Capítulo 85 - Brincadeira de criança
A criatura ficou imóvel por um momento que pareceu se estender além do que era tolerável, como se o tempo tivesse cedido ao seu desejo. Os olhos brancos, lisos e artificiais, permaneciam sem piscar. Ele inclinou a cabeça devagar para o lado, num movimento que não simulava reflexão. Ela estava assistindo a uma performance, uma encenação para distraí-la, ou ainda pior, para apreciar o medo com mais atenção.
Os ombros estreitos dele subiram levemente antes que deslizasse um passo para o lado. Não houve som de impacto no piso nem vibração sentida sob seus pés. As sombras que nasciam de seus braços e pernas se projetavam pelas paredes e pelo chão, alongando-se demais e cobrindo as superfícies com um tom ainda mais escuro do que a escuridão natural daquele andar. Como tentáculos tímidos, elas exploravam o ambiente, sondando ângulos ocultos e testando os limites do tabuleiro em que ambos estavam prestes a jogar.
Emilly sentiu o estômago se contrair. Não era só medo. Era o reconhecimento tático de que aquilo dominava aquele terreno e estava confortável nele.
A criatura parou, um dos pés ligeiramente adiantado, como um corredor aguardando o tiro de largada. O sorriso seguia lá, quebrando-lhe o rosto num arco estático, e foi isso que a desestabilizou por uma fração de segundo.
Ela precisou de toda a disciplina acumulada em anos de treinamento para não desmoronar. As pernas estavam dormentes, pesadas, como se os ossos e músculos tivessem sido substituídos por concreto mal curado. Mas a sua mente era outra coisa.
“A coisa vai piorar. Se controla.”
Prendeu a respiração por dois segundos, recitou mentalmente o código de protocolo para situações de proximidade com ameaças de nível instável, que costumava zombar nos treinos por considerá-lo redundante: identificar, isolar, agir.
Agora fazia sentido.
Com o peso transferido para o calcanhar esquerdo, a parede ao lado serviu de apoio disfarçado. O suor que escorria de sua testa se misturava à poeira fina que impregnava o ambiente, resultando em pequenas queimaduras abrasivas a cada piscada. No entanto, manteve os olhos abertos, fixos no inimigo, à espera da brecha da qual sabia que não seria concedida. Não porque fosse imprudente, mas porque não precisava.
Mesmo assim, ela se obrigou a se mover.
O primeiro impulso veio quase sem aviso. Um espasmo nervoso ativou sua perna direita. O joelho protestou, agudo, um choque se espalhou até o quadril. Mas Emilly ignorou e empurrou-se do chão. A ascensão foi deselegante, sem a precisão que desejava – não era uma arrancada limpa, mas sim um animal ferido tentando sair da mira do caçador.
O Mephisto não reagiu. Ou melhor, não precisou reagir. Ele observou, ainda inclinado para o lado, como se tivesse todo o tempo do mundo e a convicção de que nada escapava de suas mãos.
“Com certeza não vou conseguir em um confronto direto. Tenho que pensar em alguma coisa. Merda.”
A primeira passada foi curta e seu pé escorregou levemente em algo pegajoso no piso – sangue, talvez, ou algum resíduo dos horrores cometidos ali antes de sua chegada. Recuperou o equilíbrio no impulso seguinte, com o corpo projetado para a frente. Seu cotovelo esquerdo roçou a porta quando passou por ela, abrindo espaço no batente com um empurrão do ombro.
A corrente de ar no corredor a atingiu como um golpe seco. Mais frio, mais rarefeito. Porém livre. Por um segundo, o medo se transformou em puro movimento. Sua reação foi correr.
Não havia mais tempo para catalogar cada batida do próprio coração. Cada passo ecoava no concreto, um compasso frenético que poderia tanto anunciar sua chegada quanto garantir que ainda havia chão sob seus pés. Emilly sabia que não podia olhar para trás. Se o fizesse, perderia meio segundo. Meio segundo que não tinha.
Sabia, mas não sentia. Tinha certeza de que ele estava atrás dela. Não com o frenesi de uma perseguição apressada, mas com a tranquilidade de quem tem certeza da captura inevitável. Era como uma criança entediada brincando de pega-pega, mas que já conhece o final do jogo.
E ainda assim, ela corria.
Um som metálico reverberava em algum lugar acima dela, uma opressiva sensação de eco que descia pelas vigas tortas e corroídas do teto, multiplicando-se até dar a impressão de vir de todas as direções ao mesmo tempo. A presença constante criada pela reverberação dava a ilusão de que havia algo grande demais para caber nos corredores estreitos por onde Emilly agora corria. Todos os seus passos apressados faziam o chão de linóleo queimado protestar, fazendo-o ranger feito se tivesse memória própria.
Não podia se permitir hiperventilar. Já havia feito isso antes e aprendido o preço: confusão, tontura e a incapacidade de traçar linhas lógicas de pensamento. Era o que mais poderia colocá-la em perigo naquele momento. A situação exigia raciocínio e análise. Respirar de maneira controlada era um protocolo de sobrevivência. A mesma prioridade que calcular a distância entre a próxima porta e o tempo necessário para alcançar a saída de emergência, embora a saída já estivesse bloqueada, mas que continuava aparecendo em seus planos, como uma variável inútil sobrecarregando seus processos mentais.
Ao deslizar para a direita, o cotovelo roçou a parede, e o contato áspero da tinta descascada serviu de ancoragem ao momento. Todos os pequenos estímulos sensoriais eram pontos de estabilidade. A textura da parede, o cheiro do sangue seco impregnado no corredor, o som do próprio batimento cardíaco nos ouvidos. Essas eram as certezas. O resto era incerteza, e a incerteza matava.
O zumbido de uma sirene quebrada, arrastado e intermitente, veio do andar de cima. Em qualquer outro lugar, esse som indicaria um alerta de incêndio. Ali, porém, soava apenas como um grito abafado por camadas de concreto e pela passagem do tempo. Ela ouviu o som e o analisou: frequência constante, padrão irregular. Não era um perigo imediato, mas era um ruído pelo qual o inimigo podia usar como cobertura.
“Sem chance. Já conheço esses truques.”
Foi quando ouviu a risada.
Um som que desafiava qualquer categorização lógica. À primeira audição, lembrava o riso de uma criança brincando sozinha com um brinquedo barato, daqueles que funcionavam à corda. Porém, algo mais estava presente, algo sintético e corroído. Era como um arquivo corrompido reproduzido em um gravador antigo, cujas gargalhadas arranhavam a superfície da sensação auditiva e provocavam arrepios involuntários.
— Boneca? Boneeeeecaaa? Cadê vocêeee? Brincadeira de esconde-esconde!? Adoro brincar, vou dizer as regras! — disse a voz, estalando no ar como plástico sendo puxado ao limite.
Emilly não precisou se virar para saber que a criatura estava se aproximando progressivamente. Sua movimentação seguia um padrão previsível. Não corria, nem pisava. Apenas deslizava. Era como uma sombra projetada em uma parede, com a diferença de que era tridimensional e absurdamente presente. A ausência de som em sua locomoção contrastava com a insanidade de sua voz, e isso perturbava a leitura cognitiva de Emilly. Analisar seu comportamento era como tentar compreender um ser que não obedecia à biologia. Uma falha de paradigma. E isso era o que mais a incomodava.
Diferentemente de Nicholas, Emilly não treinou para caçar Mephistos, mas sim para identificá-los, compreender suas estruturas e encontrar falhas em seus padrões comportamentais. Mas este era especial. A lógica não se aplicava. O ciclo não era previsível. Fome ou raiva não existiam. Restava apenas o jogo.
“Essa brincadeira de criança não é nada bom.”
A criatura brincava. Emilly sabia, do fundo de sua mente treinada e disciplinada, que a brincadeira era a essência mais pura da crueldade.
Ela virou no corredor seguinte. À esquerda, uma porta com um letreiro parcialmente carbonizado: SALA DE SOM – RESTRITO. Um refúgio possível, mas ainda não. Ainda não. Ela precisava de algo mais que um esconderijo. Precisava de tempo. E tempo, ali, custava mais que ouro.
Atrás dela, um movimento. Não um som, mas uma sutil alteração no ar, como uma mudança de pressão. O instinto gritava, e ela obedeceu sem hesitar, derrapando no chão no momento em que algo alongado e negro passou a centímetros de sua cabeça. Ouviu o som que fazia ao se mover: uma espécie de assobio só possível de ser ouvido de perto, seguido de um estalo, como brinquedos de madeira sendo girados depressa demais.
Emilly se levantou, mas a dor na perna esquerda denunciava o preço das horas passadas fugindo. O músculo queimava. O cérebro processava a dor como um alerta menor, priorizando as variáveis críticas: saída próxima, ameaça em flanco direito, possibilidade de intercepção em oito segundos.
O vulto passou por ela outra vez, deslizando pela parede como se fosse tinta despejada sem gravidade. A cabeça do Mephisto virou-se 180 graus no eixo horizontal, até que os olhos brancos e excessivos encontraram os dela. Eram três. E todos sorriam. Não apenas a boca, mas os olhos.
— Você não pode ganhar de mim se não seguir as regras! — cantou a voz, com um entusiasmo genuíno e cruel.
Com os olhos fixos nele, Emilly sentiu a rigidez na mandíbula e o suor queimante descendo pelo pescoço. Pensou rápido. Regras. Dois momentos diferentes e ele havia mencionado regras. Criaturas como ele não falavam sem motivo. Principalmente quando se tratava de uma brincadeira. E era isso que ele queria que fosse: uma brincadeira. Para ela, não podia ser.
— Quem definiu essas regras? — perguntou. Precisava ganhar tempo, manter a criatura ocupada em algo que não fosse arrancar-lhe a espinha pelas costas. — Você? Ou foi Ruth?
O nome caiu no ambiente como uma pedra em um lago parado. Pequeno som, ondas longas.
Os olhos sorridentes do Mephisto se arregalaram ainda mais, algo próximo de surpresa. Mas então ele riu. Uma risada seca, que ricocheteava nos azulejos descascados das paredes.
— Ahhh… você conhece o nosso pastor! — disse, os braços abrindo-se com a teatralidade de um apresentador de circo. — Ruth… Ruth… Ruth… ele é um bom contador de histórias, não é?
A cabeça do Mephisto inclinou-se para um lado, com o estalo repugnante de ossos que não deveriam se mover daquela forma.
— Mas ele não escreveu a nossa história toda. Não. Nós escrevemos o final… com o sangue deles.
Ele se aproximou, esticando a mão fina e longa como galhos de árvore em direção à parede ao lado da cabeça dela. Os dedos afundaram levemente no concreto, como se fosse argila mole.
— Você sabe que ele nos trouxe… mas sabe por quê?
Aproximou-se do seu ouvido e sussurrou:
— Para abrir a porta. A porta que sempre esteve aqui. Na carne das paredes. No eco das vozes que ele apagou. Um mundo carmesim.
Embora o instinto gritasse para que corresse, Emilly não se moveu. Sabia que era isso que ele queria. Outro jogo, outra caçada. Mas precisava de respostas, e estava conseguindo. Porta. Rei. Mundo Carmesim. As peças estavam se alinhando, mesmo que se tratasse de um quebra-cabeça feito de ossos.
— Ruth criou você. — disse, a voz mais fria que o pavor que sentia. — Ele usou o Protocolo de Transposição de Consciência para puxar você e os outros do mundo dele, o que quer que isso signifique. Você devia ser só um conceito, um personagem no papel de Ryan. Mas ele quis brincar de deus. Só que você não é um deus. Nem Ruth é e muito menos Joseph.
O Mephisto riu, inclinando-se para trás num arco quase dobrado ao meio, as vértebras estalando em sequência, como um teclado desafinado sendo apertado com raiva.
— Ah, mas não é sobre ser deus, querida. É sobre brincar. Você entende isso? Brincar. Jogar. E quando brincamos… nós escolhemos quem vive e quem morre.
Com um gesto rápido, ergueu o braço, sua mão se abriu como um leque de facas finas e apontou para ela com um dedo comprido.
— Ruth mostrou o caminho, sim. Ele soprou sobre o barro. Mas nós moldamos as nossas formas. Nós criamos as nossas regras. E o rei… ah, o rei é quem colhe o prêmio quando ganhamos.
Ele deu um passo à frente, e a luz mortiça do corredor pareceu vibrar em torno dele, distorcendo-se como calor em um asfalto distante.
— Você sabe quem ele é, não sabe? Aquele que trará o Mundo Carmesim. Aquele que tornará este lugar… um playground eterno. Você vai adorar. Não vai precisar se preocupar com essas perguntas estúpidas… não vai precisar correr. Vai brincar para sempre.
O sorriso dele aumentou, e sua mandíbula estalou ao se abrir além do natural. Os dentes eram brancos, infantis, mas infinitos.
Emilly respirou fundo.
— E Benny? — perguntou, fria, direta.
O Mephisto parou, abrupto, a cabeça girando devagar. O sorriso suavizou, mas não desapareceu.
— Ah… Benny. — Suspirou. — Tão bonzinho. Tão quietinho. Ele não entendia as regras. Não soube brincar. Você quebrou o brinquedo.
Ele inclinou a cabeça para um lado, os três olhos sorrindo de novo.
— Mas tudo bem. Sabe por quê?
Se aproximou outra vez, sem pressa.
— Porque quando quebramos um brinquedo… ganhamos um novo. Quer saber o que você vai ser?
Emilly deu um passo para trás, os músculos prontos para o salto.
— Um peão no jogo de Ruth? Ou um troféu para o seu rei?
A criatura riu alto e reverberou em ondas tão intensas que rachaduras se abriram na parede ao lado deles.
— Não. — Ele piscou, os olhos fechando e abrindo como uma câmera de obturador quebrado. — Você vai ser a próxima a abrir a porta. Vai ser… a chave.
Ele estendeu a mão.
— E quando você abrir… o mundo carmesim será nosso brinquedo para sempre.
A pulsação martelava seus ouvidos. Sabia que o Mephisto não estava mentindo, mas não completamente. Existia, porém, algo que não dizia. Uma peça que a agente ainda poderia encontrar. E, quando encontrasse essa peça, sabia que poderia virar o jogo. Não agora.
O que ela precisava agora era sobreviver.
Emilly deu meia-volta e correu, e ouviu a risada dele engolir o corredor atrás de si como uma onda negra.
— Eu vou contar até 10!
O jogo continuava.
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