Capítulo 71 – As coisas se acumulam até explodir
O Chevrolet Impala 1967 percorria as vias secundárias que alimentavam o centro de Portland, como a West Burnside Connector. Era uma via larga, cortada por trilhos de bonde abandonados e postes enferrujados que sustentavam fios pendurados como teias de aranha.
Algumas vitrines refletiam o brilho rubro do sol poente, que se misturava às cores vibrantes dos letreiros de neon intermitentes, os quais anunciavam bares, casas de aposta e lojas de conveniência. O cheiro de asfalto quente misturava-se ao aroma distante de carne grelhada e lixo acumulado nas esquinas, uma assinatura inconfundível do verão urbano.
Sam observava tudo do banco traseiro, acompanhando com os olhos o movimento frenético das calçadas. Portland nunca dormia completamente, nem mesmo naquele horário incerto entre o dia e a noite. Pedestres atravessavam a rua sem olhar, ciclistas desviavam dos carros com uma confiança suicida e os vendedores ambulantes discutiam preços em frente a barracas improvisadas.
Era uma cidade que se recusava a se entregar à escuridão, mesmo quando a história a empurrava nessa direção.
O tráfego se movia devagar, e o painel do Impala refletia as luzes do semáforo, tingindo de carmim os rostos dos ocupantes do veículo.
— Eu ainda acho que isso é uma idiotice. — Nicholas disse, a voz carregada de tédio e irritação.
Ele mantinha uma mão firme no volante, a outra descansava no câmbio. Seu olhar rápido pelo retrovisor encontrou o reflexo de Sam, que desviou os olhos para a janela, fingindo não ouvir.
— Não tenho tempo pra bancar babá, sabia? — continuou. — Eu deveria estar fazendo algo útil, e não levando um pivete pra brincar de caça-fantasmas.
Sam revirou os olhos, cruzando os braços.
— Não sou um pivete.
Nicholas soltou uma risada curta, seca.
— Claro que não. Você é um sobrevivente. Um grande herói. Um verdadeiro especialista em coisas que devoram pessoas no escuro.
O garoto sentiu o estômago afundar, o gosto amargo da memória subindo até a garganta. Emilly, no banco do passageiro, suspirou pesadamente, virando-se ligeiramente para encará-lo.
— Dá pra pelo menos tentar não ser um babaca por cinco minutos?
Este sorriu de canto.
— Não prometo nada.
— Já percebi. Mas você poderia parar de agir como se isso fosse só mais um trabalho qualquer.
O Impala foi ao Burnside Street, cruzando lentamente a ponte que dividia Portland ao meio. Sam contemplava a cidade pela janela suja do carro, perdido no cenário que se estendia diante dele.
O entardecer lançava reflexos dourados sobre os arranha-céus do centro financeiro da cidade, que ganhavam tons quentes, quase irreais, no horizonte. O céu exibia um laranja intenso que logo se dissolveria no roxo escuro da noite, e as primeiras luzes da cidade já começavam a piscar nas janelas altas dos prédios.
Sam desviou o olhar para os bondes antigos que se arrastavam pelas linhas elétricas. Grafites desgastados cobriam as laterais dos prédios, repletos de mensagens políticas rabiscadas aos montes – “LEMBRE-SE DO QUE FOI PERDIDO”, “LUTAR POR QUEM NÃO SE VÊ” – assinaturas de uma cidade que se recusava a esquecer.
A cidade tinha duas faces: de um lado, estava a parte que se exibia, moderna e reconstruída; de outro, escondia-se a parte que não tinha sido tão gentil com a história.
Mesmo décadas após o fim da guerra, Portland não exibia cicatrizes tão visíveis quanto outras cidades. Diferente das cidades costeiras, que tiveram de se reerguer do zero depois dos conflitos, ali a mudança fora mais sutil, infiltrando-se nos sistemas, nas ruas, na forma como a cidade funcionava. Embora os EUA não tenham sido dominados pelos nazistas, o mundo ao redor havia sido moldado por essa vitória.
O país nunca cedeu, mas também nunca saiu ileso.
O Impala virou na Sixth Avenue, e ali a modernidade se dissolvia em uma decadência sem disfarces. As luzes artificiais dos arranha-céus davam lugar a longas sombras opressivas, becos fétidos pelo cheiro de ferrugem, e calçadas rachadas pelo peso de um governo que esmagava tudo sob seus pés.
As vitrines das lojas de penhores estavam cobertas de poeira e barras de ferro, como se protegessem algo valioso, mas guardavam apenas desespero. O letreiro de um cinema abandonado ainda segurava as últimas palavras: “FOI-SE COM O VENTO”, queimadas e pendendo precariamente. No vidro embaçado da bilheteria, alguém havia desenhado uma suástica nazista cortada por um grande X.
As ruas estavam vivas com protestos silenciosos. Os muros contavam a verdade que as telas de propaganda apagavam. “O TERCEIRO REICH NÃO MORREU. ELE TEM SEDE EM WASHINGTON”, garranchado em vermelho como sangue seco. “O DÓLAR NÃO TEM ÁGUIA, TEM UMA SUÁSTICA ESCONDIDA”, rabiscado sob uma câmera de vigilância. “O SONHO AMERICANO ESTÁ EM DACHAU1”, pintado em preto e cinza, ao lado de uma águia nazista segurando o mapa dos Estados Unidos.
Nos bares decadentes, o neon tremeluzia entre slogans apagados e novos gritos de revolta: “LIBERDADE É UM CRIME, E AINDA ASSIM EXISTIMOS”, “UM IMPÉRIO QUEIMA DO CENTRO PARA AS BORDAS”, “ELES CHAMAM DE ORDEM, NÓS CHAMAMOS DE CELA”.
Então Sam viu o símbolo.
Diferente dos grafites improvisados, este era meticuloso, gravado na parede como um código perdido. Um círculo perfeito, intersectado por linhas e pontos, um diagrama que parecia um mapa, um alvo, ou talvez um mecanismo. As interseções se uniam como os fios de uma conspiração.
Abaixo do símbolo tinha a mensagem: “Resista, reconstrua, lembre-se”.
Ele conhecia aquilo. Todos conheciam. Era a marca de um dos grupos mais temidos dos Estados Unidos. Oficialmente, eram terroristas, criminosos, radicais. Mas Sam sabia – qualquer um que prestasse atenção sabia – que o verdadeiro crime deles não era a violência.
Sam inclinou-se levemente para frente, sem tirar os olhos da rua.
— Para aqui, por favor. — Ele pediu isso repentinamente ao avistar a loja de conveniência na esquina da Burnside na oitava rua. O letreiro azulado da loja, com a inscrição Joe’s Market, piscava em ritmo agonizante, iluminando um outdoor da Coca-Cola com uma modelo loira sorridente e a seguinte frase: “Refrescando o espírito americano desde 1941”. A ironia era tão grossa que Sam quase riu. 1941. O ano em que o mundo desmoronou de vez.
Nicholas arqueou uma sobrancelha.
— O quê?
— Quero comprar um pirulito.
O agente soltou um suspiro curto, claramente contrariado.
O carro seguiu por mais alguns metros antes de Nicholas pisar no freio e encostar ao lado da calçada com um leve tranco. Estavam diante de uma loja de conveniência de esquina, onde o letreiro piscava intermitentemente, uma luz azul fraca iluminando a entrada estreita.
Nicholas virou-se no banco para olhá-lo em uma expressão que oscilava entre incredulidade e impaciência.
— Sério? Nós estamos indo investigar um estúdio abandonado cheio de merda sobrenatural, e você quer um pirulito?
Sam abriu a porta sem pressa, como se a urgência da missão não tivesse nada a ver com ele.
— É, um pirulito.
Ele saiu, deixando a porta do carro aberta por um segundo a mais do que o necessário, como se fizesse questão de prolongar o desconforto de Nicholas.
No banco do passageiro, Emilly sorriu de canto, apoiando o cotovelo na porta.
— Deixa ele. Se o garoto quer um doce, que mal tem?
Nicholas bufou, batendo o dedo contra o volante em um ritmo impaciente.
— O mal é que estamos prestes a entrar num prédio onde pessoas foram despedaçadas, e ele acha que isso combina com bala sabor cereja.
Ela virou a cabeça devagar para encará-lo, os olhos semicerrados.
— E você acha que combinar com isso seria o quê? Whisky e cigarro barato?
Nicholas desviou o olhar para o retrovisor.
— Talvez.
— Talvez você só não saiba lidar com as coisas do jeito dele.
O letreiro da loja piscava intermitentemente. O garoto entrou e, por alguns minutos, ouvia-se apenas o barulho do motor dentro do Impala.
Não era a melhor decisão que já haviam tomado. Mas também não era a pior.
Ainda.
Com a expressão carregada pelo típico desdém impaciente, o qual sempre demonstrava quando as coisas fugiam de seu controle, Nicholas tamborilava os dedos no volante.
O silêncio dentro do carro se prolongou por alguns segundos após Sam desaparecer pelas portas automáticas da loja. O barulho distante dos carros na avenida e o zumbido baixo do rádio, sintonizado em alguma estação de jazz instrumental, compunham o ambiente.
Emilly cruzou as pernas. A luz do pôr do sol dava à sua pele um tom dourado, refletido nos cabelos soltos que caíam sobre os ombros. Ela virou o rosto na sua direção e perguntou:
— Você é sempre assim?
— Assim como?
— Imediatamente irritado com qualquer coisa que não siga um itinerário militar.
Ele soltou uma risada nasal.
— E você é sempre tão… permissiva?
A mesma arqueou uma sobrancelha, um pequeno sorriso brincando no canto dos lábios.
— Chamar isso de permissivo é um exagero. Eu só entendo que às vezes as pessoas precisam de pequenas coisas. Você, por exemplo, parece precisar de controle absoluto.
Apoiando um cotovelo na porta do carro, Nicholas virou o rosto para esta.
— Estamos indo para um lugar que, estatisticamente falando, pode nos matar. Então, sim, eu diria que não tenho muita paciência para desvio de rota por besteira.
Ela ergueu uma sobrancelha, girando o corpo para encará-lo melhor.
— Besteira?
— O moleque quer um doce, Emilly.
— E daí? Se ele quer um doce, deixa ele pegar um doce. Você não entende isso?
— Não. Não entendo.
A resposta veio sem hesitação. O sorriso dela desapareceu, dando lugar a uma expressão mais séria.
— Olha para ele, Nick. — Ela inclinou a cabeça levemente na direção da loja, onde Sam ainda andava entre as prateleiras. — Ele viu todos os amigos morrerem. Saiu de um inferno que nem gente como a gente tá acostumada a lidar. Você acha que ele quer o pirulito pelo gosto? Ele quer porque é normal. Porque é um pedaço da vida que perdeu naquela noite. E se isso o faz se sentir humano de novo, então vale a pena perder cinco minutos, porra.
Nicholas apertou a mandíbula e desviou o olhar para o lado de fora, como se estivesse mastigando a resposta antes de soltá-la. Embora soubesse que Emilly estava certa, não queria admitir. E ela percebeu.
— Você faz isso o tempo todo, sabia?
— Faço o quê?
— Segura tudo aí dentro. — Ela inclinou a cabeça, observando-o com curiosidade. — Você acha que, se não falar sobre, as coisas vão sumir. Mas elas não somem, Nicholas. Só acumulam. Até explodir.
— Ah, então agora você é terapeuta também?
Ela apenas o encarou, sem desviar, e isso o irritou mais do que qualquer resposta afiada.
— Se eu parar para sentir, Emilly, eu não levanto da cama no dia seguinte.
Esta piscou, surpresa com a honestidade repentina. Abaixou o olhar para as próprias mãos, brincando distraidamente com a bainha da manga do casaco.
— Não é errado sentir.
Nicholas a olhou de soslaio, os olhos âmbar capturando os reflexos dourados do pôr do sol.
— Não é errado. Mas também não é útil.
Ela riu, baixinho.
— Você é um idiota.
Sam saiu da loja naquele momento, saco plástico em uma das mãos, puxando o capuz de volta para baixo. Ele caminhou até o carro e entrou, jogando-se no banco traseiro.
Nicholas lançou-lhe um olhar pelo espelho retrovisor.
— Comprou um pra mim, pelo menos?
Sam enfiou a mão no saco e jogou um pirulito azul no colo de Emilly.
— Pra ela.
A agente sorriu ao pegá-lo, girando o doce entre os dedos.
— Isso agora virou um símbolo de superação. Vou guardar pra sempre.
Ela piscou para ele, e Sam retribuiu com um sorriso.
O subsequentemente silencioso momento não foi desconfortável. Foi a primeira vez naquela noite que não parecia que todos estavam à beira do abismo.
Nicholas ligou o motor, acelerou suavemente e o carro voltou à estrada.
Dessa vez, Sam não olhou para a cidade. Apenas fechou os olhos, saboreando o gosto artificialmente doce, numa tentativa de se agarrar à normalidade que sabia não durar.
O carro seguiu pela estrada, com o sol se pondo no horizonte e tons alaranjados e púrpuras tingindo o céu. A cidade estava normal. Pessoas caminhavam, lojas ainda abertas brilhavam com letreiros luminosos e carros passavam. Mas, para Sam, tudo aquilo estava errado. Porque o mundo não deveria seguir em frente depois do que aconteceu.
Os corpos dos amigos que ele deixou para trás ainda estavam em decomposição naquele prédio. O sangue ainda escorria pelas frestas das paredes. E ninguém ali sabia disso. O mundo continuava como se nada houvesse acontecido. Como se Noah, Ellie e Jake nunca tivessem existido.
A sensação era de ar mais pesado. Nicholas percebeu a mudança na postura do garoto.
— Se vomitar no meu carro, você limpa.
Sam piscou, saindo de seu transe, e olhou para ele com irritação.
— Vai te catar.
Assim que chegaram ao local, o Impala andou suavemente para a calçada. O motor roncou baixinho antes de silenciar completamente. O farol ainda iluminava a fachada do prédio à frente, um monstro de concreto abandonado que se erguia contra o céu crepuscular.
As janelas quebradas refletiam os últimos resquícios de luz do pôr do sol, enquanto rachaduras serpenteavam pelas paredes como veias secas de um corpo sem vida.
A porta do motorista abriu-se primeiro. O homem saiu e fechou a porta com o cotovelo, pousando a mão no coldre na cintura. O couro rangeria sob seus dedos se não estivesse tão gasto pelo tempo e pelo uso. A arma repousava firme contra a palma da mão. Ele testou o gatilho levemente, conferindo a segurança antes de prendê-la novamente na lateral do corpo.
No banco de trás, o garoto hesitou por um segundo antes de empurrar a porta. Limpou as mãos suadas na bermuda, franzindo o cenho para o prédio como se ele estivesse respirando.
Do outro lado do carro, Emilly estreitou os olhos. O mundo ao seu redor se desfez por um instante, substituído por algo mais denso – um véu de energia negativa se agarrava às paredes da construção, pulsando de forma irregular, como um tumor prestes a romper.
Seu corpo reagiu antes mesmo de sua mente processar o que estava acontecendo. Os músculos do pescoço se contraíram, e a mão deslizou para dentro da jaqueta, onde os dedos se fecharam ao redor do cabo frio do canivete. Retirou a lâmina prontamente, e o brilho opaco refletia a pouca luz da rua. Não era muito, mas já tinha derrubado coisas piores com menos.
A sensação de estar sendo observado se intensificou.
Sem perceber a tensão em seu rosto, Sam puxou a alça da mochila mais para cima do ombro.
Nicholas caminhou até o porta-malas e o abriu com um puxão seco. Pegou duas lanternas dentro da caixa metálica e atirou uma para cada um dos dois.
— Se perderem, não esperem que eu vá catar vocês no escuro.
Sam segurou a lanterna com força, rolando o peso do objeto na mão.
A imensidão do prédio assemelhava-se a uma sombra viva pairando sobre eles. Não havia vento. Não se ouvia nenhum som.
— Tem alguma coisa errada aqui.
— Consegue me explicar?
Ela demorou um instante para responder, como se estivesse organizando os pensamentos. Então, deu um passo adiante e gesticulou com a mão na direção do prédio.
— Certas manifestações deixam um rastro, uma espécie de energia residual, como pegadas na areia. É algo que podemos sentir, mas que já não tem consciência própria. Isso aqui… não é assim.
Os seus lábios se apertaram por um segundo antes que continuasse. Nicholas continuou ouvindo.
— Isso significa que não estamos apenas entrando em um lugar onde algo aconteceu. Estamos pisando num território que ainda está vivo.
— Então essa coisa… sabe que estamos aqui?
Ela assentiu lentamente.
— E, pelo jeito, está esperando.
Sam sentiu um arrepio escalar sua coluna.
O homem expirou pelo nariz, o som curto e impaciente. Puxou a arma mais uma vez, destravando-a com um clique seco.
— Então, que seja. Vamos acabar com isso.
Sam piscou, ainda assimilando as palavras de Emilly. Ele queria protestar, dizer que talvez devessem pensar melhor antes de entrar. No entanto, Nicholas já avançava em direção à entrada do prédio, decidido como se fosse só mais um trabalho qualquer.
Sem escolha, Sam engoliu em seco e seguiu em frente.
Nicholas alcançou a porta dupla de ferro e empurrou uma das folhas, que se abriu com um rangido longo e arrastado.
Sam parou no limiar da entrada, com os pés cravados no chão, incapaz de avançar. Todas as suas células gritavam para dar meia-volta, para não repetir aquele erro. Suas mãos estavam frias, sua respiração, curta, e seus músculos, tensionados como cordas prestes a arrebentar. Ele já estava ali antes. Sabia o que aquele prédio fazia com as pessoas.
Os agentes entraram sem hesitar. O cheiro de mofo e ferrugem tomou conta do ar, e a umidade impregnou as paredes, criando sombras que pareciam se mover na periferia da visão.
Emilly entrou logo atrás, deslizando os dedos pelo coldre do canivete, como se quisesse garantir que ele estivesse ali. Seus olhos varreram o espaço, atentos, o corpo em alerta sem parecer rígido.
— Respira, garoto. — murmurou, sem olhá-lo. — Só entra.
Desejava responder. Gostaria de dizer que não era tão simples. Não era o fim do mundo, mas não estava pronto para voltar. Infelizmente, no entanto, as palavras ficaram presas na garganta. Apertou os punhos e deu um passo à frente. O chão rangeu sob seu peso. Mais um passo. Outro.
A porta se fechou.
O mundo lá fora ficou para trás.
O frio dentro do prédio era diferente do vento gelado da rua. Era um frio que não vinha da temperatura, mas da própria estrutura do edifício. Algo que se infiltrava na pele, rastejava pelos ossos e se alojava fundo no peito.
Nicholas acendeu uma lanterna e apontou para o corredor à frente. As paredes descascadas exibiam marcas de mãos empoeiradas, como se alguém tivesse arrastado os dedos por ali. Documentos antigos e storyboards amarelados cobriam parte do chão, espalhados como se um furacão tivesse passado por ali décadas atrás.
— Certo. Como vamos fazer isso? — perguntou Nicholas.
Emilly parou, analisando o espaço ao redor com os olhos, como se avaliasse as opções. Levou um segundo a mais do que o normal para falar.
— Não podemos andar juntos. Não se quisermos respostas e uma saída ao mesmo tempo. — disse, girando o canivete nos dedos antes de guardá-lo de volta no coldre. — Nicholas, você fica com Sam. Ele conhece melhor esse prédio do que qualquer um de nós e pode ajudar a evitar armadilhas. Você se certifica de que nada que esteja aqui dentro saia andando de novo.
Nicholas inclinou a cabeça para o lado, considerando.
— E você?
— Vou atrás do motivo disso tudo. — Ela apontou para um corredor lateral, onde placas metálicas indicavam salas de arquivos e produção. — Se esse lugar funcionava como um estúdio antes de se tornar um matadouro, então alguém registrou o que aconteceu. E qualquer pista sobre a origem desse Mephisto nos dá uma vantagem. Se descobrirmos o que o criou, podemos descobrir como acabar com ele.
Sam olhou para ela, hesitante.
— Separar não parece uma boa ideia.
— Também não gosto disso. Mas ela tem razão.
Emilly olhou para os dois, cruzando os braços.
— Nicholas, se tem uma coisa que você faz bem, é matar.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Não sei se isso foi um elogio ou um insulto.
— Os dois. — Emilly deu um meio sorriso antes de continuar. — Você segura a linha de frente. Sam não pode ficar sozinho e, francamente, você é o melhor para manter ele vivo enquanto eu busco respostas.
O rapaz desviou o olhar, tomado por uma sensação de impotência. Ele não queria ser o protegido nem o fardo que precisavam carregar. Mesmo assim, sabia que não duraria muito tempo sozinho naquela situação.
— Se algo sair do controle, reunimos no térreo e saímos daqui.
— Então tá. Sem heroísmo, sem desvios. Pegamos o que precisamos e saímos vivos.
— Exato.
A agente deu um último olhar para Sam, como se quisesse garantir que ele estivesse bem, antes de se virar e desaparecer no corredor lateral. Nicholas o puxou levemente pelo ombro, guiando-o para o lado oposto.
— Vamos, garoto. Ainda temos demônios para matar.
Sam engoliu seco e o seguiu.
Dessa vez, ele sabia que não estavam sozinhos.
- Dachau foi o primeiro campo de concentração nazista, estabelecido em 1933, e serviu como modelo para todos os outros. Em nosso mundo, ele foi libertado pelo Exército dos Estados Unidos em abril de 1945, marcando um dos momentos mais importantes do colapso do regime nazista. No entanto, no contexto histórico que a novel se passa, Dachau nunca foi libertado. Pelo contrário: ele foi sido expandido e perpetuado como parte essencial do sistema totalitário[↩]
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