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    A planta do WonderheartStudio oferecia um caminho, mas Nicholas não confiava em mapas. Eram apenas versões congeladas de algo que já não existia mais da mesma forma. Um retrato de um tempo em que aquelas paredes ainda tinham propósito, quando as portas ainda levavam exatamente aos lugares a que se destinavam. Porém, o estúdio estava morto há tempo suficiente para que os corredores se transformassem em labirintos imprevisíveis. 

    Ele analisou as opções. Havia três maneiras de chegar até lá, mas nenhuma era confiável. A rota mais curta passava por um corredor estreito que ligava a parte central do estúdio ao setor dos fundos. Como era um caminho direto, sem desvios desnecessários, os riscos eram óbvios. Se alguém havia riscado aquela área no mapa, não foi por acaso. O incêndio que devastou partes do estúdio pode ter comprometido o chão, agravando sua fragilidade e aumentando o risco de desabamento. E isso sem considerar o que mais poderia estar esperando no escuro.

    Uma segunda alternativa seria passar pela administração. As indicações no mapa apontavam para a existência de uma passagem nos fundos dos escritórios, conectando-se diretamente ao Depósito. Essa opção permitiria evitar a área mais danificada, se não fosse pelo problema das portas. Quanto mais salas tivessem que atravessar, maior a chance de encontrarem fechaduras emperradas ou caminhos obstruídos. Se precisassem recuar, ainda estariam encurralados.

    Nicholas exalou devagar, traçando a decisão na mente em segundos.

    — O caminho mais rápido nem sempre é o melhor.

    — O quê?

    — Nada. Só vamos.

    Tinha dado um olhar relance para Sam, onde percebeu a tensão endurecendo os ombros do garoto. Seu olhar vagueava pelo escuro, como se esperasse ver algo se mover nas sombras. Nicholas não disse nada. Se ele já estava sentindo o peso do lugar, melhor assim. O medo deixava as pessoas mais atentas, e atenção era o que os manteria vivos.

    O plano estava pronto. O corredor secundário seria o caminho mais curto, por isso cada passo exigiria cautela. Se o trajeto desmoronasse, eles desviariam para a Administração. Se algo os forçasse a recuar, os Estúdios de Gravação seriam a última opção. No entanto, qualquer mudança no percurso significaria mais tempo naquele prédio condenado, e Nicholas queria sair dali o mais rápido possível.

    Ele apagou a lanterna por um instante, permitindo que os olhos se ajustassem à escuridão opaca. 

    Sam não questionou. Seguiram pelo corredor sem pressa, com os passos amortizados pelo chão coberto de poeira e destroços. Pequenos estalos vinham das vigas sobre suas cabeças, e o eco do próprio caminhar soava prolongado demais. Era uma sensação de que o ambiente respirava junto com eles.

    Passaram pela primeira bifurcação. À direita, a Sala de Administração se destacava com uma porta dupla de vidro opaco, e uma de suas folhas estava estilhaçada na base. Os cacos brilhavam sob a fraca luz do corredor, onde se acumulava poeira fina de vidro nos cantos. Nicholas anotou o local mentalmente e seguiu em frente.

    O corredor secundário estreitava, e o teto parecia mais baixo, atravessado por fiações pendentes, como raízes sufocando as paredes. As marcas de queimadura se tornavam mais intensas, envolviam o revestimento das laterais e o engoliam. Algumas partes estavam completamente enegrecidas, enquanto outras descascavam, desnudando camadas de fuligem grudada como casca carbonizada.

    — O incêndio começou aqui? — Sam perguntou.

    Nicholas passou os dedos sobre uma superfície chamuscada e sentiu sua textura irregular. Um mosaico de fragmentos endurecidos e resquícios esfarelados de material queimado confirmava a intensidade do calor.

    — Não. Mas foi o mais afetado. — Seu olhar subiu para as vigas acima. — O fogo subiu rápido por esse corredor, como se tivesse sido canalizado.

    A testa de Sam se franziu, refletindo sobre o detalhe.

    — Isso significa que o teto…

    — Pode cair a qualquer momento. Então, se ouvir estalos, corre.

    Um olhar desconfiado do garoto se prendeu no alto, à espera de um desabamento iminente.

    Os passos avançaram cautelosamente pelo chão de azulejos rachados. A mistura densa de cheiro ardido com odor cítrico e úmido era intensa. Um afundamento sutil na cerâmica fez com que a caminhada fosse interrompida. Nicholas abaixou-se, e a palma de sua mão deslizou sobre o desnível. As fissuras irradiavam de um ponto central, sugerindo que algo havia colidido com força contra o piso.

    — Alguma coisa caiu aqui.

    Um olhar atento acompanhou o exame da superfície.

    — Ou alguém.

    Ele afastou a poeira acumulada com a mão, revelando pequenos fragmentos brancos incrustados entre as rachaduras. Parcialmente queimados, mas ainda sólidos.

    — Isso é…?

    Os dedos giraram um dos pedaços, avaliando a textura.

    — Osso.

    A respiração de Sam prendeu-se por um instante.

    — Tá brincando.

    — Queria. Parece parte de uma escápula. Pequenos demais pra um animal comum, grandes demais pra um rato.

    A expressão dele estava carregada por uma mistura de nojo e curiosidade.

    — E tá inteiro… se tivesse queimado junto com um corpo, estaria mais frágil. O calor extremo faria a medula expandir até rachar.

    O olhar avaliador de Nicholas ergueu-se, surpreso com a observação.

    — Mandou bem, professor.

    — Eu leio, tá?

    — Faz sentido. Mas o ponto é esse. Se os ossos não foram queimados junto com o incêndio…

    A compreensão veio de imediato.

    — … então a pessoa já estava morta antes do fogo começar. — Sam completou.

    — Isso. Alguém tentou se livrar do corpo antes de tudo desmoronar. Ou queria encobrir alguma coisa.

    Seus lábios se comprimiram, inquietos.

    — Você já viu algo assim antes, senhor?

    Um suspiro cansado preencheu o espaço entre a pergunta e a resposta.

    — Muita coisa estranha já apareceu no meu caminho, mas se quer uma opinião de especialista, melhor perguntar pra Emilly. Ela entende disso muito mais do que eu.

    Uma risada curta e nervosa escapou.

    — Porque ela é Pesquisadora

    — Porque ela é obsessiva. E também porque a gente ainda não achou o resto do corpo.

    Sam limpou a garganta para dissipar a tensão.

    — Tá. Qual a chance de a gente simplesmente sair daqui e fingir que nunca vimos isso?

    Os pés retomaram o caminho sem hesitação.

    — Eu diria nula. Mas se quiser testar sua sorte, fica à vontade. Não sei pra quê você veio mesmo.

    Um revirar de olhos foi a única resposta antes dos passos apressados seguirem logo atrás. Algo dizia que aquele não era o último vestígio de morte naquela noite.

    O cheiro mudou antes mesmo de eles darem a próxima curva. O odor de fuligem e madeira queimada ainda estava no ar, mas agora se misturava a algo diferente. Um agridoce acre se impregnava no concreto como uma cicatriz. A caminhada desacelerou.

    Duas portas sem identificação foram ultrapassadas. As placas metálicas, derretidas pelo calor, haviam se fundido à madeira, impossibilitando qualquer leitura por causa das manchas tortuosas. Sam lançou um olhar hesitante para elas, acreditando que se abrissem sozinhas. No entanto, o que os fez parar não estava nas portas.

    O corredor estreito estava parcialmente bloqueado por uma pilha de equipamentos antigos, cabos embolados como cipós e o que parecia ser um rolo de tecido queimado. Nada disso, porém, importava. No meio daquela bagunça, um corpo jazia imóvel.

    Nicholas se aproximou calmamente. Os ossos enegrecidos pelo calor estavam surpreendentemente preservados, ainda que com fiapos de tecido queimado grudados à estrutura frágil. O maxilar inferior deslocado era a prova de um grito que nunca chegou a ser emitido. Os dedos arqueados indicavam uma tentativa inútil de se arrastar para longe das chamas. Mas não conseguiu. Ficou ali.

    — Ele parece… — A voz falhou. Sam engoliu em seco. — Igual ao outro.

    A lembrança do primeiro cadáver o atingiu como um soco. Aquele que encontrou com Ellie e Noah na primeira vez.

    Abaixando-se com os joelhos flexionados, o agente se pôs ao lado dos restos mortais. O olhar se demorou sobre a caixa torácica. Sentiu que algo estava errado. As costelas de um lado aparentavam estar mais expostas que o normal, e a escápula esquerda simplesmente não estava onde deveria estar. 

    — Acho que encontramos.

    Seus dedos deslizaram pela gola chamuscada da camisa, puxando com cuidado fiapos de plástico pegajento grudados ao tecido. Restava pouco de um crachá carbonizado, mas o canto superior direito ainda exibia um logotipo desgastado.

    — Funcionário. É ele mesmo.

    Sam cruzou os braços, como se tentasse se proteger do próprio ar pesado ao redor. 

    — Retração nos tendões. — Apontou. — O calor faz os músculos encolherem, por isso corpos queimados geralmente assumem aquela posição contraída. Igual você, agora.

    Este desfez a postura no mesmo instante, os braços caindo ao lado do corpo.

    — Engraçado. — murmurou, lançando um olhar de canto.

    — Mas olha os dedos dele. Não estão tensionados como deveriam.

    A compreensão veio rápida.

    — Então ele já estava morto quando o fogo o alcançou.

    — Isso.

    Sam soltou o ar devagar, ajeitando os óculos como se precisasse de um momento para processar.

    — Nossa… você age como se isso fosse óbvio.

    — É.

    — Mas não é.

    — Pra mim, é.

    — Como?

    — Experiência.

    O silêncio se estendeu, até que Sam cedeu à própria curiosidade.

    — Você sempre fez isso? Digo… esse tipo de trabalho?

    — Não sempre. Antes, eu só matava.

    Nicholas girou o pescoço, estalando as vértebras antes de responder.

    A expressão do mais novo endureceu.

    — Sério?

    — Não. — Nicholas revirou os olhos, voltando a atenção para o que estava fazendo. — Mas eu podia ter deixado você acreditar nisso.

    Sam bufou, cruzando os braços de novo.

    — E qual é a verdade, então?

    — Comecei mais novo do que devia. Acha que esses caras da U.E.C. são eficientes? Você nunca viu o líder em ação.

    — Se você já parece um robô, imagino ele. — Riu-se, balançando a cabeça. — Mas falando sério. Como alguém vai de… sei lá, vida normal, pra isso?

    O homem deu de ombros.

    — Eu não tinha exatamente uma vida normal pra começar.

    — Ah. Isso explica muita coisa.

    Nicholas passou os dedos pelo maxilar do esqueleto e inclinou levemente o crânio para inspecionar a base do occipital. Ele notou um afundamento irregular, como um golpe seco e profundo.

    — Impacto direto aqui. Provavelmente um objeto contundente antes das chamas.

    Sam desviou o olhar, levando uma mão ao rosto.

    — Você fala dessas coisas como se fosse normal.

    — Normal não é. — disse ao se levantar. — Mas alguém fez isso. E isso confirma que esse lugar foi abandonado antes do incêndio. As mortes começaram antes.

    Os olhos do garoto voltaram para os restos mortais.

    — Então… não foi um acidente.

    A resposta veio sem hesitação.

    — Isso nunca foi uma tragédia. Foi um acobertamento.

    Algo pingava em algum lugar, talvez água infiltrando do andar superior. Os cabos de energia pendiam do teto como raízes mortas, balançando levemente na corrente de ar invisível.

    Sam esfregou os braços, tentando afastar o frio que não tinha nada a ver com a temperatura.

    — E agora?

    Nicholas lançou um olhar para o fim do corredor.

    — O que você quer fazer? Comer esse cadáver?

    — Huh? Tá maluco?

    — Eu tô com fome.

    Sam o encarou por um segundo, depois fez uma careta de nojo e o empurrou de leve no ombro.

    — Cara, vai se ferrar.

    Nicholas riu baixinho, mais pelo desconforto do garoto do que pela piada em si. O humor era apenas um escudo. Ele sabia disso. Mas, de vez em quando, era necessário usá-lo. Eles não estavam lidando com um incêndio antigo. Estavam lidando com uma história enterrada. E, como qualquer cadáver, cedo ou tarde, ela começaria a feder.

    O caminho se estendia por pouco mais de dez metros, mas não era uma caminhada fácil. Logo adiante, um corredor lateral estava bloqueado por escombros, como um aviso claro de que aquela rota não era uma opção.

    Nicholas avaliou um possível desvio à esquerda, onde a porta de um vestiário de funcionários ainda pendia do batente, com o peso do tempo fazendo-a ranger levemente. Um atalho tentador. Pequeno e estreito. Um beco sem saída. E becos não eram bons. Uma armadilha perfeita, se alguém ou algo ainda estivesse lá.

    Mesmo com o solo frágil, preferiu continuar pelo caminho aberto. As rachaduras nas paredes eram um alerta subliminar. A estrutura não era confiável, e qualquer movimento brusco poderia ser suficiente para derrubar o que ainda estava de pé. Ele apertou os olhos enquanto observava as colunas de sustentação. Algumas ainda resistiam ao desgaste. Dessa forma, era melhor manter-se perto delas.

    Parou abruptamente.

    Sam, distraído pelo próprio medo, esbarrou nele. Nicholas não precisou dizer nada. Apenas ergueu uma mão no ar, um gesto. Fique onde está.

    Ouviu.

    No fundo do corredor, antes da porta do auditório, algo se movia. Não eram passos. Não se ouviam vozes. Algo diferente. Baixou-se, pressionando os dedos contra o chão. A vibração era tão sutil que se assemelhava a um sussurro vindo das entranhas da madeira. Talvez uma corrente de ar se arrastando pelos dutos velhos ou algo pendurado, que oscilava levemente no teto. Mas Nicholas conhecia bem a diferença entre um prédio rangendo e um Mephisto.

    Sam o olhava, esperando instruções. Ele não disse nada. Apenas gesticulou para ele respirar mais devagar e controlar a pulsação. O menino assentiu, mal conseguindo conter o próprio nervosismo.

    Os últimos metros foram percorridos milimetricamente. O piso, apesar de desgastado, ainda sustentava o peso dos dois sem protestar. Concentrado no equilíbrio da própria respiração, nos detalhes ao redor e nos ecos do que não deveria estar ali, Nicholas dava um passo de cada vez.

    Então, enfim, a porta surgiu à frente.

    Diferente das outras que haviam encontrado, aquela resistia ao tempo com uma imponência doentia. As dobradiças ainda a seguravam no lugar. O verniz escorria em descascados irregulares, como pele queimando ao sol. Mas o que mais chamava atenção eram as palavras entalhadas na madeira, com cortes fundos e irregulares, obra de lâmina impiedosa:

    NÃO ENTRE.

    Nicholas ergueu a mão, tocando o trinco. O frio do metal percorreu sua pele de um jeito estranho, como um choque sutil subindo pelos ossos. Não era comum. Não era natural.

    Ao seu lado, Sam prendeu a respiração. E ali ficaram, parados por um instante que durou mais do que deveria.

    — Bom… Não sei você, mas eu sempre segui regras direitinho.

    Sam soltou um riso nervoso.

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