha. Isso não era um jogo, não havia espaço para bravatas ou negação. Apenas… tristeza.

    Uma tristeza generalizada e sufocante. Minha vida, um caminho sinuoso sem um destino claro, oferecia pouco consolo diante do inevitável. Não havia grandes realizações para marcar minha existência, apenas uma coleção de momentos, alguns alegres, outros de partir o coração, todos passageiros.

    — Eu… posso falar com minha mãe?

    Deveria ter uma última conversa com a pessoa que esteve comigo nos últimos 17 anos, porque era aqui que a linha terminava.

    — Receio que não possa. Mas não se preocupe, conseguimos falar com ela por meio da escola. Ela já está bem informada sobre tudo.

    A aceitação, uma pílula desagradável de engolir, era a única opção na mesa. Havia realmente outra opção? A resposta, um eco oco em meus pensamentos, não me dava muito conforto.

    Eu me virei, em uma tentativa infrutífera de esconder as lágrimas que escorriam pelo meu rosto. Apesar da fachada de força que eu estava tentando projetar, a verdade era uma torrente de gritos que ameaçava romper a barragem.

    O homem me observava de onde estava. Examinou cuidadosamente minha situação. Ele hesitou por um momento antes de falar, absorvendo o quadro diante de si.

    — Tá bom. Decida-se.

    — O quê…?

    Pegou o papel que estava no chão e se sentou na cadeira à minha frente.

    — Qual alternativa você prefere? Devo morrer ou ficar aqui?

    — E-espere um segundo… o que cê quer dizer com isso?

    Encarei-o com uma expressão horrorizada.

    — Percebi que você estava se sentindo mal, tipo um cachorrinho. Quer viver mais tempo? Quer dizer, é o que todo mundo quer, no fim das contas.

    — Sim, mas…

    — Então, qual é a sua escolha? Você quer lutar contra essa coisa que se prendeu a você ou prefere enfrentar a morte aqui?

    Minha mente girava em busca de respostas, enquanto o homem à minha frente mantinha seu olhar sóbrio.

    — Como assim, cacete?! Não é como se eu tivesse escolhido vir pra cá!

    Ele balançou a cabeça, como se já tivera ouvido essa justificativa inúmeras vezes.

    — Todos nós enfrentamos decisões difíceis na vida, mesmo que não as tenhamos tomado. A verdadeira questão é: como você vai reagir? Você pode aceitar o destino e deixar tudo desmoronar aqui, ou pode lutar, resistir ao que está acontecendo e, talvez, encontrar uma saída.

    Um pavor frio percorreu minha espinha quando suas palavras ecoaram em minha mente. Havia uma verdade nelas, uma dura realidade que eu não podia ignorar.

    Mesmo assim, o medo, um companheiro primitivo e indesejável, arranhava minhas entranhas.

    Por que eu seria poupado? Essa força-tarefa, uma foice pronta para colher a destruição, não prometia misericórdia. A lógica arrepiante de sua declaração pairava no ar, um lastro sufocante em meu peito.

    — Não vou cair nessa parada! O que mais vocês tão querendo? Já acabaram com a minha vida e agora vão me matar de vez!

    — Pois é… — Ele soltou um suspiro fundo. — Tava pensando em te dar um salvo, mas mudei de ideia.

    Ele se levantou da cadeira, guardou o papel no lugar e deu um passo em direção à porta de saída.

    Antes de sair, disse:

    — Amanhã começa sua execução. Prepare-se, até logo!

    Esse foi o ponto em que minha opinião mudou de um para outro.

    — Espere!

    Gritei de aflição antes mesmo da sua partida.

    — Pelo amor de Deus… Eu quero viver! Não deixe esses caras me matarem, por favor! Me dá uma força!

    Vi um sorriso em seu rosto até que fechasse a porta e a trancasse com um tilintar metálico.

    Um suspiro cansado escapou de meus lábios, com uma onda de desânimo inundando-me. A dor familiar da impotência corroeu as bordas da minha esperança.

    — Me perdoe por tudo, mãe.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota